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Alca dará certo se mais países se envolverem, diz especialista

Ex-assessora econômica de Clinton diz que agora é possível ao Brasil fechar acordos comerciais mais rápido com o governo Bush. Mas avisa: rapidez não quer dizer facilidade

EXAME.com (EXAME.com)
DR

Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 11h17.

A economista americana Laura Tyson, de 56 anos, ocupou um dos cargos mais estratégicos do governo Clinton: foi presidente do Conselho de Assuntos Econômicos e responsável pela formulação de boa parte da política econômica da época, o que incluía os acordos comerciais internacionais. Hoje reitora da London Business School, ela esteve no Brasil no início de maio, para participar de um seminário promovido pelo Ibmec. Pouco depois de chegar de Londres, Laura concedeu esta entrevista exclusiva a EXAME em que analisa as mudanças na política comercial americana e o que o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva pode fazer para melhorar sua posição no cenário comercial internacional, especialmente em relação às propostas da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

O que podemos esperar no futuro nas relações entre Alca e Brasil e entre Alca e Mercosul?

É preciso colocar essa discussão no contexto. Nos anos 90, a América Latina foi uma região em que houve uma crescente liberalização, integração, globalização e privatização. Os vínculos com as áreas de comércio globais mais importantes cresceram bastante, as barreiras comerciais caíram e houve um incrível crescimento das exportações. Uma das principais características dos países da região nessa década foi que suas exportações cresceram proporcionalmente mais do que suas economias.

Tudo vai a favor da abertura, então? O que mudou?

A discussão não é tão simples assim, ela tem nuances. É caso de se pensar se é tão bom assim derrubar todas as barreiras comerciais. Stanley Fischer, ex-economista-chefe do FMI disse que a abertura é necessária para melhorar a taxa de crescimento de uma economia, mas não é suficiente para garanti-lo. Muita coisa aconteceu nos anos 90 com a liberação do comércio. Mesmo que tenha sido bem-sucedida, ela não poderia gerar os mesmo benefícios para todos. Nem todas as partes do sistema estavam corretamente desenhadas e funcionavam igualmente bem. A abertura comercial não trouxe as mesmas vantagens para todos os países nem seus benefícios foram uniformes nos diversos setores da economia.

O que mudou nos Estados Unidos em relação a isso?

Uma das coisas que ouvia muito quando estava no governo é que o Nafta era essencial. Para a administração Clinton, criar o Nafta e completar todas as negociações da Rodada Uruguai era fundamental para criar um ambiente em que fosse possível estabelecer áreas de livre comércio com a Ásia e com a América Latina. Todos estavam absolutamente convencidos de que essa era a coisa certa a fazer. A idéia era trabalhar regionalmente, pois as pessoas acreditavam que assim era possível obter muito mais progressos do que tentando fechar acordos multilaterais com um grande número de parceiros ao mesmo tempo.

Por exemplo, deixando os países da Ásia se acertarem entre si antes de negociar um acordo de comércio com todos?

Exato. Só que não foi assim tão simples. Criar o Nafta não foi a decisão mais popular do governo Clinton. Perdeu-se muito tempo na luta entre democratas e republicanos sobre o fast track, (instrumento que permite ao presidente americano negociar acordos comerciais e apenas submete-los à aprovação do Congresso). As mãos do governo estavam, em grande parte, amarradas. Agora, com o fast track, a administração Bush tem a possibilidade de fechar acordos com países individualmente. Isso pode acelerar os processos, embora a ideologia da administração Bush para o comércio exterior não seja assim tão diferente da gestão anterior. A ideologia, a filosofia e as motivações são as mesmas, pouca coisa mudou.

O que mudou?

Primeiro, uma forte preferência para andar depressa e cobrir a maior gama possível de assuntos de uma só vez. Segundo, uma linha de pensamento econômico que diz que não deve haver uma preferência formal. Não há nada errado em avançar a partir de acordos individuais. Antes, temia-se que o fechamento de um acordo com um país específico poderia comprometer as negociações multilaterais, o que acabava emperrando um pouco as coisas. Hoje, a abordagem está mais pragmática. Algo assim como "se pudermos avançar na Alca, negociando com o Mercosul, tudo bem". Não vamos assumir que isso vai prejudicar negociações anteriores. Se você puder avançar a nível regional, não há porque não fazê-lo. Não há sentido em dizer "não, não, não, isso só deve ser negociado a nível multilateral". Imagino que a administração Bush esteja disposta a fechar a maior quantidade possível de acordos, não interessa em que nível.

