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Entrevista: agro que não desmata precisa mostrar que Macron está errado

Pesquisador que estudou desmatamento e agronegócio defende que a maioria das empresas do agro cumpre a legislação, mas são punidas indiretamente ao não serem duras no discurso ambiental

Raoni Rajão, da UFMG: "Imagine o consumidor europeu, comendo seu frango, sua carne brasileira no jantar, e vendo na televisão imagens da Amazônia em chamas?" (Arquivo Pessoal/Reprodução)
CR

Carolina Riveira

Publicado em 15 de janeiro de 2021 às 15h18.

Última atualização em 15 de janeiro de 2021 às 16h50.

A rusga entre o governo brasileiro e o presidente francês, Emmanuel Macron, voltou a virar notícia nesta semana, após Macron dizer que “continuar a depender da soja brasileira seria ser conivente com o desmatamento da Amazônia“.

Nesta quinta-feira, 15, o presidente Jair Bolsonaro respondeu afirmando que o francês fala "besteira" sobre o tema, enquanto o vice Hamilton Mourão havia dito dias antes que Macron não entende da soja brasileira.

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No fim, nenhum dos dois lados está certo, defende Raoni Rajão, professor de gestão ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Com anos de pesquisa sobre o desmatamento e o agronegócio no Brasil e na Europa, Rajão é um dos autores do estudo "As maçãs podres do agronegócio brasileiro", publicado na revista Science.

O estudo aponta que um quinto das exportações de soja da Amazônia e do Cerrado à UE têm rastro vindo de áreas de desmatamento ilegal, muitas desmatadas anteriormente à plantação. Mas reitera que esse tipo de situação vem de uma minoria: só 2% das fazendas são responsáveis por mais de 60% do desmatamento ilegal.

Ao todo, a venda de produtos agropecuários brasileiros ao bloco europeu somou 16 bilhões de dólares em 2019, fazendo da UE um dos principais destinos das exportações brasileiras.

"É uma minoria dos produtores que desmata, mas que, por algum motivo, contam com o silêncio complacente dos bons produtores", diz Rajão. "Quem está desmatando quer fazer agropecuária de rentabilidade baixíssima. Não é isso que vai aumentar nosso PIB agrícola." Leia abaixo os principais trechos da entrevista.


EXAME - Nesta semana, Macron disse que comprar soja brasileira é compactuar com o desmatamento da Amazônia. Já os produtores e o governo brasileiro argumentam que essa é, mais do que ambiental,uma estratégia protecionista. Quem está certo?

Precisamos primeiro pensar de onde o Macron veio. Existe um motivo muito específico pelo qual o acordo da União Europeia com o Mercosul foi fechado em 2019, após mais de duas décadas sem andar. A Alemanha sempre quis o acordo, porque faz vultuosos investimentos em indústria na América Latina. A França historicamente é o maior obstáculo, pela pressão do agronegócio local. Mas o Macron não era contra o acordo: foi eleito com uma agenda mais progressista nos costumes que agradou parte da esquerda, mas também agradou a direita com reformas, inclusive de livre comércio. O Macron era o empurrãozinho que faltava, tanto que o acordo com o Mercosul saiu do papel.

Mas está se tornando cada vez mais tóxico defender uma agenda de comércio internacional com o Brasil. A própria Merkel [chanceler da Alemanha], que defendeu o acordo, no fim teve de mudar de posição, ou ia perder as eleições.

“Por mais que haja esse lobby do agro francês, os protecionistas não teriam tanto espaço para avançar se o próprio Brasil não estivesse dando essa oportunidade.”

Imagine o consumidor europeu, comendo seu frango, sua carne brasileira no jantar, e vendo na televisão imagens da Amazônia em chamas? É muito impopular. Houve ainda uma série de ofensas diplomáticas, diplomata francês não recebido, um chamando a mulher do outro de feia. Isso tudo fez com que o Macron se tornasse mais agressivo com relação ao Brasil.

Um argumento do governo brasileiro é que países como a França já destruíram suas florestas e, portanto, não têm direito de criticar o Brasil na frente ambiental.

Muitas vezes o Brasil critica outros países com informações factualmente erradas. A França dobrou sua área de floresta, hoje tem mais floresta do que o estado de São Paulo. Eles sabem a história deles, sabem que a gestão ambiental foi um problema, mas que começou a ser levada mais a sério desde Napoleão, quando perceberam que estavam faltando madeira. Mesma coisa na Inglaterra, na Alemanha. Nos EUA, quando os europeus chegaram lá, tinha 40% de floresta, hoje tem 30%, 35%. Então, percentualmente, os EUA têm até mais floresta original do que o Brasil, já que 80% da nossa Mata Atlântica já foi devastada. Ficamos em um jogo de acusações sem sentido que não ajuda no comércio internacional.

Se a imagem do Brasil prejudica a economia, por que o senhor avalia que esse tipo de retórica continua? Quais são as vantagens, por outro lado?

O que dificulta uma posição mais forte é que nunca o agro brasileiro ganhou tanto. Então, pode-se ter essa visão distorcida de quem está olhando o hoje, o agora, esta safra. A visão de curto prazo é: tem reclamação, mas as vendas aumentaram, então quer dizer que o Macron, a Merkel, os compradores internacionais, não surtem efeito, que o mundo precisa do Brasil ou vai morrer de fome. Mas isso é uma leitura muito errada. O que fez aumentar as exportações brasileiras nos últimos anos foi, além de tudo, um cenário muito contextual.

