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Direita e esquerda, um embate que dividiu até a Bossa Nova

Embates entre a esquerda e a direita, nos anos 1960, foram célebres na cena política brasileira

Nara Leão: o escritor Ruy Castro, em seu livro “Chega de Saudade”, narra o duelo entre músicos de esquerda e de direita na Bossa Nova (Reprodução/Reprodução)
JR

Janaína Ribeiro

Publicado em 19 de julho de 2020 às 09h41.

Última atualização em 19 de julho de 2020 às 19h54.

Embates entre a esquerda e a direita, nos anos 1960, foram célebres na cena política brasileira. O governo militar, com a repressão, provocou debates eternos entre apoiadores e opositores em praticamente todos os setores da sociedade. Na música, os registros da década mostram uma produção generosa dos compositores que protestaram contra a ditadura. Mas o escritor Ruy Castro, em seu livro “Chega de Saudade”, narra o duelo entre músicos de esquerda e de direita na Bossa Nova, que começou como um movimento sólido e único na virada da década.

A divisão teve início quando Nara Leão, talvez o maior ícone deste gênero musical, deu uma entrevista na qual se disse cansada dos sambas de uma temática só. “Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento”, disse Nara. “Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para outro grupinho”.
A irmã de Danuza, a essa altura, estava namorando o cineasta Ruy Guerra, um artista ligado à esquerda, e não demorou muito para a enxovalhar o Exército. “Os militares podem entender de canhão ou de metralhadora, mas não ‘pescam’ nada de política”, declarou. “Nossas Forças Armadas não servem para nada”. Corria o ano de 1964 e os ânimos políticos estavam exacerbados, mas a temática da Bossa Nova, nas palavras de sua agora ex-musa, continuava na base do “amor-flor-mar-amor-flor-mar”.

Nesta cisão, formou-se imediatamente um grupo que buscava letras politicamente engajadas. Além da própria Nara Leão, esse time era escalado com Carlinhos Lyra, Sergio Ricardo (ironicamente, aquele que, em 1967, irritado com as vaias dirigidas à música “Beto Bom de Bola”, vista como alienante pela plateia, quebrou um violão e jogou-o em direção ao público do Festival de Música Popular Brasileira da TV Record), Geraldo Vandré, Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri (que seria letrista de “Upa, Neguinho”).

Os demais, que tinham apenas interesse em música, foram imediatamente tachados de direitistas. Entre estes, estavam aqueles que Ruy Castro diziam ser alienados assumidos, como Ronaldo Bôscoli, Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (fundador da legendária gravadora Elenco e membro do não menos legendário Bando da Lua, o conjunto que acompanhava Carmen Miranda, de quem era namorado).
O único que tinha passe livre entre as duas turmas era o poeta Vinicius de Moraes. Diplomata de carreira e, portanto, funcionário do governo federal, era um crítico moderado nesses primeiros momentos do regime militar. Mas era dado endereçar alfinetadas aos generais. Acabou exonerado em uma operação que visava livrar o Itamaraty de “pederastas, vagabundos e boêmios”, como mostram vários registros da época. Em sua ficha de dispensa, o motivo listado foi “alcoolismo”.
Pouco a pouco, surgiam espetáculos com críticas sociais, como Arena Canta Zumbi, prenunciando que a Bossa Nova evoluiria para o que se convencionou a chamar, depois, de Música Popular Brasileira, que até o início dos anos 1980 exercitaria sua veia de protesto.

Do chamado lado direitista, o compositor Marcos Valle era um legítimo representante da escola “amor-flor-mar-amor-flor-mar”, esculhambada por Nara Leão. Valle, vendo um tremendo populismo nas críticas, resolveu escrever uma canção respondendo à tal entrevista. Batizada justamente de “A Resposta”, a música era uma estocada firme naqueles que se julgavam legítimos representantes da cultura popular na música brasileira.
A letra dizia o seguinte: “Mas é tempo de ser diferente/ E essa gente não quer mais saber de amor/ Falar de terra na areia do Arpoador/ Quem pelo pobre na vida não faz um favor/ Falar do morro morando de frente pro mar/ Não vai fazer ninguém melhorar”. O endereço era certeiro: Nara Leão morava em um apartamento na Avenida Atlântica, em Copacabana. A dez metros da areia da praia.
Essa canção, alguns meses depois de seu lançamento, contudo, chamou a atenção da própria Nara Leão, que quis gravá-la. O autor, completamente desconcertado com a intenção da intérprete, perguntou-lhe por que desejava gravar justamente aquela música, que fora composta para alfinetá-la. A resposta: “Mudo de opinião de duas em duas horas”, disse Nara.