A nova administração está mais pragmática, portanto.

As duas administrações têm filosofias similares, mas o cenário mudou. A administração Clinton sofreu, durante todo o tempo, uma enorme pressão da indústria siderúrgica para manter as tarifas protecionistas, e agora essa pressão diminuiu, o que faz uma enorme diferença. Acredito que as decisões que a administração Bush vier a tomar no campo da indústria siderúrgica, assim como no campo da produção agrícola serão radicalmente diferentes por causa das mudanças da economia.

As siderúrgicas americanas sempre exerceram uma pressão muito grande para manter as tarifas protecionistas. O governo Bush está menos sensível a essas pressões?

Esse tipo de decisão (de manter as tarifas protecionistas) é tão criticado que, no fim do dia, eu acho altamente improvável que elas continuem por muito tempo. Afinal, tanto republicanos quanto democratas vão perceber que não compensa manter um subsídio caríssimo só para garantir alguns votos da Pensilvânia ou dos estados agrícolas.

O atual governo brasileiro é muito favorável ao Mercosul e deve encaminhar todas as negociações nesse contexto. É algo sábio a fazer? Como a administração Bush vai reagir a isso?

É difícil para mim dizer como a administração Bush vai reagir. Negociar por meio do Mercosul parece ser algo sensato. A Alca vai dar certo se mais países se envolverem e negociarem. A negociação por meio do Mercosul pode facilitar as coisas, pois os quatro países-membros do Mercosul vão resolver suas diferenças internas antes de negociar no âmbito da Alca, o que vai facilitar a tramitação das propostas. Os países do Mercosul vão acertar os detalhes e se concentrarem apenas nos assuntos principais. Vão estabelecer prioridades. Além disso, a administração Bush está mais interessada do que a anterior em conseguir pelo menos alguns progressos na Alca. Nos Estados Unidos há uma convicção de que não deverá haver muito progresso da Alca nos próximos anos; assim, qualquer possibilidade de avanço será muito mais valorizada.

Seja por causa da mudança política, seja pela retomada do Mercosul, é possível dizer que o Brasil está numa situação melhor para negociar?

A administração Clinton tinha muita autoridade e apoio para negociar. Já a administração atual está numa situação diferente, tanto em termos políticos quanto econômicos.

Uma posição mais fraca?

Não exatamente, mas uma posição diferente. Isso pôde ser notado a partir da campanha presidencial. Bush focou muito suas atenções no México e deixou a Alca numa posição menos destacada na agenda. Desde 11 de setembro, porém, o governo tem se esforçado para reconstruir e reforçar seus laços com a América Latina.

Isso poderia resultar em uma postura mais flexível do governo americano na hora de negociar assuntos comerciais? Pode trazer mais vantagens para o Brasil e para a América Latina?

Não. Essa atuação do governo é institucional e de Estado, não econômica. Na hora de falarmos de comércio, os negociadores vão continuar duros como sempre foram. Nos Estados Unidos, a política comercial externa é basicamente definida a partir das necessidades do setor produtivo, especialmente o industrial, e não do Estado. Ou seja, estamos falando de lobbies e de pressão sobre o Congresso e o Executivo. Assim, as negociações não vão ser mais fáceis. Qualquer que seja a orientação política da Casa Branca, há um forte consenso em defender o espaço econômico americano. "Não abrir espaço aos estrangeiros" foi e continua sendo uma forte palavra de ordem. Há também as questões trabalhistas e de proteção do mercado de trabalho, e os sindicatos deverão fazer uma pressão cada vez maior para impedir a entrada tanto de trabalhadores quanto de produtos estrangeiros nos Estados Unidos. Além disso, eu não acredito que o livre comércio esteja entre as prioridades da administração atual, assim como penso que a América Latina também não é uma das prioridades do governo atual. O foco está mesmo na China, Al-Qaeda, terrorismo, guerra no Iraque, essas coisas estão no topo da agenda. Ao atacar o Iraque sem o apoio da Onu, a administração Bush já pagou um alto preço em imagem e relações internacionais. O processo de recuperação dessa imagem vai passar antes de mais nada por uma ofensiva diplomática junto aos aliados tradicionais. Claro que há muita gente no governo que dá muita importância ao livre-comércio. Nesse ponto, Bob Zoellick (atual representante comercial dos Estados Unidos) não é muito diferente de mim, mas as decisões são tomadas em níveis superiores da hierarquia.

