Economia

A guerra das palavras no Banco Mundial

David Cohen Uma escrita desleixada revela um pensamento desleixado, dizia o economista liberal americano Milton Friedman. A negligência com a língua torna mais fácil para nós termos pensamentos tolos, disse o escritor britânico George Orwell. Os dois exemplos acima foram citados pelo economista Paul Romer, em seu blog, em outubro de 2015. Naquela época, ele […]

PAUL ROMER: economista-chefe do Banco Mundial pede linguagem mais clara de seus pares, mas encontra entraves no ethos da própria profissão / Slaven Vlasic/Getty Images (Slaven Vlasic/Getty Images)

PAUL ROMER: economista-chefe do Banco Mundial pede linguagem mais clara de seus pares, mas encontra entraves no ethos da própria profissão / Slaven Vlasic/Getty Images (Slaven Vlasic/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 19 de junho de 2017 às 09h08.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h57.

David Cohen

Uma escrita desleixada revela um pensamento desleixado, dizia o economista liberal americano Milton Friedman. A negligência com a língua torna mais fácil para nós termos pensamentos tolos, disse o escritor britânico George Orwell.

Os dois exemplos acima foram citados pelo economista Paul Romer, em seu blog, em outubro de 2015. Naquela época, ele começava uma espécie de campanha pelo pensamento claro, especialmente voltada para sua própria classe. Romer considerava que os economistas passaram a aderir à prosa obscura e às fórmulas matemáticas como um método para evitar o escrutínio.

Naquele post em seu blog, Romer foi além de Friedman e Orwell. Para ele, o mau uso da linguagem não revela nem facilita o pensamento obtuso; ele o produz. E, se os economistas pretendem beneficiar a sociedade, precisam elaborar argumentos claros o suficiente para que qualquer pessoa os entenda, teste e eventualmente contradiga. É este afinal de contas, um dos principais atributos do método científico: a possibilidade de uma tese ser verificada, combatida e até derrubada garante a evolução rumo a ideias cada vez melhores.

A causa parece digna. Mas a campanha de Romer em prol da clareza sofreu um enorme revés em sua primeira grande batalha na vida real: no final de maio, após exigir que os pesquisadores do Banco Mundial escrevessem com menos jargões e com linguagem mais direta, encontrou uma reação tão forte que acabou perdendo suas funções gerenciais sobre a equipe.

Romer ainda permanece como economista-chefe do Banco Mundial, cargo que ocupa desde outubro do ano passado. Mas a chefia do Grupo de Desenvolvimento Econômico (DEC, na sigla em inglês) vai para a economista Kristalina Georgieva a partir de julho – aparentemente, a supervisão de Kristalina é o mais perto que os relatórios vão ter de uma escrita cristalina.

Romer fez uma espécie de mea-culpa: “É possível que eu tenha focado demais na precisão dos comunicados e não o bastante nos sentimentos que minhas mensagens despertariam”, disse. Ou seja, um problema de… comunicação.

Ele afirma que não vai largar sua missão. “Há muitos motivos para escrevermos claramente. É um compromisso com a integridade”, disse. Mas ninguém garante que a escaramuça não desemboque em sua demissão.

Embora o presidente do Banco, Jim Yong Kim, tenha declarado que quer continuar contando com sua “liderança nos campos de pensamento que diretamente afetam nossos países clientes”, e embora a parte intelectual do trabalho (sem a gestão de equipes) lhe seja mais agradável, Romer disse que só ficará enquanto sentir que pode ter um papel construtivo. “Se não estiver produzindo o maior impacto que posso aqui, irei para outro lugar.”

Com quantos “e” se faz um bom texto

A campanha pela clareza não é apenas uma luta cosmética. Ela é crucial. Tome-se um exemplo brasileiro: o governo Temer atribuiu uma grande parte das dificuldades na aprovação da reforma da Previdência Social às falhas na comunicação (mesmo antes da delação premiada da JBS e da divulgação da gravação da conversa de Joesley Batista com o presidente).

Se as pessoas não entendem o que está em jogo, é mais fácil ser contra medidas que lhes tiram direitos – ainda que as alternativas sejam piores – e acreditar em falsas relações (como a falácia de que “se os políticos parassem de roubar haveria dinheiro para pagar tudo”).

Uma boa parcela do encantamento que líderes populistas conseguem exercer sobre as pessoas vem do fato de que eles “falam a língua do povo”, em oposição a um linguajar empolado, frequentemente impenetrável, das autoridades – que é percebido como uma tentativa de enganação.

Esta não é uma prerrogativa dos economistas. Os jargões profissionais costumam ter uma vantagem legítima – facilitar a comunicação para os “de dentro”, economizando discussões pelo sincretismo dos clichês – mas também uma razão oculta: excluir o entendimento dos “de fora” e assim criar um mercado exclusivo. Tente ler um contrato. Você em poucas linhas chegará à conclusão de que precisa chamar um advogado para evitar ser enrolado.

