Como ficaria o Brasil sem Meirelles no BC
Se preparando para deixar o cargo, presidente do BC é considerado o grande responsável pelo sucesso da economia
Da Redação
Publicado em 23 de outubro de 2009 às 11h22.
Os presidentes do Banco Central, Henrique Meirelles, e da República, Luiz Inácio Lula da Silva, depositam suas esperanças no mesmo cabo eleitoral para concretizar suas ambições políticas em 2010: a economia em ordem. Por isso, poucos analistas apostam em mudanças radicais no rumo do BC a partir de março, quando, ao que tudo indica, Meirelles deve deixar seu comando para concorrer a um cargo eletivo pelo PMDB. Para o mercado, o cenário mais provável é de que a nova direção do BC mantenha o mesmo rigor e inicie um novo ciclo de alta dos juros no ano que vem a fim de conter as pressões inflacionárias da esperada aceleração mundial. Assim, 2010 terminaria com o IPCA dentro da meta e o câmbio em patamar próximo ao atual.
Por trás destas expectativas, está a crença de que Lula realmente converteu-se à ortodoxia monetária e não arriscará as recentes conquistas dando o comando do BC a alguém heterodoxo. “Lula parece ter aprendido que, em economia, a continuidade é uma virtude”, afirma Jason Vieira, economista-chefe da consultoria UpTrend.
No cenário básico da UpTrend, essa continuidade se traduz em manutenção da taxa básica de juros, a Selic, em 8,75% ao ano até meados de 2010. A partir do segundo semestre, ela subiria entre 1,25 e 1,50 ponto percentual. A previsão faz coro com a curva de juros futuros, que representa as expectativas do mercado e aponta para juros de 10,50% em dezembro de 2010.
Mas a esperada elevação da Selic não é um sinal de que o mercado teme que o BC seja tomado de assalto pelos desenvolvimentistas em março, que seriam complacentes com uma política fiscal mais frouxa e mais tolerantes à inflação apenas para gerar um crescimento econômico mais acentuado no curto prazo que sirva de bandeira eleitoral a Lula e seus aliados. Pelo contrário. A subida dos juros é uma aposta dos analistas de que o BC continuará zelando pelo poder de compra da moeda. “A curva de juros não foi contaminada por fatores políticos até agora”, diz Pedro Alceu Cardoso, gerente de renda variável da corretora Tov.
Se implementado, o reajuste dos juros no próximo ano deverá atrair mais investidores estrangeiros. Mesmo que os Estados Unidos elevem suas taxas, o Brasil ainda ostentará um dos maiores juros reais do mundo, o que torna os títulos de renda fixa atraentes aos estrangeiros. Do mesmo modo, a bolsa de valores brasileira é apontada como a mais promissora entre os emergentes por observadores de peso como Jim O’Neill, chefe da área de Pesquisa do Goldman Sachs. A entrada de dólares fará com que o real se valorize. O último relatório Focus do BC mostra que, na média, as instituições consultadas prevêem um dólar a 1,76 real no final de 2010 - há um mês, a expectativa era de 1,80 real. Para o mercado, a nova diretoria do BC vai manter a coerência da política monetária e deixar o câmbio flutuar livremente. “O Banco Central tem um mandado para cumprir a meta de inflação, não para controlar o câmbio”, afirma Vieira, da UpTrend.
Para alguns, uma solução para atenuar a entrada de dólares é promover uma maior abertura da economia brasileira, facilitando a entrada de produtos importados em setores pouco competitivos, com capacidade ociosa muito baixa ou que ameacem disparar preços. “Se as importações forem incentivadas de modo responsável, poderão compensar parte da entrada dos dólares”, diz Cardoso, da Tov. Mas essa alternativa, claro, não está sob a alçada do BC. (Cotinua)
BC desenvolvimentista
Para os desenvolvimentistas, vencer a contenda significa transformar o atual presidente do BNDES, Luciano Coutinho, no novo banqueiro central. Coutinho é um crítico antigo da linha seguida por Meirelles. No início de 2006, quando ainda não ocupava um cargo público e a Selic estava em 17,25% ao ano, o economista chamava de “desastrada” a conduta do Banco Central e defendia um corte rápido dos juros, aliada à maior “frouxidão” fiscal. Na ocasião, também pregava uma meta maior de inflação. Já nos últimos meses de 2008, aliou-se aos presidentes do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal para cobrar juros menores do BC. O argumento é que, sem isso, ficaria difícil fazer o país crescer. Coutinho também engrossa o coro dos que apóiam a redução do superávit primário neste e no próximo ano. A medida, que conta com a simpatia de Dilma, serviria para acomodar um orçamento menor devido à queda da arrecadação e uma pressão maior de gastos em um ano eleitoral. Em menos de um ano, a meta de superávit já foi cortada duas vezes - de 3,3% para 2,5% do PIB e, agora, já está em 1,56%.