Se a senhora fosse uma assessora do governo brasileiro, o que recomendaria? Uma posição mais dura ou uma abordagem mais flexível ao negociar?

Eu não adotaria uma postura uniforme, generalizada, mas negociaria cada assunto de maneira específica. Há algumas proteções à economia americana que são menos populares do que outras. Na agricultura, por exemplo. Na maior parte dos casos, a posição americana é errada e muitas de suas políticas violam as determinações da OMC. É uma confusão terrível. Dada a importância que a agricultura tem para a economia brasileira e as grandes vantagens em ampliar seu mercado, eu recomendaria uma negociação extremamente dura e agressiva. Na agricultura, Estados Unidos e Europa estão no caminho errado. É preciso aproveitar essa desvantagem e ser duro na hora de negociar. A mesma coisa no caso do aço. As pessoas que forem negociar têm de estar preparadas para longas batalhas jurídicas e pesadas discussões.

Em que setores é possível ser mais flexível?

O caso de biotecnologia e medicamentos, por exemplo. As empresas farmacêuticas sabem que, mais dia menos dia, elas vão perder o direito sobre as descobertas que fizeram, especialmente no caso da quebra de patentes pelos países mais pobres. O perigo é se elas perderem esses direitos cedo demais, o que pode retirar-lhes o incentivo a pesquisar. Então, elas estarão propensas a dizer: "tudo bem, nós vamos permitir que concorrentes em países pobres copiem as nossas patentes, mas desde que quem produza os remédios não concorra em nossos mercados principais." Elas vão adotar políticas de preço diferentes para países desenvolvidos e em desenvolvimento. Nesse caso, ambas as partes vão ganhar mais se estabelecerem estratégias ganha-ganha e chegarem a um objetivo comum, o que até agora não foi possível.

O que seria uma estratégia ganha-ganha nesse caso?

Um país como o Brasil é perfeitamente capaz de ser um grande fornecedor de medicamentos para outros países do mundo. Se as companhias farmacêuticas decidirem que não vão oferecer seus produtos a preços mais baixos para os países emergentes, isso abrirá um espaço para que empresas brasileiras. O Brasil poderia facilmente ser um produtor ou um vendedor licenciado desses medicamentos a um preço mais baixo que a empresa do país desenvolvido. Uma empresa farmacêutica americana poderia autorizar uma concorrente brasileira a uma sua patente e vender um remédio mais barato para outros países em desenvolvimento, desde que a empresa brasileira não use esses remédios a preço menor para disputar mercado nos países desenvolvidos. Esse, por exemplo, poderia ser um acordo aceitável na área de medicamentos e proteção de patentes. Mas ainda vai levar muito tempo para negociar isso.

Depois de meses de pânico, os investidores internacionais parecem ter se apaixonado pelo Brasil. Isso é bom?

A lição dos anos 90 é que você deve se preocupar se os investidores internacionais disserem estar apaixonados, pois tendem a ser amantes muito volúveis. As paixões podem desaparecer a qualquer momento, assim como o dinheiro (risos). Eu prefiro relacionamentos estáveis com investidores de longo prazo à paixão por um investidor de curto prazo, pois ele pode sacar o dinheiro de uma hora para a outra e deixar o país em desequilíbrio. Não é ruim que os investidores mais especulativos venham, pois afinal esse muitas vezes é o único dinheiro que você tem à mão para fechar seu caixa. Mas não é possível sustentar projetos de desenvolvimento com esse tipo de recursos, pois eles podem desaparecer de repente e deixar você com um problema nas mãos. O melhor mesmo é ter uma boa situação fiscal e uma balança de pagamentos equilibrada. Aí não será preciso depender da boa vontade dos investidores de curto prazo.

