Por que Salvador ainda é a capital criativa do Brasil
Se depender da criatividade do povo baiano, o Brasil pode se tornar um líder global na economia criativa, mas investidores precisam sair de suas bolhas
Guilherme Dearo
Publicado em 26 de agosto de 2020 às 15h18.
A chegada em agosto do documentário “Axé: canto de um povo e um lugar” à Netflix e o episódio sobre Salvador da série "Street Food", no mês passado, marcam um momento especial para a primeira capital do Brasil. Se não fosse a famigerada pandemia, que arrasou com a indústria do turismo globalmente, esse seria, sem dúvidas, o verão mais movimentado da cidade dos últimos anos.
A chegada de um novo Centro de Convenções privado, a reforma do aeroporto da cidade, a reforma de espaços importantes e a vinda (agora adiada) de eventos como o Afropunk, Bienal do Livro e o Salvador Black Film Festival ajudariam na retomada econômica dessa cidade que sempre influenciou culturalmente o Brasil.
Se fôssemos como a África do Sul ou Austrália, com várias capitais, faria sentido pensar que no Brasil se São Paulo é a capital econômica, Rio de Janeiro, a turística e Brasília a capital política, Salvador é sem dúvidas a capital cultural. Senão vejamos.
Como já disse o poeta e diplomata carioca Vinícius de Moares, foi em terras baianas que surgiu o samba de roda (precisamente em cidades como Santo Amaro da Purificação e Cachoeira) e que depois foi levado na virada do século passado ao Rio de Janeiro por Tia Ciata e outras baianas (que hoje dão nome a uma ala nas escolas de samba).
Mas quem pensa que só de samba vive o baiano está enganado. A guitarra elétrica foi criada também em Salvador pela dupla Dodô (afrodescendente) e Osmar, mais ou menos ao mesmo tempo que os americanos estavam criando a deles. A invenção brasileira foi chamada, na época, de “pau elétrico” e depois de “guitarra baiana”. Ou seja, quando a distorção do rock americano e inglês chegou na Bahia não causou estranheza ao povo que já pulava ao som do Trio Elétrico, que assim como Sound System jamaicano levou o som do reggae e do Dub para as ruas.
Aqui também surgiram movimentos que marcaram a cultura brasileira como a Tropicália e teve a influente banda Novos Baianos que mudou a música brasileira. Há poucos símbolos que identificam o Brasil no exterior, certamente alguns deles são o samba, a capoeira e a batida do Olodum, todos vindos da Bahia.
Porém, a novidade é que nos últimos anos surgiram outras empresas criativas e startups que estão criando novos modelos de negócios transformando a economia da cidade e com potencial de levar o nome da Bahia e do Brasil para o mundo.
Desde a década passada, iniciativas como o Parque Tecnológico da Bahia pelo Governo do Estado da Bahia e a criação do Senai Cimatec (chamado carinhosamente do MIT baiano), há um esforço para reposicionar a cidade que ainda é vista apenas como a cidade do verão e do carnaval.
Podemos dizer, sem receios, que nos últimos anos essas iniciativas tomaram uma proporção muito maior. Hoje Salvador já lidera, em números absolutos, o número de startups na região Nordeste e produziu “business cases” de grande relevância nacional como a Jusbrasil (uma das pioneiras em LawTech), Sanar (startup de conteúdo para área de saúde), Saferticket (eventos), Infleet (gestão de frotas), além de outras plataformas B2B como a Agilize (contabilidade), Antecipa (adquirida pela XP Investimentos) e as de impacto social como a Mosquito Zero, Trazfavela e Afrosaúde.
Essas empresas florescem em um ecossistema que hoje conta com importantes hubs como o Vale do Dendê (do qual sou um dos cofundadores), Hub Salvador (gerido pelo fundo Lighthouse e a empresa baiana de computadores, Daten), Colabore (espaço de impacto social da prefeitura com o Sebrae) e diversos coworks, programas de aceleração, escolas inovadoras como as do Sesi-Bahia e redes formais como a All Saints Bay ou informais como a Black Business Bahia.
