Fim do apartheid? Não em termos econômicos
Para os sul-africanos negros, que compõem 75% dessa nação, a libertação política ainda não se traduziu em ganhos materiais mais amplos
Da Redação
Publicado em 8 de novembro de 2017 às 19h28.
Última atualização em 8 de novembro de 2017 às 19h32.
Crossroads, África do Sul – O fim do apartheid deveria ter sido um novo início.
Judith Sikade fazia planos para sair da favela, onde o governo tinha forçado os negros a viver. Queria encontrar um emprego na Cidade do Cabo, trocando seu casebre por uma casa com facilidades modernas.
Mais de duas décadas depois, Sikade, 69 anos, vive em uma rua cheia de lixo de Crossroads, onde milhares de famílias negras usam tábuas e folhas de metal corrugado para construir casebres abafados porque não têm para onde ir.
“Eu fui só pulando de uma choça para outra. Continuo vivendo no apartheid”, constata ela.
Na história dos direitos civis, a África do Sul foi palco de uma conquista marcante: a destruição do apartheid e a construção de uma democracia. Porém, para os sul-africanos negros, que compõem 75 por cento dessa nação cuja população chega a 55 milhões, a libertação política ainda não se traduziu em ganhos materiais mais amplos.
A segregação ainda existe basicamente em termos econômicos.
Depois que o regime caiu, o governo deixou terras e outros bens nas mãos de uma elite predominantemente branca. Sua renitência em transferir grandes terrenos refletia a relutância em aborrecer os investidores internacionais.
Atualmente, milhões de negros daquele país simplesmente não têm e nunca tiveram o capital necessário para abrir um negócio. Menos da metade da população em idade produtiva está oficialmente empregada.
O partido da situação, o Congresso Nacional Africano, construiu bairros inteiros de novas moradias para os negros, mas concentradas nas townships, reforçando as estruturas geográficas do apartheid. Grandes porções dessa população continuam reduzidas à miséria, vivendo em terrenos que não possuem legalmente.
“Nunca acabamos com o apartheid de verdade”, admite Ayabonga Cawe, ex-economista da Oxfam, organização internacional que combate a pobreza, e que hoje tem um programa de rádio.
Na era pós-apartheid, a África do Sul teve que basicamente recriar uma economia dominada pela mineração, expandindo-se em setores modernos como turismo e agricultura, enquanto superava um legado de exploração colonial, opressão racial e isolamento global, resultado de décadas de sanções internacionais.
Mesmo assim, de 1998 a 2008, a economia cresceu aproximadamente 3,5 por cento ao ano, dobrando o tamanho da classe média negra. O governo construiu milhões de casas, estendeu o alcance à água potável e à eletricidade e ofereceu subsídios a milhões de pobres.
Entretanto, a crise financeira global de 2008 arrasou o país, destruindo a demanda pelos depósitos minerais que eram a base de sua economia, acabando assim com metade dos quase dois milhões de empregos que tinham sido criados nos quatro anos anteriores.
Tendo crescido em uma township perto de Durban, na costa leste, Siyabonga Mzulwini depositou sua esperança no poder transformador da educação.
Durante o apartheid, a educação dos negros se resumia à garantia da pobreza permanente, uma vez que o sistema educacional bantu fora criado para simplesmente produzir grandes números de operários de baixa capacidade e salários para fomentar a indústria mineradora.
Quatro anos atrás, Mzulwini, 28 anos, se formou em um curso técnico, com diploma em Administração de Empresas.
Os currículos que enviou não tiveram resposta; por isso, ele e mais três amigos se uniram e viraram sócios da própria empresa, torcendo para conquistar os contratos públicos reservados para as empresas dos negros.
Mas quando foram aos bancos pedir financiamento, foram recusados porque não tinham bens que pudessem dar como garantia.
Dez por cento de todos os sul-africanos – a imensa maioria de brancos – são donos de mais de 90 por cento da riqueza nacional, segundo uma pesquisa feita em 2016 por Anna Orthofer, aluna da Universidade Stellenbosch. Cerca de 80 por cento da população, praticamente todos negros, não têm nada.
Isso é resultado do colonialismo e do preço negociado para o fim do apartheid sem que houvesse uma guerra civil: com o objetivo de ganhar o consentimento do Partido Nacional para a realização de eleições, o CAN renunciou às transferências de terra do controle dos brancos para os negros.
Uma vez no poder, o Congresso Nacional Africano relutou em instaurar medidas que pudessem ser consideradas radicais pelos investidores internacionais, ainda que causando prejuízo para a classificação de crédito do país.