O dinheiro disponível no mercado global para os países emergentes encolheu muito. Há uma previsão de retorno, mesmo que abaixo dos níveis anteriores à crise do fim dos anos 90?

O dinheiro não voltou até agora, e acho difícil que volte tão cedo. Veja por exemplo a situação de um ano atrás, quando o mercado internacional exerceu uma forte pressão sobre o Brasil. Muito dinheiro bom, muitas linhas de crédito internacionais, simplesmente desapareceram e até agora não voltaram. Se analisarmos os números com cuidado, vamos ver que nem mesmo a Ásia voltou a ter financiamentos externos na mesma proporção anterior à crise de 1997. O mercado global como um todo está menos líquido e mais avesso ao risco, não é uma questão de tempo. O fluxo de recursos para os países emergentes não vai voltar a ser o que era, até porque há menos dinheiro disponível no mundo. Os investidores ainda se lembram do que aconteceu na Ásia, na Argentina, e mesmo do que aconteceu aqui no início do ano passado. Os investidores americanos, por exemplo, preferem deixar seu dinheiro dormindo tranqüilamente em um banco americano a escolher ativos mais líquidos. Há exceções, claro. A China ainda é um grande fator de atração para os investidores por causa do tamanho de seu mercado e do enorme potencial de crescimento de sua economia.

Parece que todo instituto de pesquisas está realizando um seminário sobre como é bom investir na China.

Os institutos que não estão preparando esses seminários deveriam fazê-lo. É uma excelente idéia aprender como investir e como vender para a China. É um mercado enorme que tem um potencial incalculável de crescimento. Não só o mercado chinês em si, mas o mercado asiático como um todo. Além disso, a China pode vir a ser o maior fornecedor de material industrializado do mundo nos próximos anos, e isso vai colocar as praças chinesas no centro das maiores cadeias de suprimentos (supply-chains) que vierem a ser montadas. Por exemplo, um microprocessador será produzido na Califórnia, enviado para a China, instalado em um computador ou em um equipamento eletrônico inteligente de uso doméstico e revendido para algum país da Europa, da Ásia ou mesmo para os Estados Unidos. Essa forma de produção será cada vez mais comum e mais interessante, e por isso é essencial para qualquer país pensar em como acessar o mercado chinês. Pode ser uma forma de se vincular às grandes vias de comércio do mundo. Isso sem falar no enorme potencial do mercado interno chinês, que é grande demais para ignorar. A China tem uma população enorme e crescente, mas seu sistema agrícola ainda é extremamente eficiente. A longo prazo, a OMC está comprometida a tornar esse mercado acessível para outros países, e esse deveria ser um ponto estratégico para o Brasil, que é extremamente eficiente na produção de alimentos. É algo que requer paciência: pode levar 15 anos para que esses mercados se abram e as cadeias de produção se integrem.

Mesmo com o risco pelo fato de a China não ser uma democracia e não ter regras claras nem informações transparentes? Não há como, por exemplo, conferir a veracidade das informações oficiais comparando-as com fontes independentes.

Mesmo que os dados oficiais sejam um pouco distorcidos, o crescimento chinês é inegável. Quando você vai à China regularmente, você percebe que o país está de fato crescendo de maneira acelerada. Há mais carros nas ruas, mais empresas e mais edifícios de escritórios. A taxa de crescimento pode ser um pouco menor do que o governo divulga, mas é muito superior à da média dos países desenvolvidos. Tudo bem, a China não é uma democracia. Mas lentamente, de uma forma gradual, os governos locais e regionais estão se renovando. Há lideranças mais jovens surgindo, com um pensamento mais aberto e mais democrático. O governo está aos poucos permitindo eleições para alguns cargos. Eu penso que a transição da velha para a nova geração vai trazer muitas mudanças. O poder está aos poucos indo para as mãos dos reformistas. Claro que investir na China é uma decisão individual de cada país ou de cada companhia, mas eu acho que essa é uma oportunidade boa demais para desperdiçar.

