Economia

O monstro avança

O projeto de reforma tributária deve fazer crescer ainda mais a carga a ser paga por empresas e pessoas físicas

EXAME.com (EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 11h03.

"Num país em que os lucros e ganhos estejam sujeitos a tributos extorsivos, não há capitalismo que vingue."

Mário Henrique Simonsen

Desde o início dos anos 90, virou um hábito acusar os governos brasileiros de pretender inaugurar no país a era do Estado-mínimo. Até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um dos mais entusiasmados críticos do "modelo neoliberal" durante os anos FHC, é hoje tido em alguns setores da opinião pública como um obediente seguidor da cartilha do FMI e do Banco Mundial. Com isso, fica parecendo que o Brasil se transformou no paraíso tropical da iniciativa privada, onde a economia funciona livre de amarras e o Estado encolheu a um ponto de quase inanição. Basta olhar o gráfico ao lado para se dar conta da improcedência desse raciocínio. Ele retrata de maneira inequívoca o fantástico avanço estatal sobre o setor privado, empreendido sobretudo nos últimos dez anos -- a carga tributária que pesa sobre as famílias e as empresas saltou de 22% do PIB em 1989 para 36% em 2002. A realidade é simplesmente oposta à noção de Estado-mínimo: o setor público cresce desenfreadamente e constitui hoje um dos principais obstáculos à volta do crescimento econômico.

Uma boa reforma tributária, portanto, deveria ter como eixo central a necessidade de estancar a voracidade governamental -- para não falar em reduzi-la, meta tida como pouco realista, pelo menos no curto prazo, por dez entre dez especialistas no tema. "A discussão da reforma deveria começar pelo debate sobre o tamanho do Estado", diz Nildemar Secches, presidente da Perdigão, uma das maiores empresas nacionais do setor de alimentos. "Definido um padrão razoável para o país funcionar bem sem sufocar empresas e pessoas físicas, a carga de impostos seria uma conseqüência." Lamentavelmente, há uma completa inversão no debate: membros do governo federal, governadores e prefeitos têm andado às turras na disputa por mais recursos. É como se os problemas brasileiros se limitassem a saber quem ficará com a receita da CPMF ou a da Cide. "Está uma conversa de toma-lá-dá-c", diz Secches. O relator da reforma tributária, deputado Virgílio Guimarães (PT-MG), jura que não quer aumento de carga, mas não é preciso ser nenhum Einstein para perceber qual será o resultado dessa corrida. "A reforma abre espaço para mais aumento de imposto", diz Ernesto Heinzelmann, presidente da Embraco, uma das maiores fabricantes mundiais de compressores para geladeiras. O resultado é que o país está perdendo uma ótima oportunidade de tornar o sistema tributário menos anacrônico, mais amigável e favorável ao bom funcionamento das empresas, à criação de empregos e ao crescimento da economia.

O cerne da proposta do governo é a mudança do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), tributo que responde pela maior parte da arrecadação dos estados. O ICMS possui 44 alíquotas e é regulado por um emaranhado de regras de difícil compreensão. Num esforço de simplificação, o governo planeja unificar o sistema criando apenas cinco alíquotas, que vigorariam em todo o território nacional. No entanto, o que pode parecer uma solução à primeira vista tem tudo para virar um enorme problema. Quando os 27 governadores e seus secretários de finanças começarem a discutir quanto será cobrado em cada produto específico, a pressão para que prevaleçam as alíquotas mais elevadas será grande. "Há um problema lógico nas regras da reforma", diz o economista Ricardo Varsano, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). "O governo diz que ninguém vai perder e que a carga não vai subir. No caso das alíquotas do ICMS, como vão conseguir essa mágica?" O economista Clóvis Panzarini, ex-coordenador tributário do Estado de São Paulo, concorda com Varsano e dá um exemplo: "Hoje há quatro estados que cobram alíquotas de 12% no óleo diesel, enquanto os demais taxam 18%", diz Panzarini. "Na hora de unificar, o que é mais provável acontecer: 23 estados aceitarem reduzir a alíquota para 12%, abrindo assim mão de receita, ou quatro aumentarem para 18%?" A exemplo de Panzarini, a maioria dos especialistas aposta na segunda solução.

Panzarini chama a atenção para um problema adicional do novo ICMS. Segundo o projeto, empresas que pro duzam em um estado e vendam a outro passarão a contribuir para os dois Fiscos -- segundo esse raciocínio, se uma empresa vender a todos os estados, ela será contribuinte de 27 Fiscos diferentes. "E cada estado terá de fiscalizar empresas do Brasil inteiro", diz Panzarini. Trata-se de um detalhe que tem passado despercebido, mas que terá potencial de criar confusões dantescas, além de onerar a vida das empresas. "Hoje já temos uma equipe de dez pessoas só para cuidar do pagamento de impostos", diz Mario Grieco, presidente da subsidiária brasileira do laboratório Bristol-Myers Squibb. "Do jeito que vai, vamos precisar de um time ainda maior só para entender quanto temos de pagar."

