Globalização não sumirá, mas o mundo mudou para sempre, diz Eichengreen
"Grande Depressão fez desemprego nos EUA subir de 3,5% para 25% em quatro anos. Agora, podemos chegar a isso em quatro semanas", diz economista
João Pedro Caleiro
Publicado em 19 de abril de 2020 às 08h00.
Última atualização em 19 de abril de 2020 às 09h33.
A crise do coronavírus não vai durar para sempre, mas não espere que o crescimento, a globalização e o comércio simplesmente voltem ao normal quando a pandemia for controlada.
O diagnóstico é do economista americano Barry Eichengreen, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley e ex-consultor sênior no Fundo Monetário Internacional (FMI).
"As famílias se deram conta agora que não tinham poupanças suficientes para lidar com esse choque. Elas estarão preocupadas de que o vírus vai voltar, ou que haverá outro choque igualmente severo", diz.
Por isso, Eichengreen não está otimista sobre a possibilidade de uma recuperação rápida da crise, vê um risco de que mercados emergentes tenham que eventualmente renegociar sua dívida e encara a resiliência da China como um ponto positivo, ainda que apenas de forma relativa.
"A China vai brilhar mais do que o resto de nós no curto prazo, mas não brilhará tão forte como antes", diz o economista. Veja a entrevista concedida por e-mail para EXAME:
O FMI prevê a maior depressão econômica desde os anos 30, mas naquela época a economia era totalmente diferente. Como essa crise é diferente das anteriores e como isso afeta nossa resposta?
Essa questão é muito ampla para que seja possível uma resposta definitiva. Mas destaco dois pontos. A Grande Depressão foi uma crise que começou no sistema financeiro, que colapsou e com isso infectou o resto da economia. Já a crise atual começou no resto da economia, e agora pode ou não infectar o sistema financeiro.
A Grande Depressão fez o desemprego nos EUA subir de 3,5% para 25% ao longo de quatro anos. Dessa vez, podemos chegar a um desemprego de 25% em quatro semanas.
As comparações com a Grande Depressão sempre se tornam populares quando alguma coisa dá muito errado. Mas este é um tipo de crise totalmente diferente.
Antes da crise, era comum ouvir de economistas que estávamos sem armas para combater uma nova desaceleração. Daí veio a pandemia. A resposta veio principalmente via pacotes de proteção aos mais afetados, o que é diferente de estímulo. Qual o arsenal disponível, e como deve ser utilizado?
É totalmente apropriado se concentrar no apoio social, que você chama de "pacotes de proteção", agora que as pessoas precisam deste escudo.
Não queremos dar estímulos para que as pessoas voltem ao trabalho antes que seja seguro para que façam isso, o que apenas levaria a mais mortes. Mas eventualmente teremos mais imunidade, testagem, rastreamento de casos e, esperamos, uma vacina que torne seguro para as pessoas voltarem ao trabalho. Neste ponto será apropriado contar com o "bom e velho estímulo"
Considerando que as pessoas estarão reticentes em relação a gastar, sem saber se o vírus voltará, este apoio fiscal, onde for disponível, será necessário por um período de tempo significativo.
Antes de 2008, taxas de juros negativas eram uma impossibilidade teórica; hoje, são comuns. Há espaço para inovações em política econômica e ferramentas sem precedentes - como o financiamento direto de estímulos, apelidado de "dinheiro jogado do helicóptero"?
"Dinheiro jogado do helicóptero" e bancos centrais comprando os títulos que os governos emitem para financiar seus "pacotes de proteção" (as transferências de pagamentos para famílias) não são, na verdade, coisas tão diferentes uma da outra.
Se os governos se mostrarem incapazes de transferir pagamentos para os necessitados, seja porque a burocracia é insuficiente, seja porque muitas pessoas não são bancarizadas, então há um argumento para oferecer uma conta para todo e qualquer cidadão no banco central, e então fazer um depósito do governo nesta conta.
A projeção do FMI para países muito afetados, especialmente europeus, é de um forte tombo do PIB em 2020, mas com forte recuperação em 2021. Você é otimista sobre a possibilidade da "recuperação em V"?
Não. Eu vislumbro uma recuperação mais no "formato U" ou no formato "sinal de visto".
As famílias se deram conta agora que não tinham poupanças suficientes para lidar com esse choque. Elas estarão preocupadas de que o vírus vai voltar, ou que haverá outro choque igualmente severo. Então veremos mais poupança como forma de precaução.
As empresas, da sua parte, não estarão dispostas a se comprometer com projetos ambiciosos de investimento enquanto não estiverem certas de que o vírus não vai retornar. Então o gasto continuará moderado, o que significa nada de "recuperação em V".
Antes da crise a China desacelerava, mas ainda era um ponto de luz em termos de crescimento e sustentação dos preços de commodities. Ela pode seguir neste papel? Os fundamentos econômicos são fortes?
A China anunciou uma queda enorme do seu resultado no primeiro trimestre de 2020. Ela vai voltar a se expandir novamente no segundo trimestre, mas enfrenta mercados de exportação fracos.
O governo está exercendo precaução em relação a reforços de liquidez e crédito, devido ao seu já sério problema de dívida no setor corporativo. Então "ponto de luz" é um termo relativo. A China vai brilhar mais do que o resto de nós no curto prazo, mas não brilhará tão forte como antes.
Como serão pagos todos estes enormes pacotes que estão sendo implementados?
Em alguns países, onde as taxas de juros estão ainda mais baixas do que as taxas de crescimento - o que significa os Estados Unidos e partes da Europa - estes pacotes essencialmente se pagam sozinhos.
Em outros lugares, as opções são rodar enormes déficits orçamentários no futuro e usar inflação para aliviar o peso dessa dívida.
Impulsionar o crescimento, para fazer crescer o denominador da fórmula dívida como proporção do PIB, é a melhor solução de todas - mas isso é algo mais fácil de falar do que de fazer.
Há risco de uma nova crise do euro como em 2011, ou crises em países emergentes como a da dívida externa nos anos 80, ou aquelas da Ásia nos anos 90?
A Europa terá que concordar com algum tipo de mutualização da dívida, o que se chama às vezes de "Coronabonds" de forma que a União Europeia, que é mais importante do que o euro, sobreviva. E eu acho que assim irá acontecer, no final das contas.
Muitos mercados emergentes terão que reestruturar a sua dívida externa. Isso é algo que parece acontecer uma vez a cada geração, e está prestes a acontecer novamente.
Governos em países como Israel e Hungria estão usando a crise para concentrar poder. Já líderes populistas que inicialmente subestimaram a doença, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, parecem enfraquecidos. Quais as consequências disso na dinâmica global de poder?
É previsível que uma emergência de saúde pública, tal como uma guerra, crie o desejo por um líder forte, vigoroso, carismático e competente. Vemos Orbán [na Hungria], Trump, Bolsonaro e outros buscando vestir esse manto.
Mas força, vigor e carisma não garantem competência. E se a competência está em falta, então o líder em questão não manterá o seu nível inicial de apoio.
Acabamos de passar por uma guerra comercial. Este será um novo golpe na globalização?
Certamente. As empresas estarão encurtando as cadeias de surprimento. As remessas de rendimento do turismo estão colapsando. Viagens internacionais não vão se recuperar no futuro próximo.
Eventualmente, veremos o comércio de mercadorias e o investimento estrangeiro começarem a se recuperar. Então a globalização como a conhecemos não vai desaparecer, mas o mundo foi modificado para sempre. O futuro não vai mais lembrar o que foi o passado imediato.