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A economista americana Laura Tyson, de 56 anos, ocupou um dos cargos mais estratégicos do governo Clinton: foi presidente do Conselho de Assuntos Econômicos e responsável pela formulação de boa parte da política econômica da época, o que incluía os acordos comerciais internacionais. Hoje reitora da London Business School, ela esteve no Brasil no início de maio, para participar de um seminário promovido pelo Ibmec. Pouco depois de chegar de Londres, Laura concedeu esta entrevista exclusiva a EXAME em que analisa as mudanças na política comercial americana e o que o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva pode fazer para melhorar sua posição no cenário comercial internacional, especialmente em relação às propostas da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

O que podemos esperar no futuro nas relações entre Alca e Brasil e entre Alca e Mercosul?

É preciso colocar essa discussão no contexto. Nos anos 90, a América Latina foi uma região em que houve uma crescente liberalização, integração, globalização e privatização. Os vínculos com as áreas de comércio globais mais importantes cresceram bastante, as barreiras comerciais caíram e houve um incrível crescimento das exportações. Uma das principais características dos países da região nessa década foi que suas exportações cresceram proporcionalmente mais do que suas economias.

Tudo vai a favor da abertura, então? O que mudou?

A discussão não é tão simples assim, ela tem nuances. É caso de se pensar se é tão bom assim derrubar todas as barreiras comerciais. Stanley Fischer, ex-economista-chefe do FMI disse que a abertura é necessária para melhorar a taxa de crescimento de uma economia, mas não é suficiente para garanti-lo. Muita coisa aconteceu nos anos 90 com a liberação do comércio. Mesmo que tenha sido bem-sucedida, ela não poderia gerar os mesmo benefícios para todos. Nem todas as partes do sistema estavam corretamente desenhadas e funcionavam igualmente bem. A abertura comercial não trouxe as mesmas vantagens para todos os países nem seus benefícios foram uniformes nos diversos setores da economia.

O que mudou nos Estados Unidos em relação a isso?

Uma das coisas que ouvia muito quando estava no governo é que o Nafta era essencial. Para a administração Clinton, criar o Nafta e completar todas as negociações da Rodada Uruguai era fundamental para criar um ambiente em que fosse possível estabelecer áreas de livre comércio com a Ásia e com a América Latina. Todos estavam absolutamente convencidos de que essa era a coisa certa a fazer. A idéia era trabalhar regionalmente, pois as pessoas acreditavam que assim era possível obter muito mais progressos do que tentando fechar acordos multilaterais com um grande número de parceiros ao mesmo tempo.

Por exemplo, deixando os países da Ásia se acertarem entre si antes de negociar um acordo de comércio com todos?

Exato. Só que não foi assim tão simples. Criar o Nafta não foi a decisão mais popular do governo Clinton. Perdeu-se muito tempo na luta entre democratas e republicanos sobre o fast track, (instrumento que permite ao presidente americano negociar acordos comerciais e apenas submete-los à aprovação do Congresso). As mãos do governo estavam, em grande parte, amarradas. Agora, com o fast track, a administração Bush tem a possibilidade de fechar acordos com países individualmente. Isso pode acelerar os processos, embora a ideologia da administração Bush para o comércio exterior não seja assim tão diferente da gestão anterior. A ideologia, a filosofia e as motivações são as mesmas, pouca coisa mudou.

O que mudou?

Primeiro, uma forte preferência para andar depressa e cobrir a maior gama possível de assuntos de uma só vez. Segundo, uma linha de pensamento econômico que diz que não deve haver uma preferência formal. Não há nada errado em avançar a partir de acordos individuais. Antes, temia-se que o fechamento de um acordo com um país específico poderia comprometer as negociações multilaterais, o que acabava emperrando um pouco as coisas. Hoje, a abordagem está mais pragmática. Algo assim como "se pudermos avançar na Alca, negociando com o Mercosul, tudo bem". Não vamos assumir que isso vai prejudicar negociações anteriores. Se você puder avançar a nível regional, não há porque não fazê-lo. Não há sentido em dizer "não, não, não, isso só deve ser negociado a nível multilateral". Imagino que a administração Bush esteja disposta a fechar a maior quantidade possível de acordos, não interessa em que nível.

