Tulsa e os muitos pecados do racismo americano
Se a América tivesse tratado seus ex-escravos como cidadãos, seria de esperar que o legado da escravidão aos poucos fosse desaparecendo
felipegiacomelli
Publicado em 29 de junho de 2020 às 15h19.
Última atualização em 29 de junho de 2020 às 17h56.
Quando agentes de campanha de Trump marcaram um comício em Tulsa (Oklahoma) em 19 de junho, eles emitiram o que parecia um sinal de aprovação aos supremacistas brancos. Afinal, 19 de junho é uma data comemorativa, lembrada pelos afroamericanos por marcar o fim da escravidão nos Estados Unidos . E Tulsa foi o local de um massacre racial em 1921, um dos incidentes mais mortais na longa e violenta ofensiva de negar aos negros americanos os frutos de sua liberdade conquistada a tanto custo.
O que se tem dito agora é que o comitê de campanha de Trump não entendia a significação da data, mas eu não acredito nisso nem por um segundo. O presidente Trump, de fato e a contragosto, adiou o comício para o dia seguinte, mas com certeza isso foi porque ele e seu círculo mais próximo se surpreenderam com a força das reações contrárias, assim como ficaram surpresos com o apoio público às manifestações do Black Lives Matter.
Mas vamos falar de Tulsa e de como ela se encaixa na história mais ampla do racismo na América.
Joe Biden, provável candidato democrata à Presidência, já declarou que a escravidão é o “pecado original” da América. Sem dúvida, ele tem razão. É importante, porém, entender que o pecado não parou quando se aboliu a escravidão.
Se a América tivesse tratado seus ex-escravos e os descendentes deles como cidadãos de verdade, com plena proteção da lei, seria de esperar que o legado da escravidão aos poucos fosse desaparecendo.
Os escravos soltos começaram com nada, mas sem dúvida com o tempo muitos deles teriam conseguido trabalhar e conquistar coisas, comprar imóveis, educar seus filhos e se tornar integrantes plenos da sociedade. De fato, isso começou a acontecer durante os 12 anos da Reconstrução, quando a população negra por um breve período se beneficiou de algo parecido com igualdade de direitos.
Só que o acordo político corrupto que pôs fim à Reconstrução privilegiou os supremacistas brancos do Sul, que de modo sistemático suprimiram os ganhos dos negros. Afroamericanos que conseguiram comprar propriedades quase sempre viam seus imóveis serem desapropriados, por subterfúgios legais ou pelo cano de uma arma. E a nascente classe média negra foi na prática sujeitada a um reino de terror.
Que é onde entra Tulsa. Em 1921, a cidade estava no centro de um boom do petróleo, um lugar para o qual as pessoas em busca de oportunidades migravam. Ela se orgulhava de ter uma classe média negra de tamanho considerável, concentrada no bairro de Greenwood, geralmente descrito como a “Wall Street negra”.
E foi esse o bairro destruído pelas hordas brancas, que saquearam comércios e casas de negros, matando prováveis centenas de pessoas. (Nós não sabemos ao certo quantas porque o massacre nunca foi investigado como se deve.) A polícia, é claro, não fez nada para proteger os cidadãos negros; em vez disso, ela se juntou aos manifestantes.
Para surpresa de ninguém, a violência contra os afroamericanos que conseguiram obter qualquer sucesso econômico desencorajou outras iniciativas. Por exemplo, a economista Lisa Cook vem mostrando que o número de negros registrando patentes, que vinha aumentando durante várias décadas após a Guerra Civil, despencou diante da crescente violência branca.
A repressão violenta serviu para incentivar a Grande Migração, o êxodo de milhões de negros do Sul americano para as cidades do Norte, mudança que começou cinco anos antes do massacre de Tulsa e continuou até meados de 1970.
Mesmo nas cidades do Norte, geralmente as oportunidades de ascensão social eram negadas aos negros. Por exemplo, em 1944 agentes de trânsito brancos da Filadélfia entraram em greve - atrapalhando a produção de guerra - para protestar contra a promoção de alguns empregados negros.