Fazenda de soja no Mato Grosso do Sul: uma minoria dos produtores desmata, mas paga a conta pela imagem ruim do Brasil (Alexis Prappas/Exame)

Por que a leitura é errada? Enquanto o Brasil esteve em recessão em 2020, o PIB do agronegócio brasileiro avançou. Não seria uma tentativa de outros países em parar o crescimento do Brasil?

Primeiro, houve gripe suína na China, 40% do rebanho suíno deles abatido, e para substituir, tiveram de comprar produtos brasileiros. Segundo, a guerra comercial China-EUA: para responder ao Trump [presidente americano], a China aumentou a tarifa no tipo de soja produzida nos EUA, o que beneficiou o Brasil. E tivemos a própria crise alimentar gerada pela covid-19, que fez com que os países antecipassem muitas compras em 2020. Por fim, os produtores compraram com dólar baixo e venderam com dólar alto no ano passado. Mas em 2021, isso não será mais tão fácil. A safra que vai colher em fevereiro, março, já comprou com dólar mais alto, os lucros serão menores. E se EUA e China fizerem um acordo sobre a soja? O Brasil precisará mais do que nunca do mercado europeu. Considerar que um dos maiores parceiros comerciais é desnecessário é uma visão de curto prazo.

"Na guerra comercial com a China, os EUA deram dezenas de bilhões de dólares para o agro se manter. O Brasil vai fazer o mesmo? Dar 16 bilhões de dólares aos produtores?"

Explique um pouco sobre o seu estudo. Como os pesquisadores conseguiram chegar ao percentual de exportações de soja que vêm de desmatamento ilegal?

A pergunta sobre se a soja está ligada ao desmatamento tem se tornado mais comum, mas ninguém tinha apresentado ainda uma resposta razoável: de um lado, sugerem que a produção brasileira está toda ligada ao desmatamento; do outro, respostas dizem que não há desmatamento algum. Nenhuma das duas coisas é verdade.

No estudo partimos do Cadastro Ambiental Rural na Amazônia e no Cerrado, então analisamos 1 milhão de imóveis individualmente. E em cada um aplicamos a regra do Código Florestal. Se aquele imóvel desmatou de maneira potencialmente ilegal, a soja produzida também é potencialmente ilegal — o que é um entendimento do Ministério Público. Assim, ao cruzar com dados de exportação para a União Europeia, constatamos que 20% da produção de soja no Cerrado e na Amazônia exportados para o bloco tiveram origem em desmatamento ilegal.

Um argumento usado por alguns políticos após o comentário do presidente Macron foi que a soja não é plantada na Amazônia. O estudo corrobora essa teoria?

Nesses imóveis do estudo, temos 400.000 hectares desmatados nos últimos dez anos. Só em 2020, foram desmatados 1 milhão de hectares. Ou seja, os sojicultores não são os principais responsáveis pelo desmatamento, que inclui outros fatores. Mas não significa que não há relação com a soja. Veja, a soja começou nos Pampas [no Sul], mas hoje já se produz mais soja na Amazônia do que nos Pampas. Quando uma liderança política diz que a produção de soja na Amazônia é ínfima, então 15% é ínfimo?

Brigadista no combate chamas em Rio Branco, no Acre: empresas precisam ser duras no combate aos crimes ambientais (Sérgio Vale/Amazônia Real/Divulgação)

Para além do governo, o que as empresas do setor agropecuário poderiam fazer para amenizar a imagem ruim do Brasil?

Historicamente, a maior parte dos departamentos de gestão ambiental nas empresas estão ou no marketing ou na parte jurídica. É raro gestão ambiental perto docore business, mas é preciso que isso seja levado a sério, porque os impactos são de longo prazo. Não adianta dizer que é contra o desmatamento e, depois, as principais associações do setor comprarem um anúncio de página inteira no Estado de S.Paulo em apoio ao Ricardo Salles [ministro do Meio Ambiente]. O jogo duplo não funciona.

Estamos aqui não falando só do meio-ambiente em si, mas de perda de competitividade do Brasil no longo prazo. Estamos falando de o Brasil não conseguir ter duas safras por ano por efeito do desmatamento. Se a sua vantagem é só o custo baixo, mas seu produto atrapalha a reputação dos compradores, eles vão procurar uma alternativa. Cada vez mais, qualidade é ter cadeia transparente.

A transparência, que o senhor mencionou, é uma das frentes que mais devem ser aprimoradas pelo setor?

As atitudes não estão sendo tomadas na velocidade com que deveriam. Quem hoje da indústria de fato tornou sua cadeia transparente? O principal problema é que temos uma minoria de produtores que desmatam: só 2% das fazendas são responsáveis por mais de 60% do desmatamento ilegal. São as "maçãs podres". Mas há o silêncio complacente dos bons produtores, que não desmataram, que não têm pendências, mas que por causa de uma retórica fácil — de que já somos os melhores do mundo —, não tomam as atitudes.

"Quando houver um problema e o Brasil tiver dificuldade em vender, os certos e errados vão pagar juntos. As maçãs boas têm de expulsar as ruins do cesto."

Quem está desmatando na Amazônia quer fazer agropecuária de rentabilidade baixíssima. Não é isso que aumenta o PIB agrícola. Aumenta a disponibilidade de terra que até então era pública, mas só. Não deveriam ser coisas antagônicas: o momento em que o desmatamento mais caiu na Amazônia foi também um dos momentos em que o PIB brasileiro mais subiu.

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