A nova administração está mais pragmática, portanto.

As duas administrações têm filosofias similares, mas o cenário mudou. A administração Clinton sofreu, durante todo o tempo, uma enorme pressão da indústria siderúrgica para manter as tarifas protecionistas, e agora essa pressão diminuiu, o que faz uma enorme diferença. Acredito que as decisões que a administração Bush vier a tomar no campo da indústria siderúrgica, assim como no campo da produção agrícola serão radicalmente diferentes por causa das mudanças da economia.

As siderúrgicas americanas sempre exerceram uma pressão muito grande para manter as tarifas protecionistas. O governo Bush está menos sensível a essas pressões?

Esse tipo de decisão (de manter as tarifas protecionistas) é tão criticado que, no fim do dia, eu acho altamente improvável que elas continuem por muito tempo. Afinal, tanto republicanos quanto democratas vão perceber que não compensa manter um subsídio caríssimo só para garantir alguns votos da Pensilvânia ou dos estados agrícolas.

O atual governo brasileiro é muito favorável ao Mercosul e deve encaminhar todas as negociações nesse contexto. É algo sábio a fazer? Como a administração Bush vai reagir a isso?

É difícil para mim dizer como a administração Bush vai reagir. Negociar por meio do Mercosul parece ser algo sensato. A Alca vai dar certo se mais países se envolverem e negociarem. A negociação por meio do Mercosul pode facilitar as coisas, pois os quatro países-membros do Mercosul vão resolver suas diferenças internas antes de negociar no âmbito da Alca, o que vai facilitar a tramitação das propostas. Os países do Mercosul vão acertar os detalhes e se concentrarem apenas nos assuntos principais. Vão estabelecer prioridades. Além disso, a administração Bush está mais interessada do que a anterior em conseguir pelo menos alguns progressos na Alca. Nos Estados Unidos há uma convicção de que não deverá haver muito progresso da Alca nos próximos anos; assim, qualquer possibilidade de avanço será muito mais valorizada.

Seja por causa da mudança política, seja pela retomada do Mercosul, é possível dizer que o Brasil está numa situação melhor para negociar?

A administração Clinton tinha muita autoridade e apoio para negociar. Já a administração atual está numa situação diferente, tanto em termos políticos quanto econômicos.

Uma posição mais fraca?

Não exatamente, mas uma posição diferente. Isso pôde ser notado a partir da campanha presidencial. Bush focou muito suas atenções no México e deixou a Alca numa posição menos destacada na agenda. Desde 11 de setembro, porém, o governo tem se esforçado para reconstruir e reforçar seus laços com a América Latina.

Isso poderia resultar em uma postura mais flexível do governo americano na hora de negociar assuntos comerciais? Pode trazer mais vantagens para o Brasil e para a América Latina?

Não. Essa atuação do governo é institucional e de Estado, não econômica. Na hora de falarmos de comércio, os negociadores vão continuar duros como sempre foram. Nos Estados Unidos, a política comercial externa é basicamente definida a partir das necessidades do setor produtivo, especialmente o industrial, e não do Estado. Ou seja, estamos falando de lobbies e de pressão sobre o Congresso e o Executivo. Assim, as negociações não vão ser mais fáceis. Qualquer que seja a orientação política da Casa Branca, há um forte consenso em defender o espaço econômico americano. "Não abrir espaço aos estrangeiros" foi e continua sendo uma forte palavra de ordem. Há também as questões trabalhistas e de proteção do mercado de trabalho, e os sindicatos deverão fazer uma pressão cada vez maior para impedir a entrada tanto de trabalhadores quanto de produtos estrangeiros nos Estados Unidos. Além disso, eu não acredito que o livre comércio esteja entre as prioridades da administração atual, assim como penso que a América Latina também não é uma das prioridades do governo atual. O foco está mesmo na China, Al-Qaeda, terrorismo, guerra no Iraque, essas coisas estão no topo da agenda. Ao atacar o Iraque sem o apoio da Onu, a administração Bush já pagou um alto preço em imagem e relações internacionais. O processo de recuperação dessa imagem vai passar antes de mais nada por uma ofensiva diplomática junto aos aliados tradicionais. Claro que há muita gente no governo que dá muita importância ao livre-comércio. Nesse ponto, Bob Zoellick (atual representante comercial dos Estados Unidos) não é muito diferente de mim, mas as decisões são tomadas em níveis superiores da hierarquia.

