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A contabilidade serve para algo?

The End of Accounting and the Path Forward for Investors and Managers Autores: Baruch Lev e Feng Gu Editora: Wiley 288 páginas ————————————– David Cohen Não é de hoje que a profissão de contador é menosprezada. Pode-se entender isso rapidamente pelos estereótipos revelados nas piadas: um contador é alguém que resolve um problema que você […]

BOLSA DE NOVA YORK: os relatórios de contabilidade das empresas já não cumprem sua função a contento. Os relatórios são praticamente os mesmos há 110 anos / Spencer Platt/ Getty Images
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Da Redação

Publicado em 20 de janeiro de 2017 às 19h16.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h19.

The End of Accounting and the Path Forward for Investors and Managers
Autores: Baruch Lev e Feng Gu
Editora: Wiley
288 páginas

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David Cohen

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Não é de hoje que a profissão de contador é menosprezada. Pode-se entender isso rapidamente pelos estereótipos revelados nas piadas:
um contador é alguém que resolve um problema que você não sabia que tinha de um modo que você não entende.

Qual a diferença entre um contador e um advogado? O contador sabe que é chato. O que acontece quando você tranca um contador e uma hiena numa sala? A hiena para de rir. Por que o contador ficou olhando para o suco durante três horas? Porque na caixa dizia “concentrado”. Quantos contadores são necessários para trocar uma lâmpada? O mesmo número que no ano passado.

Talvez seja essa chatice e falta de imaginação o que se espera de um contador, porque ela entrega uma sensação de previsibilidade e segurança. No início do milênio, quando estouraram nos Estados Unidos os escândalos de “contabilidade criativa” de empresas como Enron em Worldcom (basicamente formas inovadoras de apresentar números falsos), dizia-se que bom mesmo era o tempo em que contabilidade era uma disciplina chata.

O lado bom da chatice seria representar a realidade tal qual ela é, sem maquiagem, sem interpretação, objetivamente. O problema é que essa objetividade também tem lá seus problemas. Segundo a revista The Economist, “o verdadeiro escândalo da Enron é que uma parte tão grande de suas falcatruas obedecia as regras Gaap (princípios de contabilidade universalmente aceitos, na sigla em inglês)”.

A contabilidade é um conjunto de procedimentos, e como qualquer fórmula tem seus limites na captura de uma realidade em movimento. O antigo professor de contabilidade americano Abraham Briloff costumava dizer que relatórios contábeis são como biquínis: o que eles mostram é interessante, mas o que escondem é mais importante.

Ao contrário da tendência de encolhimento dos biquínis, os relatórios contábeis só aumentaram de tamanho nas últimas décadas. Mas podem estar cobrindo as informações menos relevantes. Segundo o Banco Mundial, 80% da riqueza do mundo desenvolvido está no capital humano – algo que não consta de praticamente nenhum relatório de contabilidade. A definição usual é que a contabilidade é uma disciplina chata e importante. Quanto ao primeiro adjetivo, parece haver consenso. Para o segundo, cada vez menos.

A última linha não é mais aquela

Essas críticas podem não ser novas, mas nunca antes alguém tinha montado um caso tão consistente contra as normas contábeis como o fizeram o israelense Baruch Lev, professor de contabilidade da Universidade de Nova York, e o chinês Feng Gu, da Universidade de Buffalo, no livro The End of Accounting and the Path Forward for Investors and Managers (O fim da contabilidade e o caminho adiante para investidores e gestores).

O ponto de partida do livro é que os relatórios de contabilidade das empresas já não cumprem sua função a contento. Os relatórios são praticamente os mesmos há 110 anos. Os autores compararam dois documentos da US Steel, de 1902 e de 2012: o mais recente é muito maior, porque os regulamentos foram se sobrepondo uns aos outros, mas as informações são basicamente as mesmas – muito embora o ambiente de negócios tenha mudado completamente.

No início do século 20, não havia terceirização, nem tecnologia da informação, as alianças eram raras e ninguém adotava a estratégia de just-in-time. Tudo isso reduziu a importância dos ativos físicos e do inventário, mas o progresso não se refletiu nos relatórios. Lev e Gu questionam até mesmo a sagrada última linha do balanço (bottom line), aquela que indica o lucro, que se considera o indicador máximo de saúde de uma companhia. Mas imagine, dizem eles, que você fosse ao médico depois de um check-up e ele dissesse que seu colesterol é 195, parabéns e até o ano que vem. Você não saberia o que fazer com aquele incômodo nas costas, nem teria recomendações sobre a sua dieta ou exercícios.