Mas a discriminação e a repressão eram menos severas do que no Sul. E seria de se esperar que a terrível jornada de repressão negra tivesse finalmente chegado ao fim após a Lei dos Direitos Civis de 1964, implementada um século após a Emancipação, colocar um fim à discriminação explícita.
Infelizmente, para muitos afroamericanos as cidades do Norte viraram uma armadilha socioeconômica. As oportunidades que atraíram migrantes sumiram à medida que os empregos no setor industrial foram primeiro para os subúrbios, depois para o exterior. Chicago, por exemplo, perdeu 60% de seu emprego na produção entre 1967 e 1987.
E quando a perda de oportunidades econômicas levou, como esperado, a uma disfunção social - a um cenário de famílias sem condições de viver e de desespero -, gente branca demais estava pronta para culpar as vítimas. O problema, diziam muitos brancos, estava na cultura negra - ou, insinuavam alguns, na inferioridade racial.
Este racismo tão implícito não era só retórico; ele alimentou a oposição a programas do governo, inclusive mas não só, ao Obamacare, que poderia ter ajudado afroamericanos. Se você se pergunta por que a rede de proteção social dos EUA é tão mais fraca comparada às de outros países desenvolvidos, dá para resumir o motivo em uma palavra só: raça.
É estranho dizer, aliás, que não se ouviu tanta gente envolvida em culpar as vítimas poucas décadas depois, quando os brancos na região central do Leste viveram sua própria perda de oportunidade e aumento da disfunção social, expresso na alta de mortes por suicídio, álcool e opioides.
Como eu disse, portanto, a escravidão branca foi o pecado original da América, e seu legado desastroso foi perpetuado por outros pecados, alguns dos quais continuam até hoje.
A boa notícia é que a América pode estar mudando. A tentativa de Trump de usar a velha cartilha racista está fazendo a intenção de voto nele despencar. A peripécia de Tulsa parece ter sido um tiro no pé de Trump. Nós continuamos manchados pelo nosso pecado original, mas talvez estejamos, até que enfim, a caminho da salvação.
Quando agentes de campanha de Trump marcaram um comício em Tulsa (Oklahoma) em 19 de junho, eles emitiram o que parecia um sinal de aprovação aos supremacistas brancos. Afinal, 19 de junho é uma data comemorativa, lembrada pelos afroamericanos por marcar o fim da escravidão nos Estados Unidos . E Tulsa foi o local de um massacre racial em 1921, um dos incidentes mais mortais na longa e violenta ofensiva de negar aos negros americanos os frutos de sua liberdade conquistada a tanto custo.
O que se tem dito agora é que o comitê de campanha de Trump não entendia a significação da data, mas eu não acredito nisso nem por um segundo. O presidente Trump, de fato e a contragosto, adiou o comício para o dia seguinte, mas com certeza isso foi porque ele e seu círculo mais próximo se surpreenderam com a força das reações contrárias, assim como ficaram surpresos com o apoio público às manifestações do Black Lives Matter.
Mas vamos falar de Tulsa e de como ela se encaixa na história mais ampla do racismo na América.
Joe Biden, provável candidato democrata à Presidência, já declarou que a escravidão é o “pecado original” da América. Sem dúvida, ele tem razão. É importante, porém, entender que o pecado não parou quando se aboliu a escravidão.
Se a América tivesse tratado seus ex-escravos e os descendentes deles como cidadãos de verdade, com plena proteção da lei, seria de esperar que o legado da escravidão aos poucos fosse desaparecendo.
Os escravos soltos começaram com nada, mas sem dúvida com o tempo muitos deles teriam conseguido trabalhar e conquistar coisas, comprar imóveis, educar seus filhos e se tornar integrantes plenos da sociedade. De fato, isso começou a acontecer durante os 12 anos da Reconstrução, quando a população negra por um breve período se beneficiou de algo parecido com igualdade de direitos.
