A desvinculação de receitas
Maior flexibilidade para usar o orçamento. É o que os governos buscam quando o assunto é DRU (Desvinculação de Recursos da União), um fundo que permite ao Executivo aplicar em outros fins parte da verba destinada a gastos obrigatórios. A expectativa era de que a proposta de emenda à Constituição (PEC) que garante a prorrogação […]
Da Redação
Publicado em 7 de julho de 2016 às 16h04.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h06.
Maior flexibilidade para usar o orçamento. É o que os governos buscam quando o assunto é DRU (Desvinculação de Recursos da União), um fundo que permite ao Executivo aplicar em outros fins parte da verba destinada a gastos obrigatórios.
A expectativa era de que a proposta de emenda à Constituição (PEC) que garante a prorrogação da medida fosse votada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado nesta quarta-feira 4. Mas a votação acabou sendo retirada da pauta e adiada para a próxima terça-feira 12. Depois disso, são necessários ainda mais dois turnos para aprovação, assim como ocorreu na Câmara, onde a proposta recebeu um último aval no dia 8 de junho.
A DRU é considerada um dos projetos primordiais para o equilíbrio das contas no governo interino de Michel Temer, uma vez que, devido à legislação brasileira, grande parte dos gastos da União é vinculado ou obrigatório. Em 2015, 87% da receita líquida do país foi usada para pagar salários e para despesas pré-definidas em áreas com saúde, educação.
Se aprovada, a PEC 31/2016 dará ao governo uma espécie de cheque em branco que vale cerca de 117,7 bilhões de reais por ano, de acordo com cálculos do senador José Maranhão (PMDB-PB), relator da proposta — como a DRU está vinculada a tributos, o valor exato depende da arrecadação. Segundo nota do Ministério do Planejamento, a medida “permite adequar o orçamento às mudanças da realidade brasileira, além de garantir recursos orçamentários para implementar projetos prioritários”.
Na prática, um dos principais objetivos do governo com esse dinheiro extra é tentar diminuir o déficit primário do país. Em 2015, o déficit foi 111,249 bilhões, um recorde desde que o Banco Central começou a contabilizar os números em 2001. No último dia 25 de maio, o Congresso autorizou o governo a registrar um déficit primário de 170,5 milhões de reais neste ano.
A última prorrogação da DRU foi aprovada em 2011 e vigorou até dezembro de 2015, permitindo ao governo desvincular 20% dos recursos da União. A nova proposta aumenta a desvinculação para 30% e é retroativa, de modo que incluirá os primeiros meses de 2016. O governo Dilma vinha tentando, desde fevereiro do ano passado, aprovar uma continuação da medida, mas não obteve sucesso por falta de apoio no Congresso. Temer não deve ter o mesmo problema.
De onde veio a DRU
Apesar de toda a discussão recente envolvendo a desvinculação, esse fundo não corresponde a uma inovação dos governos de Temer ou Dilma. O que hoje conhecemos por DRU nasceu como Fundo Social de Emergência, ainda em 1994, no governo de Itamar Franco. Em 1996, passou a se chamar Fundo de Estabilização Fiscal, e ganhou finalmente o nome de Desvinculação de Recursos da União em 2000 – de lá para cá, a DRU foi renovada mais três vezes, em 2003, 2007 e 2011.
Como a Constituição de 1988 estabeleceu uma série de gastos obrigatórios, a medida nasceu para dar ao Executivo alguma margem de manobra no controle do orçamento numa época em que as contas do país se encontravam em situação ainda mais difícil do que nos tempos atuais.
“A DRU, na verdade, é uma transferência de poder do Legislativo – que votou pela vinculação – para o Executivo, que passa a ter liberdade para alocá-los. É uma mudança sobre quem decidirá”, diz o professor Paulo Carlos Du Pin Calmon, do Instituto de Ciência Política da UnB.
Calmon explica que a vinculação em si não é um problema, mas sim uma forma de o cidadão garantir que os recursos nacionais sejam gastos em áreas de interesse público. O problema surge quando a vinculação é excessiva, como no caso do Brasil.
A vinculação começa já no recolhimento de tributos com destinação específica, como as contribuições. É o caso do Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social), tributo de 2% cobrado sobre o faturamento de pessoas jurídicas e que deve ser usado para atividades-fim nas áreas de saúde, previdência e assistência social.
As taxas, por sua vez, são pagas ao Estado por uma prestação de serviços, como as taxas de lixo urbano ou de emissão de documentos. Esse tipo de tributo também já nasce com suas receitas vinculadas a alguma despesa específica.
Já os impostos não têm uma destinação fixa em sua origem, ainda que, comumente, sejam usados para financiar serviços públicos. E parte desse financiamento, às vezes, é estabelecido pela Constituição, de modo que o governo não pode usar os recursos como bem entender. É o que acontece com áreas cruciais, como saúde e educação.
A Constituição de 1988 estabelece que 25% dos recursos municipais e estaduais oriundos de impostos sejam gastos com educação, assim como 18% das receitas de impostos da União. No caso da saúde, 15% da receita líquida de União, estados e municípios deve, obrigatoriamente, ser usada nessa área, independentemente de sua origem.
Portanto, os recursos vinculados no Brasil são estipulados ou pelas contribuições sociais ou por artigos da Constituição. Ao todo, 19,5% da receita líquida do país é vinculada a algum gasto específico.
