Economia

O consumidor à meia-luz

Como o racionamento mudou o humor, os hábitos e as compras dos paulistanos - e as oportunidades de negócios que surgiram com a ameaça do apagão

EXAME.com (EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h55.

No princípio foi o susto - que se transformou em indignação, raiva, medo e até mesmo pânico. Com o passar das semanas, esse cipoal de sentimentos foi se amoldando em realismo e em determinação para chegar a uma meta comum. Alcançado o objetivo, veio o alívio, a sensatez e, finalmente, o relaxamento. Essa foi a trajetória passional dos paulistanos sob o racionamento de energia elétrica, de acordo com a mais profunda pesquisa já realizada sobre o tema no Brasil. Em parceria com EXAME SÃO PAULO, a agência de publicidade Young & Rubicam coordenou três pesquisas para desvendar as reações dos consumidores paulistanos desde que receberam as suas metas de consumo de eletricidade. Reuniões de discussão com grupos de paulistanos das classes A, B, C e D revelaram as dificuldades sentidas para se adaptar à nova situação. Logo depois, 400 pessoas foram entrevistadas na Grande São Paulo para opinar sobre a crise energética. Por fim, entrevistadores passaram um dia inteiro acompanhando consumidores em suas casas, no supermercado e na escola para compreender como a economia de energia mudou os hábitos de consumo e a convivência familiar.

Durante quase dois meses, uma equipe de mais de 20 pessoas da Y&R e da empresa de pesquisas Jump tabulou e avaliou os resultados. Os dados apresentados ao longo desta Reportagem de capa mostram que a ameaça do apagão provocou transformações muito mais significativas do que a mera economia de energia. Atingiu em cheio o equilíbrio familiar, transformou a forma como os consumidores se relacionam com os produtos e abriu oportunidades para empresas que se coloquem à disposição de um público em transformação. "A pesquisa mostra que não só o consumidor paulistano mudou por causa do racionamento como, provavelmente, ele não será mais o mesmo quando essa crise terminar", afirma a psicóloga Isabel Coutinho, gerente da Young & Rubicam e coordenadora da pesquisa.

A gerente do apagão

O melhor exemplo dessa mudança está no papel da mulher. Responsável na tradicional estrutura familiar por um acúmulo de funções que inclui o próprio emprego, a educação dos filhos e o bom funcionamento da casa, a paulistana se transformou na grande "gerente do apagão". Foi ela que reorganizou as tarefas domésticas, decidiu quais eletrodomésticos deveriam funcionar e fiscalizou o cumprimento das novas regras de convivência familiar. Foi a mãe que controlou o tempo de banho dos filhos e não permitiu que mais de um aparelho de TV ficasse ligado ao mesmo tempo. Na cozinha teve mais trabalho, sem poder contar com a praticidade dos congelados. "O estudo mostra sem sombra de dúvida que foi a mulher que fez o racionamento dar certo", diz Isabel. De cada quatro paulistanos entrevistados pela Y&R, três avaliam que a dona de casa foi a maior prejudicada pelo racionamento. Outros números confirmam essa constatação: 55% disseram que ficou mais difícil preparar a comida - um resultado natural para uma cozinha com microondas, freezer, liquidificador, batedeira e máquina de lavar louça desligados.

A ação da gerente do apagão paulistana teve um efeito brutal na economia. Em nenhuma outra metrópole do país se poupou tanta eletricidade quanto na Grande São Paulo. Dados da Eletropaulo mostram que nos quatro meses do racionamento os paulistanos cortaram em média 25% do consumo de energia, enquanto a média nacional é de 19%. "São Paulo é a região mais rica do país, portanto com mais equipamentos eletrônicos e mais folga para cortar", analisa Fernando Mirancos da Cunha, gerente de atendimento da Eletropaulo. Na economia, a determinação dos paulistanos virou as estatísticas de cabeça para baixo. A indústria paulista, que contava em expandir sua produção em 6,4%, agora prevê crescer entre 1% e 2%. O setor de eletrodomésticos, que trabalhava com 6% de faturamento a mais que em 2000, deve fechar dezembro com crescimento zero. Isso ainda porque grandes lojas paulistas fizeram promoções de seus estoques, desovando com margem de lucro irrisória videocassetes e freezers que em condições normais não teriam saída. O setor de supermercados - afetado pela queda nas vendas dos congelados - deve crescer apenas 1%. Grandes redes de supermercados notaram um fenômeno curioso em São Paulo: o faturamento global caiu, mas o número absoluto de compras aumentou. Isso significa que, sem poder contar com os congelados, os clientes estão indo mais vezes ao supermercado e fazendo compras menores.

