Bicentenário da Independência não pode ser reduzido a narrativas políticas
As mais variadas forças tentarão adequar as comemorações às suas estratégias eleitorais, mas a conjuntura do Brasil em 1822 levanta questões ainda pertinentes
Esfera Brasil
Publicado em 6 de setembro de 2022 às 09h00.
Por João Camargo e Pedro Henrique de Almeida*
A motivação momentânea do brado retumbante naquele 7 de setembro de 1822 é sabida:uma carta enviada pela princesa Leopoldina a D. Pedro avisava sobre as novas restrições àautonomia do Brasil e à autoridade do príncipe regente. Restrições impostas pelas cortesconstitucionais de uma Lisboa em ebulição.
Não fosse a pressão das cortes constitucionais portuguesas contra a autonomia que acondição de Reino Unido havia garantido ao Brasil, talvez a separação administrativa se dessemais adiante. A ideia da autonomia havia perdido o fôlego nas elites locais após os avançosocorridos com a vinda da família real em 1808, tais como a abertura dos portos às naçõesamigas e a permissão dada à atuação da imprensa.
O termo Independência, recorrente nos ditos populares e nas lutas locais até então, raramentefazia referência à emancipação – a despeito dessa identificação se acentuar posteriormente –, referia-se quase sempre à insubordinação ao status quo constituído naquele momento, isto é,à Coroa, como bem esclarece a historiadora Cecília Helena de Salles Oliveira em suas obras.Além disso, historiadores como István Jancsó e João Paulo G. Pimenta explicam que, noinício do século 19, a identidade nacional e a brasilidade ainda eram embrionárias e restritasa certos grupos. O grosso da população não se via como brasileira. Quando estudamos asreivindicações que chacoalharam o Brasil pré-independente, vemos que não havia ali umaconfiguração nacional. A privação de liberdade raramente era associada à sujeição a umanação estrangeira –Portugal não era encarado dessa forma; mas era comumente associada aotrono e à monarquia absolutista.
As disputas políticas em Portugal, que exigiram o retorno da Corte e que reivindicavam arestauração à condição de colônia para o Brasil, replantaram em nossas terras a ideia deseparação administrativa. Só que dessa vez, as ideias foram plantadas em solo muito maisfértil.
Desde a vinda da família real em 1808, o Brasil havia se tornado refúgio de interessesabsolutistas de portugueses preocupados com o avanço das ideias liberais em Lisboa. Foi oprocesso que historiadores como Maria Odila Leite da Silva Dias chamaram de interiorizaçãoda metrópole; é essa interiorização que estabeleceu as condições para o grito 14 anos depois.Portanto, não é errada a interpretação que enxerga a independência do Brasil como resultadode uma guerra civil entre portugueses, mas é certa a importância daquele grito na construçãode nossa história.
Aquele 7 de setembro de 1822 não pode ser interpretado isoladamente, deve ser lido comofundamento, estágio e consequência de um longo processo revolucionário que começa em1808 e termina com a fuga de D. Pedro I. Um conjunto de transformações que, mesmoassociadas ao momento daquele grito, não se restringem a esse evento.
O grito como fundamento de um processo de construção de identidade nacional. O gritocomo etapa de um processo revolucionário marcado por uma série de eventos como achegada da Corte em 1808, a abertura dos portos, os tratados de 1810, a criação do ReinoUnido de Portugal, Brasil e Algarves em 1815, a insurreição de 1820 em Portugal, o Dia doFico em 1822, a Constituição de 1824 e a abdicação de D. Pedro I em 1831. O grito comoconsequência da interiorização dos interesses absolutistas da metrópole.
A História não deve ser reduzida a mero repositório de exemplos a serem adequadosconvenientemente a qualquer narrativa política. É essencial que tenhamos isso em mente na
comemoração deste bicentenário, quando as mais variadas forças tentarão adequar ascomemorações às suas estratégias eleitorais, mas a conjuntura do Brasil em 1822 levantaquestões que ainda nos são pertinentes duzentos anos depois. O que é ser brasileiro? O quenos une como nação? Quais as forças políticas que subjugam nossa autonomia? Quais osinteresses aqui contidos conduzem nossa história?
Naquele 7 de setembro de 1822, efetivava-se nossa revolução. Ali moldou- se a nação que sesucedeu nos 200 anos seguintes. Ali nascia mais do que uma nova região administrativa,moldava-se a brasilidade como confuso sentimento, que amadureceu e nos manteve unidospor duzentos anos. Iniciava-se um processo intenso de construção de cidadania, depolitização dos brasileiros e popularização do debate público. Um processo em que ainda hámuito o que avançar, mas orgulha a caminhada que tivemos até aqui.
*João Camargo é empresário e CEO da Esfera Brasil
*Pedro Henrique de Almeida é advogado e historiador e trabalha como relações-governamentais da Esfera Brasil