Um único número é incapaz de dar conta da situação de uma companhia. Pior: ele nem é o melhor número. Os dois autores rodaram uma simulação com centenas de companhias abertas. Imagine que você soubesse, com alguns dias de antecedência, os números das empresas, e comprasse ações das cinco que tiveram o maior lucro e vendesse as das cinco que tiveram o menor lucro.

Com essa bola de cristal, você teria uma valorização da sua carteira de 27%, dizem Lev e Gu, no período de 2009 a 2013. Parece ótimo, não?
Mas eles fizeram o mesmo exercício com o fluxo de caixa. Se você comprasse ações das cinco empresas com maior fluxo de caixa e vendesse as das cinco com menor fluxo de caixa pouco antes da divulgação dos resultados, sua carteira valorizaria 35%.

Eles ampliaram o número de indicadores contábeis, e tiveram o mesmo resultado. Restringiram a análise apenas às mil maiores companhias, para expurgar a volatilidade dos pequenos negócios, e novamente o fluxo de caixa bateu o relatório contábil.

Ora, todo o aparato da contabilidade, com seus numerosos cálculos de despesas e receitas não financeiras, e ativos e passivos, foi desenvolvido para melhorar as previsões em relação ao mero fluxo de caixa. Por que isso não está funcionando?

Bem, funcionava. Na década de 1989 a 1997, o exercício dava resultados melhores para o lucro do que para o fluxo de caixa. Mas as empresas mudaram muito, desde então. “Os anos 1980 viram a emergência e a rápida ascensão da importância econômica dos ativos intangíveis”, dizem os dois. “Indústrias inteiras, incluindo a de software, biotecnologia e serviços pela internet, passaram a existir.”

Mesmo para os negócios tradicionais, os maiores agregadores de valor deixaram de ser propriedades, fábricas, máquinas e inventários e passaram a ser patentes, marcas, TI e recursos humanos. Nada disso consta dos relatórios contábeis.

De 90% a 5%

Lev e Gu avaliaram o valor de mercado de centenas de companhias nos últimos 60 anos, antes e depois das divulgações dos seus relatórios anuais. Concluíram que o impacto dos relatórios no valor das empresas caiu de 90%, nos anos 1950, para cerca de 50% hoje.

Ora, 50% não é um resultado tão ruim, não é? Mas este é o resultado de uma correlação, dizem os autores, não de uma causalidade. Várias das informações dos relatórios já eram públicas antes da sua divulgação.
Quando acrescentaram à análise outros relatórios das empresas, a previsão de analistas e a previsão dos gestores, Lev e Gu afirmam que o impacto do relatório contábil (levando em consideração apenas as informações novas que ele trouxe) caiu para meros 5%.

Os intangíveis são a primeira razão para essa perda de relevância. As regras contábeis (tanto as americanas quanto as brasileiras) não sabem lidar com alguns componentes básicos do valor das companhias. O investimento em marca, por exemplo, é considerado uma despesa operacional, e não um investimento. Mas, se em vez de desenvolver uma internamente, a empresa a comprar, então ela aparecerá no balanço.

A mesma lógica deficiente vale para a pesquisa e desenvolvimento. Se você compra uma pesquisa, ela aparece no seu balanço como investimento; se a desenvolve internamente, é despesa. Isso torna impossível comparar resultados de empresas que tenham estratégias diferentes, dizem Lev e Gu.

Um segundo motivo para a perda de relevância dos balanços é que eles estão repletos de estimativas e projeções. No caso americano, as regras obrigam as empresas a fazer uma marcação dos valores a mercado (ou seja, quase todos os ativos têm valores estimados). No Brasil, a regra é lançar pelo valor de custo, acrescido de investimentos feitos nos ativos (é a proposta dos autores).