Mesmo o lazer do paulistano está mudando. Parques de diversão, como o Hopi Hari, em Vinhedo, suspenderam brinquedos para economizar energia, mas mantiveram o mesmo público de outros anos. "Se fosse um ano normal, haveria protesto", afirma Marcelo Lopes Cardoso, superintendente do parque. "Como era para ajudar o racionamento, o público entendeu e aceitou." Nas redes de cinema, não houve mudança significativa de público - apesar de uma redução de até 50% nos gastos com ar-condicionado. Em compensação, o lazer que depende da eletricidade do próprio paulistano diminuiu. A locação de vídeos caiu de 15% a 25%, dependendo da região da cidade. Para analistas da Confederação Nacional da Indústria, essas mudanças de hábitos podem levar a uma tendência de migração do consumo de eletrodomésticos para bens semiduráveis, como roupas, calçados e alimentos.

Os grandes vilões

Logo que o racionamento começou, a população escolheu alguns eletrodomésticos como os vilões dos gastos de energia: os aparelhos de microondas, os freezers e os chuveiros. Fracassou o esforço das indústrias em demonstrar que o gasto de um aparelho está diretamente relacionado ao tempo em que fica ligado. Dois exemplos mostram como essa informação não chegou às casas. Uma máquina de lavar roupa que for usada sem aquecimento, apenas com o ciclo de água fria, durante todos os dias de um mês, terá aumentado a conta de luz em apenas 1,50 real. Outro dado comprovado da indústria e em que pouquíssimas donas de casa acreditam: um forno de microondas pode ser usado 10 minutos por dia, gastando ao final do mês 1,80 real. Não adiantou. As vendas das máquinas de lavar roupa caíram 15%, enquanto o faturamento de algumas marcas de microondas desabou até 70%.

Muito mais grave foi a crise dos chuveiros. A produção caiu quase 40% em junho e nunca mais voltou ao normal. Nos últimos três meses, quase mil funcionários das fábricas de chuveiros foram demitidos. No ano passado, nesse mesmo período, as fábricas estavam contratando mão-de-obra temporária. Na outra ponta desse mercado, houve um boom nas instalações de chuveiro a gás. Entre maio e julho, o preço de um chuveiro a gás em São Paulo passou de 800 reais para 1,2 mil reais, com fila de espera de duas semanas. A diferença na conta é uma economia que varia de 30% a 50%.

Outra revelação importante da pesquisa foi derrubar, como ingênua, a tese de que o racionamento permitiria uma convivência tranqüila com a família reunida na mesma sala. A pressão pelo cumprimento da meta criou um ambiente tenso, de cobranças e culpas. O lar paulistano - naturalmente inseguro pelo medo da violência e do desemprego - deixou de ser um lugar aconchegante. Nas discussões de grupo, os paulistanos disseram que suas casas ficaram "mais tristes". Citaram como motivos a escuridão, as luzes brancas mais econômicas, a ausência de música e a falta de visitas de amigos. Convidados a concordar ou discordar de algumas afirmações, a maior parte dos paulistanos descartou que o racionamento tenha provocado a união familiar, aproximado pais e filhos e ocasionado mais jantares conjuntos. Um em cada cinco entrevistados revelou que o racionamento aumentou o número de discussões entre pais e filhos.

