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Precisa-se de mercados

Por que o Brasil -- sem perder de vista o Mercosul -- deve apostar no sucesso da Alca

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h54.

O risco país, tal como medido pelas agências internacionais de classificação de crédito, depende de um critério essencial, a relação entre dívida externa total e exportações anuais. O Brasil, a despeito dos avanços recentes, ainda vai mal nesse quesito. No ano passado, exportou 60,36 bilhões de dólares, para uma dívida total de 210 bilhões. A relação, portanto, foi de 3,48, extremamente elevada em comparação com países cujo risco é bem inferior. Para o México, por exemplo, ela é de 0,83, indicando que é necessário menos de um ano para "pagar" a dívida.

Isso significa que emprestar para o México é menos arriscado, de modo que os juros são menores. De fato, o risco México está abaixo dos 200 pontos base, isso quer dizer que os seus títulos da dívida externa pagam taxas de, no máximo, 2 pontos percentuais acima dos papéis equivalentes do Tesouro americano. O risco Brasil, depois de sucessivas quedas, resiste no patamar dos 600 pontos, o que encarece o financiamento do governo e das empresas locais.

Há outro fator que também desfavorece o Brasil, que é a relação dívida pública/produto interno bruto, mas o ponto aqui é o do comércio externo. Para este ano, é possível que as exportações brasileiras, com um desempenho sensacional, cheguem a 72 bilhões de dólares. A dívida deve crescer só um pouco, mas, supondo que permaneça estável, aquela relação cairá para 2,91, ainda assim extremamente elevada (veja quadro).

A conclusão inequívoca: o Brasil precisa de mercados. É estratégico para o país lutar pela abertura comercial em qualquer foro internacional, seja na Organização Mundial do Comércio (OMC), na Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ou em negociações com a União Européia. Preservar o Mercosul, a associação comercial com Argentina, Uruguai e Paraguai, tendo o Chile como agregado, também é prioridade, como tem insistido o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas é preciso reconhecer que o Mercosul é pequeno para as necessidades brasileiras. Neste ano, as exportações brasileiras para a Argentina, principal parceiro na região, devem chegar a 3 bilhões de dólares. Digamos que dobrem. Seria um ganho em torno de 5% na pauta total de 2003.

Já os Estados Unidos importam anualmente 1,4 trilhão de dólares. Considerando os demais países das Américas, sócios potenciais da Alca, se está falando de um enorme mercado de 2 trilhões a ser explorado pelas empresas brasileiras. Tome-se o caso do México, antes e depois de ter formado, com Estados Unidos e Canadá, a Área de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, da sigla em inglês). Em 1994, o México exportou 61 bilhões de dólares. Seis anos depois do Nafta, em 2000, alcançava 166 bilhões, um crescimento de 2,7 vezes, o equivalente ao salto que o Brasil está precisando dar.

A lição é clara: o acesso ao maior mercado do mundo faz toda a diferença, como sabem muito bem todos os países que cresceram e ainda crescem vendendo para os EUA, como Japão, Coréia do Sul e China. É verdade que esses três países não têm acordos de livre comércio com os americanos, mas todos, por razões geopolíticas, contaram com regimes especiais de preferência.

Do ponto de vista econômico, portanto, a Alca é ou deveria ser um objetivo estratégico brasileiro. Essa é a posição clara dos ministros Luís Fernando Furlan, do Desenvolvimento, e Roberto Rodrigues, da Agricultura. O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, é mais cauteloso em suas declarações públicas, mas sua equipe, em conversas reservadas, não esconde que apóia a posição dos outros dois ministérios econômicos.

Já o Ministério das Relações Exteriores mantém um forte viés anti-Alca. No comando no Itamaraty, comenta-se que há uma disputa entre mercado e soberania nacional. É uma nova versão da tese segundo a qual a Alca representa a "anexação" das Américas pelos Estados Unidos, enunciada por Lula durante a campanha eleitoral. Ocorre que muita coisa mudou da campanha para o governo e mudou na direção da esquerda para o centro.

