Marielle: um atentado contra a democracia?
O problema da falta de segurança influencia na falta de democracia
Da Redação
Publicado em 20 de março de 2018 às 10h59.
Última atualização em 20 de março de 2018 às 12h26.
O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), ativista de direitos humanos, é chocante. Pode ter levado o país a um novo patamar de instabilidade política. Parece que o sistema corrupto e violento do Rio de Janeiro só poupa, agora, alguns moradores da zona sul da cidade. Nem políticos estão a salvo. De quarta-feira à noite até agora, diversas análises sobre o impacto da execução argumentam que a política brasileira nunca mais será a mesma.
As manifestações de protesto contra a violência reuniram dezenas de milhares de pessoas não apenas no Rio de Janeiro, mas também em outras capitais. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, afirma que houve um “atentado contra a democracia”. Poucas horas após o assassinato, a filha de Marielle, Luyara Santos, postou no Twitter que os 45 mil eleitores de sua mãe também eram vítimas.
Intuitivamente, essas afirmações fazem sentido. Direitos civis e a liberdade de ir e vir são pilares democráticos. Um argumento contrário é lembrado: por que a morte de uma vereadora fere a democracia e o assassinato de dezenas de cariocas mensalmente não? Em outras palavras: homicídios são “normais” em democracias, mas homicídios de políticos atentam contra a base política que sustenta países democráticos. Por quê?
É fundamental pensar em uma definição simples de democracia para argumentar. O cientista político norte-americano Robert Dahl definiu muito bem. Democracias são mais “democráticas” na medida em que têm competição eleitoral livre e participação popular ampla. Quanto mais liberdade para partidos e movimentos sociais se organizarem para agir politicamente, mais democrático será o país. Quanto mais gente votar sem interferência alguma, secretamente, mais saudável será a democracia.
Qualquer assassinato é temerário. Mas não há lei que os evite. O que se pode esperar, mas dificilmente acontece no Rio de Janeiro, é a resolução do crime. 20% dos assassinatos na cidade são solucionados. Nos demais, falta o básico: identificação dos criminosos, processo judicial justo e (relativamente) rápido, punição conforme prevista em lei (sob condições saudáveis, sem organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho agindo para recrutar os presos).
A falha do sistema de segurança carioca não é, por enquanto, algo que fere a estabilidade democrática. Não há chance, no horizonte próximo, de algum grupo tomar o poder no estado e instituir uma ditadura subnacional. Tampouco é razoável imaginar que uma guerra civil de fato se avizinha (Convido quem considera que todo o Rio de Janeiro está em guerra civil a visitar a Venezuela ou a Síria). Os assassinatos cariocas e em outras partes do país indicam apenas – e esse “apenas” é enfático – a ineficiência e corrupção de uma política pública. Pessoas assassinadas não são diferentes de mortos por causas naturais esperando atendimento em hospitais públicos.
A execução de Marielle pode indicar algo diferente. Um mandato político não é intrinsecamente superior a outro. Marielle Franco e Carlos Bolsonaro, um dos filhos de Jair, ambos representam eleitores. O problema de eles não estarem seguros é que a competição eleitoral se torna menos livre do que poderia e deveria ser. Afinal, se uma política ativista na área de direitos humanos não pode circular em paz, os próximos ativistas que quiserem ser eleitos para a Câmara Municipal talvez desistam da ação política formal. E todos perderemos com isso.
Mas o contrário pode acontecer. Talvez o movimento “Marielle, sempre!” incentive mais pessoas que concordam com as ideias da vereadora a concorrerem pelo PSOL ou outros partidos. Nas próximas eleições, não duvido que os direitos humanos e a violência urbana serão temas candentes. Novas(os) Marielles podem surgir e, assim, ampliar o projeto político da vereadora. Só o tempo dirá.