A chegada da empresa Qintess no ecossistema baiano veio para coroar esse momento. A empresa, que está entre as dez maiores na área de TI no Brasil, anunciou recentemente um grande investimento estratégico para apoiar startups da diversidade e mira Salvador para ser um dos seus principais locais na busca de talentos para a área de tecnologia e criatividade no Brasil.
Possibilidades não faltam para a primeira capital do Brasil ser um novo hub criativo no país. A rigor, Salvador pode ser um grande território para o desenvolvimento do cinema brasileiro, junto com a cidade de Cachoeira, que já possui um curso de destaque na área de audiovisual. Da mesma forma, pode avançar na área de games onde já é conhecida por ser hub de jogos educacionais.
A capital baiana pode também expandir sua vocação musical criando uma cadeia produtiva para esse segmento com investimentos em produtores e estúdios musicais de padrão internacional e pode avançar muito na área de tecnologia, incluindo sua região metropolitana com cidades como Lauro de Freitas, as industriais Camaçari e Candeias e ainda São Francisco do Conde, onde há uma universidade internacional para estudantes africanos, a UNILAB.
Ainda há um logo caminho a trilhar para que Salvador, e a Bahia, sejam uma referência nacional consolidada no Brasil, assim como novas cidades-hub estão sendo nos Estados Unidos, como é o caso de Austin no Texas, Atlanta na Georgia e Detroit no Michigan (que não por acaso é um das principais capitais da música nos EUA, uma cidade negra, sede da Motown Records e onde foi criada a música techno).
O Brasil, em geral, ainda precisa investir muito em reduzir a burocracia e melhorar a infraestrutura, inclusive a qualidade da educação para que esta prepare os jovens para os grandes desafios do século 21. Mas, se depender da criatividade e resiliência do povo baiano, é possível o Brasil ser um líder global na economia criativa. É preciso apenas que investidores possam sair de suas bolhas e olhar para a potência que emerge da primeira capital do Brasil.
Paulo Rogério Nunes é empreendedor, consultor em diversidade e autor do livro “Oportunidades Invisíveis”.
A chegada em agosto do documentário “Axé: canto de um povo e um lugar” à Netflix e o episódio sobre Salvador da série "Street Food", no mês passado, marcam um momento especial para a primeira capital do Brasil. Se não fosse a famigerada pandemia, que arrasou com a indústria do turismo globalmente, esse seria, sem dúvidas, o verão mais movimentado da cidade dos últimos anos.
A chegada de um novo Centro de Convenções privado, a reforma do aeroporto da cidade, a reforma de espaços importantes e a vinda (agora adiada) de eventos como o Afropunk, Bienal do Livro e o Salvador Black Film Festival ajudariam na retomada econômica dessa cidade que sempre influenciou culturalmente o Brasil.
Se fôssemos como a África do Sul ou Austrália, com várias capitais, faria sentido pensar que no Brasil se São Paulo é a capital econômica, Rio de Janeiro, a turística e Brasília a capital política, Salvador é sem dúvidas a capital cultural. Senão vejamos.
Como já disse o poeta e diplomata carioca Vinícius de Moares, foi em terras baianas que surgiu o samba de roda (precisamente em cidades como Santo Amaro da Purificação e Cachoeira) e que depois foi levado na virada do século passado ao Rio de Janeiro por Tia Ciata e outras baianas (que hoje dão nome a uma ala nas escolas de samba).
Mas quem pensa que só de samba vive o baiano está enganado. A guitarra elétrica foi criada também em Salvador pela dupla Dodô (afrodescendente) e Osmar, mais ou menos ao mesmo tempo que os americanos estavam criando a deles. A invenção brasileira foi chamada, na época, de “pau elétrico” e depois de “guitarra baiana”. Ou seja, quando a distorção do rock americano e inglês chegou na Bahia não causou estranheza ao povo que já pulava ao som do Trio Elétrico, que assim como Sound System jamaicano levou o som do reggae e do Dub para as ruas.