Rapidamente, os egressos da Bossa Nova uniram-se de novo. E os direitistas de plantão passaram a ser Roberto Carlos, Wanderleia e Erasmo Carlos – a turma da Jovem Guarda, que, inspirada pelos Beatles, se transformaram nos alienados da vez. E, como num passe de mágica, continuou a briga ideológica no cenário musical brasileiro.

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Embates entre a esquerda e a direita, nos anos 1960, foram célebres na cena política brasileira. O governo militar, com a repressão, provocou debates eternos entre apoiadores e opositores em praticamente todos os setores da sociedade. Na música, os registros da década mostram uma produção generosa dos compositores que protestaram contra a ditadura. Mas o escritor Ruy Castro, em seu livro “Chega de Saudade”, narra o duelo entre músicos de esquerda e de direita na Bossa Nova, que começou como um movimento sólido e único na virada da década.

A divisão teve início quando Nara Leão, talvez o maior ícone deste gênero musical, deu uma entrevista na qual se disse cansada dos sambas de uma temática só. “Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento”, disse Nara. “Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para outro grupinho”.
A irmã de Danuza, a essa altura, estava namorando o cineasta Ruy Guerra, um artista ligado à esquerda, e não demorou muito para a enxovalhar o Exército. “Os militares podem entender de canhão ou de metralhadora, mas não ‘pescam’ nada de política”, declarou. “Nossas Forças Armadas não servem para nada”. Corria o ano de 1964 e os ânimos políticos estavam exacerbados, mas a temática da Bossa Nova, nas palavras de sua agora ex-musa, continuava na base do “amor-flor-mar-amor-flor-mar”.

Nesta cisão, formou-se imediatamente um grupo que buscava letras politicamente engajadas. Além da própria Nara Leão, esse time era escalado com Carlinhos Lyra, Sergio Ricardo (ironicamente, aquele que, em 1967, irritado com as vaias dirigidas à música “Beto Bom de Bola”, vista como alienante pela plateia, quebrou um violão e jogou-o em direção ao público do Festival de Música Popular Brasileira da TV Record), Geraldo Vandré, Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri (que seria letrista de “Upa, Neguinho”).

Os demais, que tinham apenas interesse em música, foram imediatamente tachados de direitistas. Entre estes, estavam aqueles que Ruy Castro diziam ser alienados assumidos, como Ronaldo Bôscoli, Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (fundador da legendária gravadora Elenco e membro do não menos legendário Bando da Lua, o conjunto que acompanhava Carmen Miranda, de quem era namorado).
O único que tinha passe livre entre as duas turmas era o poeta Vinicius de Moraes. Diplomata de carreira e, portanto, funcionário do governo federal, era um crítico moderado nesses primeiros momentos do regime militar. Mas era dado endereçar alfinetadas aos generais. Acabou exonerado em uma operação que visava livrar o Itamaraty de “pederastas, vagabundos e boêmios”, como mostram vários registros da época. Em sua ficha de dispensa, o motivo listado foi “alcoolismo”.
Pouco a pouco, surgiam espetáculos com críticas sociais, como Arena Canta Zumbi, prenunciando que a Bossa Nova evoluiria para o que se convencionou a chamar, depois, de Música Popular Brasileira, que até o início dos anos 1980 exercitaria sua veia de protesto.

Do chamado lado direitista, o compositor Marcos Valle era um legítimo representante da escola “amor-flor-mar-amor-flor-mar”, esculhambada por Nara Leão. Valle, vendo um tremendo populismo nas críticas, resolveu escrever uma canção respondendo à tal entrevista. Batizada justamente de “A Resposta”, a música era uma estocada firme naqueles que se julgavam legítimos representantes da cultura popular na música brasileira.
A letra dizia o seguinte: “Mas é tempo de ser diferente/ E essa gente não quer mais saber de amor/ Falar de terra na areia do Arpoador/ Quem pelo pobre na vida não faz um favor/ Falar do morro morando de frente pro mar/ Não vai fazer ninguém melhorar”. O endereço era certeiro: Nara Leão morava em um apartamento na Avenida Atlântica, em Copacabana. A dez metros da areia da praia.
Essa canção, alguns meses depois de seu lançamento, contudo, chamou a atenção da própria Nara Leão, que quis gravá-la. O autor, completamente desconcertado com a intenção da intérprete, perguntou-lhe por que desejava gravar justamente aquela música, que fora composta para alfinetá-la. A resposta: “Mudo de opinião de duas em duas horas”, disse Nara.

Rapidamente, os egressos da Bossa Nova uniram-se de novo. E os direitistas de plantão passaram a ser Roberto Carlos, Wanderleia e Erasmo Carlos – a turma da Jovem Guarda, que, inspirada pelos Beatles, se transformaram nos alienados da vez. E, como num passe de mágica, continuou a briga ideológica no cenário musical brasileiro.

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