Só que o acordo político corrupto que pôs fim à Reconstrução privilegiou os supremacistas brancos do Sul, que de modo sistemático suprimiram os ganhos dos negros. Afroamericanos que conseguiram comprar propriedades quase sempre viam seus imóveis serem desapropriados, por subterfúgios legais ou pelo cano de uma arma. E a nascente classe média negra foi na prática sujeitada a um reino de terror.
Que é onde entra Tulsa. Em 1921, a cidade estava no centro de um boom do petróleo, um lugar para o qual as pessoas em busca de oportunidades migravam. Ela se orgulhava de ter uma classe média negra de tamanho considerável, concentrada no bairro de Greenwood, geralmente descrito como a “Wall Street negra”.
E foi esse o bairro destruído pelas hordas brancas, que saquearam comércios e casas de negros, matando prováveis centenas de pessoas. (Nós não sabemos ao certo quantas porque o massacre nunca foi investigado como se deve.) A polícia, é claro, não fez nada para proteger os cidadãos negros; em vez disso, ela se juntou aos manifestantes.
Para surpresa de ninguém, a violência contra os afroamericanos que conseguiram obter qualquer sucesso econômico desencorajou outras iniciativas. Por exemplo, a economista Lisa Cook vem mostrando que o número de negros registrando patentes, que vinha aumentando durante várias décadas após a Guerra Civil, despencou diante da crescente violência branca.
A repressão violenta serviu para incentivar a Grande Migração, o êxodo de milhões de negros do Sul americano para as cidades do Norte, mudança que começou cinco anos antes do massacre de Tulsa e continuou até meados de 1970.
Mesmo nas cidades do Norte, geralmente as oportunidades de ascensão social eram negadas aos negros. Por exemplo, em 1944 agentes de trânsito brancos da Filadélfia entraram em greve - atrapalhando a produção de guerra - para protestar contra a promoção de alguns empregados negros.
Mas a discriminação e a repressão eram menos severas do que no Sul. E seria de se esperar que a terrível jornada de repressão negra tivesse finalmente chegado ao fim após a Lei dos Direitos Civis de 1964, implementada um século após a Emancipação, colocar um fim à discriminação explícita.
Infelizmente, para muitos afroamericanos as cidades do Norte viraram uma armadilha socioeconômica. As oportunidades que atraíram migrantes sumiram à medida que os empregos no setor industrial foram primeiro para os subúrbios, depois para o exterior. Chicago, por exemplo, perdeu 60% de seu emprego na produção entre 1967 e 1987.
E quando a perda de oportunidades econômicas levou, como esperado, a uma disfunção social - a um cenário de famílias sem condições de viver e de desespero -, gente branca demais estava pronta para culpar as vítimas. O problema, diziam muitos brancos, estava na cultura negra - ou, insinuavam alguns, na inferioridade racial.
Este racismo tão implícito não era só retórico; ele alimentou a oposição a programas do governo, inclusive mas não só, ao Obamacare, que poderia ter ajudado afroamericanos. Se você se pergunta por que a rede de proteção social dos EUA é tão mais fraca comparada às de outros países desenvolvidos, dá para resumir o motivo em uma palavra só: raça.
É estranho dizer, aliás, que não se ouviu tanta gente envolvida em culpar as vítimas poucas décadas depois, quando os brancos na região central do Leste viveram sua própria perda de oportunidade e aumento da disfunção social, expresso na alta de mortes por suicídio, álcool e opioides.
Como eu disse, portanto, a escravidão branca foi o pecado original da América, e seu legado desastroso foi perpetuado por outros pecados, alguns dos quais continuam até hoje.
A boa notícia é que a América pode estar mudando. A tentativa de Trump de usar a velha cartilha racista está fazendo a intenção de voto nele despencar. A peripécia de Tulsa parece ter sido um tiro no pé de Trump. Nós continuamos manchados pelo nosso pecado original, mas talvez estejamos, até que enfim, a caminho da salvação.