Na verdade, no décimo mês de governo, a esquerda petista e dos partidos aliados sente-se pouco representada na administração federal. Não se trata da esquerda radical, da senadora Heloisa Helena e dos deputados Babá e Lúcia Genro, por exemplo, mas daquela mais moderada. Há muita gente fiel a Lula que não aprecia a política econômica atual, torce o nariz para a reforma da Previdência, não engole os transgênicos. Mas pergunte a qualquer um dessa esquerda do que gosta no governo Lula. A resposta sai na hora: da política externa, entendida como o confronto com os Estados Unidos e a associação com demais países do Terceiro Mundo (do Sul) para se opor às nações ricas do Norte.

Está aí, portanto, mais uma divisão perigosa no governo. De um lado, a área econômica, de olho no crescimento das exportações, coloca ênfase na necessidade de negociar. De outro, a esquerda, bem representada pelo Itamaraty, sustenta o discurso da soberania e com isso atira os demais na vala dos traidores da pátria. Querer negociar passa a ser curvar-se aos Estados Unidos. Assim, uma negociação, que deveria ser técnica, acaba dominada pela ideologia.

Em boa parte, o presidente Lula acaba estimulando essa posição. Na abertura do seminário "O Papel dos Legisladores na Alca", no último dia 20, em Brasília, o presidente passou a maior parte do tempo relacionando os riscos, as ameaças e os perigos eventuais da Alca e da predominância dos Estados Unidos. E não dedicou quase nenhuma palavra às enormes vantagens que o Brasil teria com maior acesso aos mercados do novo bloco.

Isso leva, na prática, a uma recusa a iniciar negocia ções, o que é um equívoco e uma perda de oportunidade. A negociação não obriga a nada. É perfeitamente possível levá-la até o fim e, não sendo a conclusão satisfatória, abandonar o barco. É verdade que os EUA apresentaram propostas muito ruins tanto na OMC quanto na Alca. É certo que abusam da atração exercida pelo seu mercado trilionário para exigir contrapartidas desiguais dos eventuais futuros sócios.

Mas é uma negociação, na qual todos começam pedindo tudo o que querem e rejeitando o resto. Como o Brasil, justamente, entra insistindo na abertura do comércio agrícola, o tema mais sensível para EUA e Europa. Fincar o pé nas diferenças iniciais e deixar de lado tudo onde pode haver acordo é a estratégia, ideológica, do confronto.

É verdade que, no mesmo seminário, Lula deixou passar uma frase interessante. Disse que seu governo entende a importância das economias americana e européia para o Brasil e não quer uma política de "confrontação pela confrontação para atender ao discurso ideológico de quem quer que seja". É a tal necessidade de atender dois públicos.

De todo modo, o governo Lula está numa posição delicada. A próxima reunião ministerial da Alca está marcada para 20 e 21 de novembro, em Miami. O Brasil tem responsabilidade redobrada, por ser o co-presidente das negociações, com os EUA, isso num ambiente em que a maioria dos países americanos quer a Alca. Ao mesmo tempo, Lula precisa dar uma satisfação à esquerda, que está gostando muito dessa política externa de confrontar os interesses americanos. Detalhe: em novembro, é provável que o governo esteja assinando um novo acordo com o FMI. Será dose pesada para a esquerda se, além disso, for arquivado o discurso externo anti-Alca. Considerando que nos EUA há fortes posições protecionistas contrárias, por definição, ao acordo, o quadro não é animador para o futuro das negociações.

MEDIDA DO RISCO
Relação dívida externa total/exportações
Brasil*
2,91
México**
0,83
Coréia do Sul**
0,66
China**
0,47
Rússia**
1,3
*Previsão para 2003
**Em 2002
Fontes: The Economist/FMI
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