Outra distorção do relatório aprovado é a transformação da CPMF num imposto permanente. Os especialistas são unânimes em afirmar que o imposto do cheque é de péssima qualidade. A pedido de EXAME, a consultoria Deloitte Touche Tomatsu fez uma pesquisa sobre quais países possuem tributação semelhante. O resultado deixa pouca margem a dúvida: dos 34 países pesquisados, apenas potências como Filipinas, Venezuela, Argentina, Brasil e Colômbia têm a sua versão da CPMF. Em vez de começar a pensar em como se livrar desse imposto, o governo quer exatamente o contrário: inseri-lo na Constituição, a melhor maneira de garantir que viverá por décadas.

Não é à toa que as principais nações do mundo têm restrições a tributos como a CPMF. Uma das objeções decorre do fato de incidir em cascata, ou seja, gravar cada atividade ao longo da cadeia produtiva. Nada menos que um quarto da carga tributária do país decorre de impostos em cascata. Isso representa um tiro no pé em termos de competitividade: enquanto um produto nacional sofre a incidência dos impostos em cascata inúmeras vezes (pois é cobrada nos insumos e em cada etapa do processo de fabricação), o produto importado acaba não pagando nada. "A economia brasileira vem se abrindo nos últimos anos", diz o economista José Roberto Afonso, consultor técnico da Câmara dos Deputados. "Isso torna o efeito cascata muito mais daninho às empresas."

Segundo o relator da reforma, o deputado Virgílio Guimarães, em pelo menos um caso -- o da Cofins --, o projeto prevê o fim do efeito cascata. Isso é verdade. Mas Guimarães parece ter escolhido o caminho errado. O relatório aprovado na Comissão Especial da Câmara do Deputados na sexta-feira, 22 de agosto, remete para uma lei complementar, a ser aprovada no futuro, quais setores serão beneficiados pelo fim da cascata na Cofins. Trata-se de uma evidente falta de compreensão de como a economia funciona. Não faz sentido dizer que uma indústria será desonerada se a cobrança em cascata permanecer nos insumos usados na produção. Seria muito mais inteligente aproveitar a experiência da cumulatividade do PIS, eliminada no fim do ano passado na economia como um todo. A mesma lei que mexeu no PIS já previa mudança na Cofins -- que pode se complicar agora com a tal idéia de escolha de setores inserida no relatório aprovado pelos deputados.

Como sempre ocorre em mudanças constitucionais, muitos detalhes serão definidos por meio de leis complementares. É assim mesmo que funciona, mas o fato é que isso aumenta o clima de desconfiança em torno do projeto. Exemplo disso é a intenção -- corretíssima -- de desonerar a produção de bens de capital. É uma mudança que poderia ser feita a qualquer momento. No entanto, o governo optou por incluir a alteração na reforma. Resultado: serão quatro votações no Congresso Nacional para então o governo poder encaminhar as leis complementares. Pode até ser que o resultado final seja o mesmo, mas o fato é que há dúvidas sobre qualquer promessa de desoneração. "Não temos muita razão para confiar", diz Heinzelmann. "A CPMF era para ser provisória, não era?"

O projeto também joga para a frente a solução de várias questões. A guerra fiscal, por exemplo, ganhou pelo menos mais nove anos de vida -- isso se o prazo não vier a ser dilatado nas negociações futuras. A zona franca de Manaus será prorrogada até 2023.

A favor da atual administração diga-se que a reforma tributária é assunto dos mais espinhosos. "Ela é muito mais difícil de aprovar do que a da Previdência", diz o cientista político Christopher Garman, da consultoria Tendências. Ninguém imagina que seja fácil agradar a empresários, trabalhadores, governadores, prefeitos, governo federal e cidadãos comuns. Diga-se também que o governo Lula mostrou, em apenas oito meses, mais energia para encarar a questão do que o governo passado em oito longos anos -- período, aliás, recordista em termos de aumento de impostos. Por isso mesmo, é preciso aproveitar a iniciativa para fazer uma boa reforma -- e para que isso aconteça é preciso corrigir drasticamente os rumos. Para o país voltar a crescer, é fundamental contar com um arcabouço tributário que ajude quem, no final das contas, produz: as empresas instaladas no país.

MAIS E MAIS... E MAIS

Nas últimas décadas, a carga tributária do país quase triplicou em % do PIB

ONDE A CONTA PESA

Um estudo da consultoria Deloitte com 34 países mostra que o Brasil está entre os poucos que mantêm tributos sobre o faturamento das empresas e sobre a movimentação financeira. Os países desenvolvidos e os Tigres Asiáticos não cobram nenhum deles

Países que cobram tributos sobre o faturamento...
China 3% a 20% Brasil 4,65%
Tailândia 10% Bolívia 3%
Venezuela 10% Grécia 3%
Argentina 6% Hungria 2%
Filipinas 5% Colômbia 1,38%
Guatemala 5% França 1,30%

...sobre a movimentação financeira...
Filipinas 3%
Venezuela 1%
Argentina 0,60%
Brasil 0,38%
Colômbia 0,30%

...e países que não cobram nenhum dos dois tributos
Alemanha, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Cingapura, Coréia do Sul, Equador,
Espanha, Estados Unidos, Holanda, Hong Kong, Irlanda, Itália, Japão, Malásia,
México, Peru, Polônia, Portugal, Reino Unido e Taiwan

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