Aqui também surgiram movimentos que marcaram a cultura brasileira como a Tropicália e teve a influente banda Novos Baianos que mudou a música brasileira. Há poucos símbolos que identificam o Brasil no exterior, certamente alguns deles são o samba, a capoeira e a batida do Olodum, todos vindos da Bahia.
Porém, a novidade é que nos últimos anos surgiram outras empresas criativas e startups que estão criando novos modelos de negócios transformando a economia da cidade e com potencial de levar o nome da Bahia e do Brasil para o mundo.
Desde a década passada, iniciativas como o Parque Tecnológico da Bahia pelo Governo do Estado da Bahia e a criação do Senai Cimatec (chamado carinhosamente do MIT baiano), há um esforço para reposicionar a cidade que ainda é vista apenas como a cidade do verão e do carnaval.
Podemos dizer, sem receios, que nos últimos anos essas iniciativas tomaram uma proporção muito maior. Hoje Salvador já lidera, em números absolutos, o número de startups na região Nordeste e produziu “business cases” de grande relevância nacional como a Jusbrasil (uma das pioneiras em LawTech), Sanar (startup de conteúdo para área de saúde), Saferticket (eventos), Infleet (gestão de frotas), além de outras plataformas B2B como a Agilize (contabilidade), Antecipa (adquirida pela XP Investimentos) e as de impacto social como a Mosquito Zero, Trazfavela e Afrosaúde.
Essas empresas florescem em um ecossistema que hoje conta com importantes hubs como o Vale do Dendê (do qual sou um dos cofundadores), Hub Salvador (gerido pelo fundo Lighthouse e a empresa baiana de computadores, Daten), Colabore (espaço de impacto social da prefeitura com o Sebrae) e diversos coworks, programas de aceleração, escolas inovadoras como as do Sesi-Bahia e redes formais como a All Saints Bay ou informais como a Black Business Bahia.
A chegada da empresa Qintess no ecossistema baiano veio para coroar esse momento. A empresa, que está entre as dez maiores na área de TI no Brasil, anunciou recentemente um grande investimento estratégico para apoiar startups da diversidade e mira Salvador para ser um dos seus principais locais na busca de talentos para a área de tecnologia e criatividade no Brasil.
Possibilidades não faltam para a primeira capital do Brasil ser um novo hub criativo no país. A rigor, Salvador pode ser um grande território para o desenvolvimento do cinema brasileiro, junto com a cidade de Cachoeira, que já possui um curso de destaque na área de audiovisual. Da mesma forma, pode avançar na área de games onde já é conhecida por ser hub de jogos educacionais.
A capital baiana pode também expandir sua vocação musical criando uma cadeia produtiva para esse segmento com investimentos em produtores e estúdios musicais de padrão internacional e pode avançar muito na área de tecnologia, incluindo sua região metropolitana com cidades como Lauro de Freitas, as industriais Camaçari e Candeias e ainda São Francisco do Conde, onde há uma universidade internacional para estudantes africanos, a UNILAB.
Ainda há um logo caminho a trilhar para que Salvador, e a Bahia, sejam uma referência nacional consolidada no Brasil, assim como novas cidades-hub estão sendo nos Estados Unidos, como é o caso de Austin no Texas, Atlanta na Georgia e Detroit no Michigan (que não por acaso é um das principais capitais da música nos EUA, uma cidade negra, sede da Motown Records e onde foi criada a música techno).
O Brasil, em geral, ainda precisa investir muito em reduzir a burocracia e melhorar a infraestrutura, inclusive a qualidade da educação para que esta prepare os jovens para os grandes desafios do século 21. Mas, se depender da criatividade e resiliência do povo baiano, é possível o Brasil ser um líder global na economia criativa. É preciso apenas que investidores possam sair de suas bolhas e olhar para a potência que emerge da primeira capital do Brasil.
Paulo Rogério Nunes é empreendedor, consultor em diversidade e autor do livro “Oportunidades Invisíveis”.