Na vala comum
É lamentável que um dos raros oásis de eficiência no setor público -- a Receita Federal -- tenha sido tragado pelas obscuras disputas políticas do governo
Da Redação
Publicado em 19 de maio de 2010 às 09h42.
Alguma coisa estranha, provavelmente muito estranha, aconteceu ou está acontecendo com a Receita Federal. Em primeiro lugar, a secretária Lina Vieira, após pouco menos de um ano no cargo, foi demitida em meados de julho sem que até hoje o governo tenha fornecido algum motivo claro para isso; não se sabe com precisão, sequer, quem realmente a mandou embora. Lina teria sido dispensada porque a arrecadação federal caiu durante o seu período de permanência no comando. Ou, então, porque entrou do lado errado numa disputa altamente técnica com a Petrobras a respeito de impostos no valor de 4 bilhões de reais que a empresa teria a obrigação de recolher, segundo a Receita, ou o direito de não recolher, segundo a estatal. Citam-se também obscuras disputas entre grupos internos, nas quais a secretária teria acabado levando a pior, ou desentendimentos com superiores hierárquicos não satisfatoriamente definidos.
Mais recentemente, enfim, a demissão de Lina passou a ser ligada a um choque com a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, em torno de investigações sobre a situação fiscal de negócios da família Sarney. (A propósito: já não estaria na hora de criar um ministério, ou pelo menos uma secretaria "com status de ministério", para cuidar exclusivamente das questões envolvendo o senador Sarney? Fica aí a sugestão.) Tão inquietante quanto essa nebulosa toda foi a demora para a nomeação do novo titular, Otacílio Cartaxo, que só acabou sendo feita no dia 13 de agosto. Quando Lina Vieira foi demitida, o mínimo que se poderia esperar era que o governo já tivesse, mais do que pronto, um nome para colocar no cargo; afinal, a Receita Federal não é uma repartiçãozinha de quinto escalão que possa ficar sem chefe esse tempo todo. Mas o fato é que o governo não tinha tal nome -- ou, se tinha, não conseguiu fazê-lo assumir o posto na hora certa. É ruim dos dois jeitos.
Nada disso melhora com a discussão enjoada que apareceu nos últimos dias envolvendo Lina e Dilma, e que acabou por ocupar um dos lugares de destaque no noticiário político recente. Lina disse que foi chamada por Dilma, quando ainda ocupava a direção da Receita, para uma conversa no Palácio do Planalto na qual a ministra teria lhe pedido que fizesse alguma coisa para "agilizar" uma solução nos dissabores tributários do clã Sarney. Dilma afirma que teve contatos normais de trabalho com Lina, mas que a reunião particular a que ela se refere jamais aconteceu, e que o assunto Sarney em nenhum momento foi tratado entre as duas. Desde então, nem a ex-secretária nem a ministra mudaram em nada as suas versões. Como é que fica, então? Uma das duas partes está mentindo -- ou no mínimo, e na melhor das hipóteses, existe aí um tremendo mal-entendido, que o passar dos dias não está ajudando, nem um pouco, a tornar mais bem entendido. Ao contrário, e muito naturalmente, o assunto foi promovido à categoria de "questão política". A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou convite para Lina Vieira ir depor, e a partir daí as divergências sobre a reunião -- aconteceu? não aconteceu? há provas materiais do encontro? o que mostram os vídeos da garagem do Palácio do Planalto? que roupa Dilma vestia? -- ganham novos atores, plateia e direção de cena, sem ganhar perspectivas reais de que a verdade apareça. É o Brasil.
Para o maior interessado na história, o contribuinte brasileiro, tudo isso é uma lástima. A Receita Federal é uma divisão modelo dentro da administração pública brasileira. Sua competência tecnológica a coloca entre as melhores e mais eficazes processadoras de impostos do mundo. Seu corpo de funcionários foi aprovado em concurso público. Seu desempenho faz dela um oásis de qualidade profissional na máquina do governo. É o último lugar, portanto, que deveria ser contaminado com disputas de força dentro do governo e arrastado para a vala comum da desconfiança que desmoraliza uma porção tão grande do poder público no Brasil.