O raio-x do regime do racionamento descoberto pelo levantamento da Y&R mostra um quadro de inconformidades. Estimulados a relacionar o que o racionamento trouxe de ruim, os entrevistados citaram a perda de liberdade (27%), o desconforto (23%) e a insegurança (16%). Raiva, sensação de injustiça e medo foram os sentimentos mais citados na pergunta sobre a reação à necessidade de economizar. A maioria dos paulistanos admitiu que apenas cumpria as metas por medo do corte de luz. Segundo o levantamento da Y&R, 79% dos paulistanos diminuíram o uso do chuveiro, 61% assistiram menos à TV e 21% deixaram de ouvir música no aparelho de som. Houve medidas mais drásticas: 31% dos paulistanos simplesmente desligaram o microondas, 26% pararam de assistir a vídeo ou DVD e de 20% a 24% tiraram da tomada a batedeira, o rádio-relógio, o aparelho de som, a máquina de lavar roupa e o liquidificador. Como era de esperar, as críticas mais duras tiveram como alvo o governo federal. Para 68%, o governo demorou a tomar providências e 61% acham que as autoridades avisaram tarde demais a população da gravidade da crise. Apenas 13% consideraram que o governo agiu corretamente no caso.

Marketing do Procel

Apesar da indignação inicial, os paulistanos tiveram uma reação de alívio ao receber as primeiras contas. A grande maioria conseguiu ficar dentro da faixa de 20%. Foi a partir do final de agosto (quando os consumidores começaram a se acostumar com a nova realidade) que as empresas de eletroeletrônicos notaram uma mudança substancial no perfil das suas vendas. Pela primeira vez, o comprador de um eletrodoméstico passou a observar se o produto havia recebido o selo do Procel (Programa de Combate ao Desperdício de Energia Elétrica, coordenado pela Eletrobrás). Criado em 1994, o selo Procel identifica, depois de dezenas de testes, os produtos com melhor relação entre desempenho e consumo de energia. Uma geladeira com o selo Procel consome de 40% a 45% menos energia do que os modelos fabricados até 1995. Cálculos mostram que ao final de um ano o dono de um refrigerador novo consumiu de 20 a 40 quilowatts a menos por mês do que quem tem um produto com seis anos de uso. "Antes ninguém dava valor ao selo", diz Peter Händel, diretor administrativo e financeiro da BSH Continental. "Agora ele virou uma importante ferramenta de marketing." Graças aos produtos eficientes, a expectativa da BSH Continental é vender neste ano 5% mais refrigeradores do que no ano passado. Um refrigerador é responsável por um terço do consumo de energia da casa. A estimativa é de que existam hoje cerca de 40 milhões de geladeiras nos lares brasileiros. Dessas, 28 milhões são ineficientes. "É uma conjuntura extraordinária para compensar os efeitos ruins da crise", diz Händel.

Para discutir a relação pós-racionamento entre o paulistano e as empresas, EXAME SÃO PAULO e o Instituto de Marketing Industrial reuniram no dia 15 de outubro executivos de 20 empresas de setores variados. Foram apresentadas algumas tendências de mercado encontradas pelos pesquisadores da Y&R durante as discussões de grupo. A maioria dessas tendências tem como principal objetivo facilitar a vida dos consumidores com iniciativas como a fabricação de produtos mais simples, com menos funções e mais informações de consumo. "Existem dois tipos de postura que uma empresa pode ter num momento importante como este", afirma José Carlos Teixeira Moreira, presidente do Instituto de Marketing Industrial. "A primeira é esperar o consumidor exigir um novo produto ou uma nova tecnologia. A segunda é se colocar no lugar do consumidor e pensar nas suas necessidades. Esta é a mais difícil, mas também a mais eficiente."

A fase mais recente da convivência do paulistano com a crise energética mostra um certo relaxamento. Já com uma noção sobre como sobreviver gastando 20% menos, o paulistano passou a consumir um pouco mais, tanto em quilowatts quanto em reais. Em outubro, segundo projeções, o consumo de eletricidade na Grande São Paulo deve ser um dos maiores desde o início do racionamento. Também há expectativa entre as indústrias. A Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros) ainda não fechou os números de setembro, mas a estimativa preliminar é de que as vendas tenham crescido 20% em relação a agosto. "A consciência do consumidor mudou", afirma Paulo Saab, presidente da Eletros. "Ele percebeu que não precisa desligar os equipamentos. É só usar sem desperdício. A ameaça de apagão valorizou os produtos mais eficientes em consumo de energia."