Um terceiro motivo é que os balanços registram basicamente relações comerciais com terceiros: compras, aluguel, pagamento de salários, emissão de ações, vendas a clientes. Mas alguns dos mais importantes eventos do mundo dos negócios não são transações explícitas com terceiros, e só vão se refletir no balanço muito tempo depois: se os testes de laboratório de uma nova droga foram aprovados pelos reguladores, uma parceria de pesquisa com uma universidade, se um profissional talentoso deixou a empresa, se alguém inventou uma tecnologia que torna a sua obsoleta.

São essas informações que os analistas buscam com avidez, dizem os autores. O argumento para manter os intangíveis e essa outra classe de informações fora dos relatórios contábeis é que eles embutiriam risco na análise. Ora, um investimento em pesquisa pode trazer um retorno bilionário mas também pode fracassar redondamente. A contratação de um talento pode se revelar um baita engano.

E parte dessas informações está nos relatórios, nos adendos e explicações. “Mas todas essas informações extras não são muito úteis para os investidores porque elas não são uniformes”, disse Lev em uma entrevista. Do modo como o mercado funciona hoje, só os investidores mais ricos conseguem apurar as informações mais interessantes para a tomada de decisão. Uma reforma contábil poderia equilibrar o jogo.

Uma nova contabilidade?

A estrutura para um novo relatório contábil que os autores propõem é composta de cinco itens. O primeiro é informar os investidores sobre os ativos estratégicos da empresa, que variam de setor para setor – patentes, marcas, clientes fiéis, processos específicos e por aí vai.

O segundo item é informar sobre os gastos feitos na construção desses ativos estratégicos. O terceiro, expor os principais riscos para esses ativos (tecnologias novas de um concorrente, mudanças regulatórias etc.) e como a empresa lida com eles.

Os dois últimos itens são a estratégia da empresa para extrair valor de seus ativos e, finalmente, as consequências de suas ações, ou seja, os resultados.

A adoção de um novo modelo de contabilidade esbarra em várias dificuldades. Há a inércia, claro. Mas há também as resistências. Aos gestores não interessa muito incluir nos relatórios componentes estratégicos de risco, pelos quais possam ser cobrados depois. Aos auditores tampouco interessa ver ativos que podem perder todo o seu valor (isso abriria flancos para processos ou, no mínimo, reclamações de seus clientes por não ter previsto o desastre).

Lev e Gu dizem que o meio de conseguir as mudanças é pela pressão dos investidores. Citam o exemplo do relatório da Pfizer, que com o tempo passou a incluir as questões que mais preocupavam os analistas – de tanto ouvir as perguntas, a empresas decidiu incluir as respostas em seu relatório.

Mesmo que a revolução que os dois pretendem não aconteça tão cedo, seu livro é um sinal de alerta para investidores e gestores em geral. O recado principal é que os números dos relatórios contábeis já não significam mais tanto quanto significavam antes.

“Esqueça a análise convencional, de curto prazo, que você aprendeu na faculdade, que foca em retorno sobre o patrimônio, retorno sobre os ativos ou liquidez”, dizem os dois. “Esses indicadores são baseados em dados falhos, e seu poder de previsão é irrisório.”

Como comentou Ron Baker, um especialista em contabilidade que apresenta na rádio Voz da América o programa A Alma da Empresa, o atual modelo de contabilidade sofre do que os filósofos chamam de deterioração do paradigma: quando uma teoria vai ficando mais e mais complexa para dar conta de seu enfraquecido poder de explicar a realidade.

No entanto, o poder das regras não pode ser menosprezado, como demonstra a punição aplicada esta semana à firma de marketing MDC Partners. A empresa decidiu apresentar no relatório contábil métricas que julgou mais relevantes para explicar seus resultados, e foi multada em 1,5 milhão de dólares pela SEC, a agência reguladora do mercado, por não ter dado um destaque igual ou maior às métricas tradicionais do Gaap.

A empresa também não revelou gastos suplementares ao seu CEO, como o pagamento pelo uso de um jato privado, despesas com iate e clubes exclusivos, jóias, cuidados com mascotes e uma cirurgia cosmética. Matt Levine, colunista da Bloomberg, comentou: “Claro, a cirurgia cosmética secreta e os cuidados com seus animais são a parte saborosa da história, mas não dar às normas da contabilidade um destaque igual ou maior que as outras informações é que vão te colocar em apuros.”

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