Se a senhora fosse uma assessora do governo brasileiro, o que recomendaria? Uma posição mais dura ou uma abordagem mais flexível ao negociar?

Eu não adotaria uma postura uniforme, generalizada, mas negociaria cada assunto de maneira específica. Há algumas proteções à economia americana que são menos populares do que outras. Na agricultura, por exemplo. Na maior parte dos casos, a posição americana é errada e muitas de suas políticas violam as determinações da OMC. É uma confusão terrível. Dada a importância que a agricultura tem para a economia brasileira e as grandes vantagens em ampliar seu mercado, eu recomendaria uma negociação extremamente dura e agressiva. Na agricultura, Estados Unidos e Europa estão no caminho errado. É preciso aproveitar essa desvantagem e ser duro na hora de negociar. A mesma coisa no caso do aço. As pessoas que forem negociar têm de estar preparadas para longas batalhas jurídicas e pesadas discussões.

Em que setores é possível ser mais flexível?

O caso de biotecnologia e medicamentos, por exemplo. As empresas farmacêuticas sabem que, mais dia menos dia, elas vão perder o direito sobre as descobertas que fizeram, especialmente no caso da quebra de patentes pelos países mais pobres. O perigo é se elas perderem esses direitos cedo demais, o que pode retirar-lhes o incentivo a pesquisar. Então, elas estarão propensas a dizer: "tudo bem, nós vamos permitir que concorrentes em países pobres copiem as nossas patentes, mas desde que quem produza os remédios não concorra em nossos mercados principais." Elas vão adotar políticas de preço diferentes para países desenvolvidos e em desenvolvimento. Nesse caso, ambas as partes vão ganhar mais se estabelecerem estratégias ganha-ganha e chegarem a um objetivo comum, o que até agora não foi possível.

O que seria uma estratégia ganha-ganha nesse caso?

Um país como o Brasil é perfeitamente capaz de ser um grande fornecedor de medicamentos para outros países do mundo. Se as companhias farmacêuticas decidirem que não vão oferecer seus produtos a preços mais baixos para os países emergentes, isso abrirá um espaço para que empresas brasileiras. O Brasil poderia facilmente ser um produtor ou um vendedor licenciado desses medicamentos a um preço mais baixo que a empresa do país desenvolvido. Uma empresa farmacêutica americana poderia autorizar uma concorrente brasileira a uma sua patente e vender um remédio mais barato para outros países em desenvolvimento, desde que a empresa brasileira não use esses remédios a preço menor para disputar mercado nos países desenvolvidos. Esse, por exemplo, poderia ser um acordo aceitável na área de medicamentos e proteção de patentes. Mas ainda vai levar muito tempo para negociar isso.

Depois de meses de pânico, os investidores internacionais parecem ter se apaixonado pelo Brasil. Isso é bom?

A lição dos anos 90 é que você deve se preocupar se os investidores internacionais disserem estar apaixonados, pois tendem a ser amantes muito volúveis. As paixões podem desaparecer a qualquer momento, assim como o dinheiro (risos). Eu prefiro relacionamentos estáveis com investidores de longo prazo à paixão por um investidor de curto prazo, pois ele pode sacar o dinheiro de uma hora para a outra e deixar o país em desequilíbrio. Não é ruim que os investidores mais especulativos venham, pois afinal esse muitas vezes é o único dinheiro que você tem à mão para fechar seu caixa. Mas não é possível sustentar projetos de desenvolvimento com esse tipo de recursos, pois eles podem desaparecer de repente e deixar você com um problema nas mãos. O melhor mesmo é ter uma boa situação fiscal e uma balança de pagamentos equilibrada. Aí não será preciso depender da boa vontade dos investidores de curto prazo.