É essa certeza que tem movido a rotina da fabricante de motores Weg. A empresa catarinense, que tem uma fábrica em Guarulhos, conta com uma carteira lotada de encomendas de motores mais eficientes e econômicos. "Nossos clientes querem motores para uso doméstico, mas com eficiência industrial", diz Joambel Marques, diretor executivo. Entre os clientes da Weg está a Multibrás (fabricante das marcas Brastemp e Cônsul), que prepara o lançamento de produtos mais econômicos. Um modelo para a Multibrás é a sua controladora, a americana Whirlpool. Neste ano, a Whirlpool lançou nos Estados Unidos uma lavadora de roupas que usa metade da água e 66% menos energia que as máquinas tradicionais vendidas no Brasil. Os televisores Semp Toshiba que chegarão ao mercado no início do próximo ano também terão um consumo de energia em torno de 40% menor que o dos atuais aparelhos. "Conseguimos essa redução mediante o uso de materiais com características técnicas superiores, sem aumentar os custos", diz Sergio Rubens Loeb, presidente da Semp Toshiba. Segundo Loeb, todos os produtos da empresa deverão sofrer algum tipo de mudança para aumentar a economia. Ele acha pouco provável que um consumidor vá trocar seu atual televisor por outro modelo motivado unicamente pela questão da energia. "Mas, para quem tem a intenção de comprar um televisor, o consumo de energia passa a ser um ponto importante na escolha", diz.

Competindo com a crise

Já o marketing pós-racionamento ainda está à procura de um caminho. Muitas empresas acreditam que cumpriram a sua parte soltando informativos no início da crise energética. Outras ainda duvidam que o consumidor realmente vá mudar os seus hábitos por causa da conta de luz. João Cláudio Guetter, vice-presidente da Electrolux para América do Sul e Central na divisão de produtos floor care (que engloba aspiradores de pó, enceradeiras e lavadoras de alta pressão), afirma que uma campanha agressiva para diferenciar ou reforçar a marca, no atual clima de ameaça de apagão, não surtiria efeito. "É difícil competir com o Jornal Nacional falando da crise de energia todos os dias", diz Guetter. Em vez de investir numa campanha de marketing, a Electrolux treinou os vendedores para orientar os consumidores sobre o baixo consumo dos modelos mais recentes. Nos primeiros meses de racionamento, junho e julho, as vendas da empresa tiveram uma queda de 50% em relação ao mesmo período do ano passado. Em agosto e setembro, as vendas reagiram, mas ainda ficaram de 25% a 30% abaixo do registrado em igual período de 2000. Opinião semelhante à de Guetter tem Ricardo Uotani, gerente de marketing de eletrônicos de consumo da Panasonic. "Nossos produtos já incorporam a cultura da conservação de energia", afirma Uotani. Por que não alardear isso numa campanha de marketing mais agressiva? O executivo argumenta que a prioridade da Panasonic neste momento de alta do dólar é recuperar a rentabilidade de seus produtos. "A desvalorização cambial está nos afetando mais que a crise de energia", diz Uotani.

Há posturas mais agressivas. Afogada na crise dos chuveiros, a Corona lançou uma ducha que consome 20% menos energia que um aparelho comum. Outro setor afetado, o de aparelhos de ar condicionado, está mudando de foco: em vez de buscar novos consumidores, a gaúcha Springer Carrier decidiu tentar convencer os que têm aparelhos antigos a trocá-los por modelos mais modernos e econômicos. "É uma oportunidade de negócios criada pela crise de energia", afirma Toshio Murakami, superintendente comercial da Springer Carrier. Ele estima que a empresa deva fechar este ano com um volume de vendas no mínimo 5% maior que o do ano passado.

As questões levantadas pela pesquisa da Y&R, no entanto, são mais profundas. Está claro que não basta uma empresa fabricar produtos com selos de eficiência se a informação não chega ao consumidor. "O consumidor sabe que fez um grande sacrifício com o racionamento", afirma Jussara Pereira de Souza, da consultoria Itim Brasil. "Neste momento, as empresas devem mostrar que estão do lado do consumidor, que querem ajudá-lo, e não se aproveitar dele." Na avaliação de Cristiano Ramos de Souza, vice-presidente de marketing da MKTools DDB, a crise de energia pode fermentar novas relações para os negócios. "Fatores externos forçaram o consumidor a algumas necessidades", diz. "Primeiro, a de informação confiável que o ajude a conviver com o racionamento. Depois, a de apoio na tarefa de economizar. Tudo isso abre uma possibilidade de novos vínculos entre as empresas e seus consumidores."

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