Isso significa que diagnósticos mais pessimistas, comparando o Brasil a Colômbia e México, são muito precoces. Apesar de a violência política carioca não ser desprezível, estamos longe dos colegas de América Latina. De acordo com o cientista político Juan Albarracín, 107 políticos cariocas sofreram assassinato (ou tentativa de) entre 1998 e 2016. Em anos eleitorais, houve 7,3 eventos desse tipo. Em anos não-eleitorais, 3,8. Isso indica (mas não prova, é claro) que frear a competição eleitoral não é o principal objetivo de quem comete violência política no Rio de Janeiro (O artigo de Juan Albarracín é “Criminalized electoral politics in Brazilian urban peripheries” e está disponível no site da revista Crime, Law, and Social Change .)
A partir disso, já podemos descartar a comparação com o México. Durante os anos oitenta e noventa do século passado, o Partido Revolucionário Institucional (PRI) assassinou 660 políticos do Partido da Revolução Democrática (PRD), de acordo com a cientista política Sara Schatz, autora do artigo “Disarming the legal system: impunity for the political murder of dissidentes in Mexico”, publicado na International Criminal Justice Review em 2008.
Detentor da presidência mexicana entre 1929 e 2000, o PRI completou sete décadas no poder através de um intricado balanço entre interferência no Judiciário, porosidade organizacional e, no fim, fraude e violência política. (A melhor análise sobre a política mexicana no século XX é o livro de Beatriz Magaloni, em “Voting for autocracy: hegemonic party survival and its demise in Mexico” [Cambridge University Press, 2006].)
E a Colômbia? Bem, qualquer pessoa que assistiu a primeira temporada de “Narcos” na Netflix sabe que a terra de Gabriel García Márquez foi durante décadas comandada por traficantes. Em 1985, para ficar em só um exemplo, guerrilheiros esquerdistas sem relação com o tráfico tomaram a Suprema Corte do país. Escobar mandava matar e seguia impune, negociando com presidente após presidente.
Enquanto isso, as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) sequestravam civis, matavam e também negociavam com a política “oficial”. E é essa a principal diferença da Colômbia com relação à violência carioca (e também mexicana). Lá a violência política era, também, uma maneira de pressionar e negociar decisões políticas com diversos governos. Alguém aí sabe quem é o chefe das milícias no Rio de Janeiro para o general interventor bater um papo com ele? Tema para outro capítulo.
O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), ativista de direitos humanos, é chocante. Pode ter levado o país a um novo patamar de instabilidade política. Parece que o sistema corrupto e violento do Rio de Janeiro só poupa, agora, alguns moradores da zona sul da cidade. Nem políticos estão a salvo. De quarta-feira à noite até agora, diversas análises sobre o impacto da execução argumentam que a política brasileira nunca mais será a mesma.
As manifestações de protesto contra a violência reuniram dezenas de milhares de pessoas não apenas no Rio de Janeiro, mas também em outras capitais. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, afirma que houve um “atentado contra a democracia”. Poucas horas após o assassinato, a filha de Marielle, Luyara Santos, postou no Twitter que os 45 mil eleitores de sua mãe também eram vítimas.
Intuitivamente, essas afirmações fazem sentido. Direitos civis e a liberdade de ir e vir são pilares democráticos. Um argumento contrário é lembrado: por que a morte de uma vereadora fere a democracia e o assassinato de dezenas de cariocas mensalmente não? Em outras palavras: homicídios são “normais” em democracias, mas homicídios de políticos atentam contra a base política que sustenta países democráticos. Por quê?
É fundamental pensar em uma definição simples de democracia para argumentar. O cientista político norte-americano Robert Dahl definiu muito bem. Democracias são mais “democráticas” na medida em que têm competição eleitoral livre e participação popular ampla. Quanto mais liberdade para partidos e movimentos sociais se organizarem para agir politicamente, mais democrático será o país. Quanto mais gente votar sem interferência alguma, secretamente, mais saudável será a democracia.
Qualquer assassinato é temerário. Mas não há lei que os evite. O que se pode esperar, mas dificilmente acontece no Rio de Janeiro, é a resolução do crime. 20% dos assassinatos na cidade são solucionados. Nos demais, falta o básico: identificação dos criminosos, processo judicial justo e (relativamente) rápido, punição conforme prevista em lei (sob condições saudáveis, sem organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho agindo para recrutar os presos).