Previdência, salários e dívida pública
Os maiores gastos de 2015 não foram com despesas vinculadas, mas com as obrigatórias, aquelas que não é possível deixar de pagar e que representam 87% da receita líquida do Brasil (esse valor não pode ser somado aos 19,5% das despesas vinculadas, uma vez que parte dos gastos vinculados são usados para pagamento de despesas obrigatórias, como no caso do salário de professores).
Entram na conta das despesas obrigatórias os gastos com Previdência Social (que embolsou 42% das receitas do último ano) e com a folha de pagamento dos servidores federais (23%).
Ainda que não sejam de pagamento obrigatório, os gastos com a dívida pública também são vistos como prioritários. Em 2015, foram gastos 367,7 bilhões em pagamento de juros, segundo dados do Banco Central. Esse valor é mais do que o suficiente para pagar 15 anos de Bolsa Família: o Brasil gastou 221,7 bilhões com seu principal programa de transferência de renda entre 2000 e 2015.
Para o professor Sergio Firpo, do Insper, se a DRU servir para conter parcialmente a escalada da dívida pública e do déficit, pode gerar benefícios sociais maiores até do que programas sociais específicos. “Se há gastos vinculados, não se pode usar esses recursos para resolver parte da dívida. Nesse caso, o governo é obrigado a aumentar a dívida e imprimir papel, o que causa inflação e, em seguida, aumentos de juros para contê-la”, diz. “Num cenário como esse, o trabalhador só perde”.
O que muda na ‘nova DRU’
Além da alteração de 20% para 30% no total de recursos desvinculados, a nova versão da DRU traz algumas diferenças em relação à que expirou em dezembro. Entram na desvinculação, por exemplo, as taxas e os fundos constitucionais, como o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). A exceção fica para os fundos do Ministério Público, Defensoria Pública, Tribunal de Contas e Judiciário, assim como para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Permanecem vinculadas as compensações financeiras de recursos hídricos e minerais, como os royalties de exploração de petróleo e gás natural – cujos recursos são parcialmente destinados à educação pela lei que rege o Plano Nacional de Educação (PNE).
Também seguem intocadas as transferências entre União, Estados e municípios, o que mantém os recursos do Fundeb (Fundo Nacional para Desenvolvimento da Educação Básica) e do SUS (Sistema Único de Saúde), que são obtidos dessa forma.
Mas talvez um dos pontos mais significativos da PEC 31/2016 seja o fato de que, pela primeira vez, a desvinculação se estende também para as instâncias regionais do Executivo. Por meio da DREM (Desvinculação de Receitas de Estados e Municípios), governadores e prefeitos também poderão usar como quiserem 30% dos recursos vinculados em seus orçamentos. A diferença entre a DREM e a DRU é que, no âmbito municipal e estadual, todos os tributos entram na desvinculação, incluindo os impostos.
Mas se a DREM permite inclusive a desvinculação de impostos, os 25% destinados à educação, por exemplo, serão afetados? A resposta é não. Ao menos, não pela DRU ou pela DREM, já que o texto que tramita no Congresso preserva os recursos de saúde e educação – tanto as porcentagens obrigatórias de gastos das receitas quanto os fundos específicos. Assim, se um prefeito precisar de dinheiro, ele não poderá retirá-lo da fatia de 15% do orçamento municipal que é destinada à saúde.
Contudo, o total gasto com esses setores pode, sim, diminuir. Ou ao menos parar de crescer. Primeiro, porque está vinculado à arrecadação, que diante do estado de recessão no Brasil, não tende a ser das mais generosas – 15% da receita de 2016 não deve significar muito mais do que 15% em 2014. Segundo, porque se aprovada a PEC que limita os gastos públicos – enviada ao Congresso em junho pela equipe econômica do Ministro da Fazenda Henrique Meirelles – os gastos do Executivo passam a ser limitados pela correção da inflação, e não mais ao aumento da receita.
Retrocesso social?
A educação, portanto, permanece como está. A grande questão da desvinculação, somada ao teto de gastos de Meirelles, é o fato de que vai aumentar a disputa por financiamento em outras áreas críticas para o governo. O Fundo Setorial de Energia, por exemplo, foi criado para financiar projetos sociais e pesquisas na área, e com a inserção dos fundos na fatia da DRU, pode perder parte de seus recursos.
“O orçamento é uma disputa de interesses. De certa forma, as vinculações que vêm ocorrendo são uma busca por garantias de que os gastos públicos beneficiassem áreas que são carentes no Brasil”, afirma o professor Francisco Luiz Cazeiro Lopreato, do Instituto de Economia da Unicamp.
Para Leonardo Costa, professor de Direito na FGV do Rio, o cenário econômico brasileiro exige medidas de controle de gastos que foram postergadas até então, e a DRU precisa ser usada nesse sentido. “Em época de crescimento, os governos empurram o problema. Na recessão, a temos de adequar os gastos para voltar a crescer”, diz. “Economia e finanças públicas se submetem ao limite da matemática. Não adianta querermos gastar mais que o PIB.”
Num momento em que cada real do orçamento é valioso, o governo terá a difícil missão de promover os cortes necessários sem deixar de lado setores importantes para os mais diversos públicos. O cobertor é curto. E a DRU é só um paliativo.
(Carol Oliveira)