O novo governo se deparou com um déficit orçamentário astronômico, além de uma demanda imensa de moradia e eletricidade. Só que construção em grande escala exige empréstimos de investidores estrangeiros. As transferências de terras podiam assustar os mercados, ameaçando os planos públicos.
Assim, o governo satisfez os aplicadores estrangeiros e começou a trabalhar nas townships; só que essa resolução teve um preço – que quem acabou pagando foi gente como Mzulwini e seus sócios.
Abriram a empresa, sim, mas começaram operando com os mesmos bens que suas famílias tinham durante o apartheid – ou seja, nada.
“O sistema não funciona”, afirma Mzulwini.
Laços com o governo
Na verdade, funciona, sim – embora quase sempre em benefício daqueles que o administram.
Como Marcus Moloeli.
Aos 38 anos, ele vive em um condomínio fechado no topo das colinas verdejantes ao norte de Durban, às margens do Oceano Índico. Seu sobrado tem banheiros impecáveis, garagens para duas Mercedes e um Audi, sem contar o carrinho de golfe que usa para ir ao clube de campo no centro do complexo.
Há um tempinho, ele passou algumas horas comigo para tentar explicar como um negro nascido no apartheid sul-africano conseguira chegar até ali.
Na escola onde estudou, dentro de uma township, eram dez crianças usando um único livro. No ensino médio, conseguiu sobreviver em um colégio técnico reservado para os indianos. Depois de formado, foi embalar mantimentos; a seguir, mudou-se para Johanesburgo, onde foi trabalhar como entregador de móveis antigos – até que se voluntariou em uma liga jovem subsidiada pelo governo que, por sua vez, lhe rendeu um emprego no gabinete de Jacob Zuma, supervisionando as questões da juventude.
Dois anos atrás, ele abriu uma consultoria própria, assessorando as prefeituras na administração da infraestrutura. Não demorou muito a ficar rico.
O número de milionários negros, asiáticos e mestiços na África do Sul pulou de 6.200 para 17.300 no período de 2007 a 2015, segundo a New World Wealth, consultoria de Johanesburgo – e o que muitas dessas pessoas têm em comum são laços lucrativos com o governo.
Quatro anos atrás, Andile Lili, na época um vereador da Cidade do Cabo de 37 anos, começou a ouvir reclamações de eleitores insatisfeitos, moradores de um assentamento localizado perto do aeroporto, que já fizera parte de um lixão, com o nome improvável de Barcelona.
As autoridades locais tinham construído banheiros públicos que eram esvaziados em baldes brancos gigantescos, entregando a responsabilidade da coleta para uma empresa particular que, por sua vez, enganara os funcionários, que entraram em greve. Com isso, nas trilhas de terra de Barcelona começaram a se formar poças de dejetos humanos. O cheiro se tornou insuportável.
Essa condição é resultado de uma decisão econômica tomada nos primeiros anos da era pós-apartheid.
Deparando-se com a necessidade de transformar o empoderamento político negro em ganhos materiais, alguns integrantes do CNA sugeriram o desmantelamento das townships e o reassentamento de seus moradores nas periferias das cidades. Melhor seria construir casas novas ligadas ao transporte público, que colocassem as pessoas mais perto do emprego.
Porém, Nelson Mandela, na época presidente, argumentou que a África do Sul não podia esperar por uma nova obra – e optou por fazer a melhoria nas casas existentes, ao mesmo tempo aumentando as townships com a compra de terras.
Entre 1994-2004, o governo construiu quase dois milhões de casas novas em assentamentos informais.
“Nós basicamente reforçamos os problemas do apartheid comprando toda essa terra a preço de banana, o mais longe possível da cidade”, diz Alan Hirsch, membro do Departamento de Indústria e Comércio durante o governo Mandela, e hoje diretor da Faculdade de Política e Prática de Desenvolvimento da Universidade da Cidade do Cabo.
Hoje em Barcelona, a empresa contratada aparece para recolher os baldes a cada três dias, mas o sistema tosco continua uma das principais facetas do dia a dia local.
A moradora Nombulelo Sakwe, 38 anos e quatro filhos, nunca conseguiu um emprego em período integral, mas trabalha dois dias por semana como doméstica na casa de uma família branca na Cidade do Cabo, ganhando 220 rand por dia, ou US$16. O transporte (ônibus fretado) consome mais da metade do salário.
As três filhas mais velhas estão cursando o ensino médio e ela só torce para que suas vidas sejam diferentes.
“Ainda queremos ver toda essa liberdade”, conclui.
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