O dinheiro disponível no mercado global para os países emergentes encolheu muito. Há uma previsão de retorno, mesmo que abaixo dos níveis anteriores à crise do fim dos anos 90?

O dinheiro não voltou até agora, e acho difícil que volte tão cedo. Veja por exemplo a situação de um ano atrás, quando o mercado internacional exerceu uma forte pressão sobre o Brasil. Muito dinheiro bom, muitas linhas de crédito internacionais, simplesmente desapareceram e até agora não voltaram. Se analisarmos os números com cuidado, vamos ver que nem mesmo a Ásia voltou a ter financiamentos externos na mesma proporção anterior à crise de 1997. O mercado global como um todo está menos líquido e mais avesso ao risco, não é uma questão de tempo. O fluxo de recursos para os países emergentes não vai voltar a ser o que era, até porque há menos dinheiro disponível no mundo. Os investidores ainda se lembram do que aconteceu na Ásia, na Argentina, e mesmo do que aconteceu aqui no início do ano passado. Os investidores americanos, por exemplo, preferem deixar seu dinheiro dormindo tranqüilamente em um banco americano a escolher ativos mais líquidos. Há exceções, claro. A China ainda é um grande fator de atração para os investidores por causa do tamanho de seu mercado e do enorme potencial de crescimento de sua economia.

Parece que todo instituto de pesquisas está realizando um seminário sobre como é bom investir na China.

Os institutos que não estão preparando esses seminários deveriam fazê-lo. É uma excelente idéia aprender como investir e como vender para a China. É um mercado enorme que tem um potencial incalculável de crescimento. Não só o mercado chinês em si, mas o mercado asiático como um todo. Além disso, a China pode vir a ser o maior fornecedor de material industrializado do mundo nos próximos anos, e isso vai colocar as praças chinesas no centro das maiores cadeias de suprimentos (supply-chains) que vierem a ser montadas. Por exemplo, um microprocessador será produzido na Califórnia, enviado para a China, instalado em um computador ou em um equipamento eletrônico inteligente de uso doméstico e revendido para algum país da Europa, da Ásia ou mesmo para os Estados Unidos. Essa forma de produção será cada vez mais comum e mais interessante, e por isso é essencial para qualquer país pensar em como acessar o mercado chinês. Pode ser uma forma de se vincular às grandes vias de comércio do mundo. Isso sem falar no enorme potencial do mercado interno chinês, que é grande demais para ignorar. A China tem uma população enorme e crescente, mas seu sistema agrícola ainda é extremamente eficiente. A longo prazo, a OMC está comprometida a tornar esse mercado acessível para outros países, e esse deveria ser um ponto estratégico para o Brasil, que é extremamente eficiente na produção de alimentos. É algo que requer paciência: pode levar 15 anos para que esses mercados se abram e as cadeias de produção se integrem.

Mesmo com o risco pelo fato de a China não ser uma democracia e não ter regras claras nem informações transparentes? Não há como, por exemplo, conferir a veracidade das informações oficiais comparando-as com fontes independentes.

Mesmo que os dados oficiais sejam um pouco distorcidos, o crescimento chinês é inegável. Quando você vai à China regularmente, você percebe que o país está de fato crescendo de maneira acelerada. Há mais carros nas ruas, mais empresas e mais edifícios de escritórios. A taxa de crescimento pode ser um pouco menor do que o governo divulga, mas é muito superior à da média dos países desenvolvidos. Tudo bem, a China não é uma democracia. Mas lentamente, de uma forma gradual, os governos locais e regionais estão se renovando. Há lideranças mais jovens surgindo, com um pensamento mais aberto e mais democrático. O governo está aos poucos permitindo eleições para alguns cargos. Eu penso que a transição da velha para a nova geração vai trazer muitas mudanças. O poder está aos poucos indo para as mãos dos reformistas. Claro que investir na China é uma decisão individual de cada país ou de cada companhia, mas eu acho que essa é uma oportunidade boa demais para desperdiçar.

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