A falha do sistema de segurança carioca não é, por enquanto, algo que fere a estabilidade democrática. Não há chance, no horizonte próximo, de algum grupo tomar o poder no estado e instituir uma ditadura subnacional. Tampouco é razoável imaginar que uma guerra civil de fato se avizinha (Convido quem considera que todo o Rio de Janeiro está em guerra civil a visitar a Venezuela ou a Síria). Os assassinatos cariocas e em outras partes do país indicam apenas – e esse “apenas” é enfático – a ineficiência e corrupção de uma política pública. Pessoas assassinadas não são diferentes de mortos por causas naturais esperando atendimento em hospitais públicos.
A execução de Marielle pode indicar algo diferente. Um mandato político não é intrinsecamente superior a outro. Marielle Franco e Carlos Bolsonaro, um dos filhos de Jair, ambos representam eleitores. O problema de eles não estarem seguros é que a competição eleitoral se torna menos livre do que poderia e deveria ser. Afinal, se uma política ativista na área de direitos humanos não pode circular em paz, os próximos ativistas que quiserem ser eleitos para a Câmara Municipal talvez desistam da ação política formal. E todos perderemos com isso.
Mas o contrário pode acontecer. Talvez o movimento “Marielle, sempre!” incentive mais pessoas que concordam com as ideias da vereadora a concorrerem pelo PSOL ou outros partidos. Nas próximas eleições, não duvido que os direitos humanos e a violência urbana serão temas candentes. Novas(os) Marielles podem surgir e, assim, ampliar o projeto político da vereadora. Só o tempo dirá.
Isso significa que diagnósticos mais pessimistas, comparando o Brasil a Colômbia e México, são muito precoces. Apesar de a violência política carioca não ser desprezível, estamos longe dos colegas de América Latina. De acordo com o cientista político Juan Albarracín, 107 políticos cariocas sofreram assassinato (ou tentativa de) entre 1998 e 2016. Em anos eleitorais, houve 7,3 eventos desse tipo. Em anos não-eleitorais, 3,8. Isso indica (mas não prova, é claro) que frear a competição eleitoral não é o principal objetivo de quem comete violência política no Rio de Janeiro (O artigo de Juan Albarracín é “Criminalized electoral politics in Brazilian urban peripheries” e está disponível no site da revista Crime, Law, and Social Change .)
A partir disso, já podemos descartar a comparação com o México. Durante os anos oitenta e noventa do século passado, o Partido Revolucionário Institucional (PRI) assassinou 660 políticos do Partido da Revolução Democrática (PRD), de acordo com a cientista política Sara Schatz, autora do artigo “Disarming the legal system: impunity for the political murder of dissidentes in Mexico”, publicado na International Criminal Justice Review em 2008.
Detentor da presidência mexicana entre 1929 e 2000, o PRI completou sete décadas no poder através de um intricado balanço entre interferência no Judiciário, porosidade organizacional e, no fim, fraude e violência política. (A melhor análise sobre a política mexicana no século XX é o livro de Beatriz Magaloni, em “Voting for autocracy: hegemonic party survival and its demise in Mexico” [Cambridge University Press, 2006].)
E a Colômbia? Bem, qualquer pessoa que assistiu a primeira temporada de “Narcos” na Netflix sabe que a terra de Gabriel García Márquez foi durante décadas comandada por traficantes. Em 1985, para ficar em só um exemplo, guerrilheiros esquerdistas sem relação com o tráfico tomaram a Suprema Corte do país. Escobar mandava matar e seguia impune, negociando com presidente após presidente.
Enquanto isso, as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) sequestravam civis, matavam e também negociavam com a política “oficial”. E é essa a principal diferença da Colômbia com relação à violência carioca (e também mexicana). Lá a violência política era, também, uma maneira de pressionar e negociar decisões políticas com diversos governos. Alguém aí sabe quem é o chefe das milícias no Rio de Janeiro para o general interventor bater um papo com ele? Tema para outro capítulo.