No caso do Banco Mundial, a prática dos jargões parece ter chegado a um nível insano. Em 2015, um estudo de seus relatórios feito por pesquisadores do Laboratório Literário da Universidade Stanford concluiu que eles eram “tão codificados, auto-referentes e afastados da linguagem do dia a dia” que, de fato, representavam um “código técnico”, apelidado de Bankspeak (linguagem de banco).

Foi com essa realidade que Romer deparou quando começou a exercer suas funções no Banco. A jornalista Gillian Tett, do Financial Times, se solidarizou com a cruzada que ele tentou promover: “em meu trabalho como jornalista, tenho sido forçada a ler numerosos relatórios oficiais de organismos como o Banco Mundial, e compartilho totalmente a frustração dele com o impenetrável jargão que os impregna”.

A reação de Romer, no entanto, talvez tenha sido ríspida demais. E não se limitou às palavras. Logo que chegou ao cargo, Romer declarou que vários postos do Banco eram redundantes e determinou mandatos mais curtos para os gerentes seniores. Também cortou o orçamento do grupo em mais de 1,4 milhão de dólares.

Atitudes como essa, obviamente, não o tornaram especialmente popular entre os mais de 600 economistas do DEC. A guerra das palavras apenas piorou a situação.

Romer começou exigindo que as pessoas enviassem mensagens de email mais curtas e que as apresentações fossem direto ao ponto, evitando os rodeios que detectou. Ele chegou a cancelar a publicação de um documento em que não viu um propósito claro.

Em seguida entrou no que ficou definido como a batalha do “e”. Segundo ele, as mensagens do banco estavam eivadas de “isso, e isso, e também isso, e aquilo”. O conectivo “e”, disse ele, “tornou-se a palavra mais usada na prosa do Banco”.

Identificado o problema, veio a solução. Draconiana. “Para frisar a importância do foco”, afirmou Romer, “eu disse aos autores que não permitiria nenhum relatório final em que a frequência de ‘e’ excedesse 2,6% das palavras”.

A colunista Lucy Kellaway, do Financial Times, se divertiu com a história. Primeiro, achou 2,5% de “e” nos comunicados do próprio Romer – dentro de suas exigências. Mas a consagrada escritora Jane Austen tinha 3,8%, em um dos capítulos de Orgulho e Preconceito.

O que parece ser uma perseguição gratuita ao mais importante dos conectivos tem uma razão, digamos, histórica. Romer verificou que 2,6% era o padrão de “e” em textos do próprio Banco alguns anos atrás, mas agora eles haviam pulado para 7%.

O combate a uma única palavra pode soar como implicância. Mas também pode ser a cunha para atacar problemas maiores. Sem esse recurso, as pessoas podem acabar prestando mais atenção ao modo como concatenam as ideias.

Romer diz que usou o limite para mostrar o quão sério era seu compromisso com a boa escrita. “Eles conseguiram diminuir a frequência para 3,4%”, disse. Estavam chegando lá.

A escrita é só uma desculpa?

Apesar de toda a importância de promover uma linguagem clara, é difícil acreditar que o revés de Romer tenha se dado simplesmente por causa disso. “Acho que o buraco é mais embaixo”, me disse um funcionário do Banco.

É provável que a resistência a mudanças no texto seja um reflexo de outra resistência maior, a mudanças na essência do Banco Mundial.

O mundo mudou, e o Banco vem se tornando menos e menos importante. Os países requerem cada vez menos empréstimos da organização.

Mais do que isso: a doutrina de organismos como o FMI e o Banco Mundial vem sendo duramente criticada durante os últimos anos. Há quase um consenso de que a ortodoxia que pregavam não era capaz de solucionar problemas crônicos.

O Prêmio Nobel da Economia Joseph Stiglitz, que foi economista-chefe do Banco Mundial, era um feroz crítico das condições que costumavam ser impostas a países em crise para receber empréstimos – e foi demitido por causa de suas heresias.

Romer, ao contrário, parece ter sido contratado por suas heresias. Antes de concentrar sua atenção aos problemas da linguagem, ele ficou famoso pela “teoria do crescimento endógeno”. Basicamente, trata-se da ideia de que a adoção de tecnologias ou modelos econômicos vindos de fora não funcionam para promover o desenvolvimento. É necessário, segundo ele, que as ideias nasçam do próprio ambiente.

Sua sugestão era a criação de cidades independentes, que pudessem formar modelos novos a partir do zero, mais ou menos como Hong Kong ou Shenzhen fizeram. A partir delas, o progresso poderia se disseminar pelo país.

Não há evidências suficientes para dizer se suas teses estão corretas. Mas o fato é que o humor geral não é mais favorável às velhas prescrições do Banco Mundial. O modelo para desenvolvimento mais citado atualmente é a China, que há muito tempo despreza os conselhos dos organismos internacionais.

Nesse sentido, a guerra de Romer é bem mais complicada do que o episódio dos textos sugere. Sua missão seria mudar a personalidade do Banco Mundial.

Isso costuma ser um trabalho não de uma única batalha. É um processo lento e doloroso, cheio de idas e vindas. Talvez Romer tenha apenas iniciado o processo. Ou talvez a sova do primeiro assalto o expulse do ringue.

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