O mercado não acredita, ao menos por ora, que Coutinho também não será capaz de derrubar os juros com uma canetada. Dilma, que apoia Coutinho, é a grande interessada em um BC que retarde ao máximo o início do ciclo de alta dos juros. O temor é que ele seja mais condescendente com uma inflação acima da meta, mas, mesmo nesse cenário, não são previstos grandes problemas. Para a consultoria UpTrend, a Selic desenvolvimentista terminaria 2010 em 9% ao ano, contra os 10,25% que projeta no cenário conservador. O dólar também terminaria mais próximo dos 2 reais, estimulado por intervenções do BC no mercado de câmbio. Já o IPCA, o índice oficial de inflação, ficaria próximo de 5% no ano que vem.
Embora não seja propriamente uma hecatombe, essa postura teria o incômodo reflexo de cutucar um velho fantasma brasileiro - a memória inflacionária. No pior cenário, a mudança desencadearia uma onda de desconfiança no mercado, que passaria a antecipar expectativas crescentes de inflação. Como nas profecias que se autocumprem apenas por serem enunciadas, para se proteger, toda a cadeia produtiva e os trabalhadores passariam a embutir aumentos crescentes em seus pleitos. É preciso lembrar que os preços administrados criam uma inércia inflacionária que transmite pressões de um ano para outro. O IGP-M, bastante sensível ao câmbio, também serve como vetor de pressões, ao corrigir contratos como o de aluguel. "A pior coisa seria os agentes econômicos perderem a confiança na capacidade de o BC combater a inflação", afirma Ricardo Brito, professor do Insper. "O mercado respeita um banqueiro central conservador porque sabe que, se os preços subirem, os juros acompanham." (Continua)
Legado em jogo
O cenário político, porém, não favorece a ascensão dos desenvolvimentas por enquanto. Depois que o PT, fundado por Lula, perdeu o discurso de ser o único partido ético do Brasil, ao mergulhar numa série de escândalos que derrubaram homens fortes do governo, a economia transformou-se na única peça de marketing realmente crível para o presidente. Após a queda do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, Meirelles tornou-se, aos olhos do mercado, o principal avalista da política econômica. Por isso, os analistas acreditam que, dificilmente, Lula arriscaria arranhar seu prestígio ao mudar o rumo do BC. "Eu ficaria muito surpreso se Meirelles não conseguisse indicar seu sucessor", afirma José Luciano Dias, diretor da CAC Consultoria Política, de Brasília.
Pelos ortodoxos, estão no páreo os atuais diretores de Política Econômica do BC, Mário Mesquita, e de Normas, Alexandre Tombini. Embora o mercado prefira Mesquita, há dúvidas se ele aceitaria o cargo, já que é público seu desejo de voltar ao mercado. De qualquer modo, Meirelles deve jogar todo seu prestígio junto a Lula para apoiar um nome de sua confiança. E, para muito observadores, são muitas as fichas que Meirelles acumulou nos últimos anos. "Ele foi o guardião da moeda, consolidou a credibilidade do BC e o tornou respeitado em todo o mundo", afirma Celso Grisi, presidente da consultoria Fractal e professor da Fundação Instituto de Administração.
O primeiro feito foi o de se tornar o banqueiro central a ficar mais tempo no cargo – até aqui, seis anos e nove meses, batendo por oito meses o antigo recordista, Ernane Galvêas, que presidiu o BC entre 1968 e 1974. Em março, terá cravado mais de sete anos no comando do banco. Mas Meirelles também será lembrado pelo mercado por outros méritos. Coube praticamente a ele a tarefa de consolidar o sistema de metas de inflação no país. Implantado em 1999, o governo de Fernando Henrique Cardoso conviveu apenas quatro anos com elas - e, em dois deles, a inflação estourou a meta. Desde 2003, a responsabilidade passou para Meirelles - e a inflação permaneceu dentro dos limites de tolerância desde então. (Continua)
Sob sua batuta, o BC também aprimorou os mecanismos de fiscalização do sistema financeiro - algo que contribuiu para que não assistíssemos, por aqui, uma sucessão de quebras de bancos durante a crise mundial. Além de adotar alguns critérios mais rígidos do que os do Acordo de Basiléia, o BC também procurou aumentar a confiança no sistema com a revitalização de mecanismos como o Fundo Garantidor de Crédito. "Meirelles se preocupou muito com os riscos sistêmicos", afirma Grisi, da Fractal. A atuação durante a crise também é elogiada por muitos. A redução do depósito compulsório, por exemplo, garantiu liquidez ao sistema em um momento de sumiço do crédito mundial. O BC também vendeu parte da reserva de dólares para evitar uma disparada do câmbio.
Para os críticos, Meirelles foi extremamente conservador e impediu que o Brasil crescesse mais ao manter os juros altos. Nunca é demais lembrar que, somente no ano passado, o país perdeu a pouco honrosa liderança no ranking dos maiores juros reais do mundo. "O BC errou ao manter os juros altos durante a crise, e isso intensificou seus efeitos no país", afirma Antônio Correa de Lacerda, professor da PUC de São Paulo. Mas seus admiradores não enxergam da mesma forma. "É melhor pecar pelo excesso de zelo, porque a memória inflacionária ainda é recente no Brasil", afirma Brito, do Insper.