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Brasil: democracia ou democratura?

Um exemplo claro é a cassação de Deltan Dallagnol, decidida por unanimidade pelo Tribunal Superior Eleitoral

Solenidade de transmissão de cargo a Flávio Dino como ministro da Justiça e Segurança Pública (Valter Campanato/Agência Brasil)

Publicado em 19 de maio de 2023 às 20h44.

Ao observar a atual situação política brasileira, um amigo disse que o Brasil é uma democracia trans: é ditadura, mas se sente democracia. Retruquei que talvez o correto fosse o contrário: é democracia, mas se sente ditadura. Evidentemente, esse aspecto não se aplica a todo o panorama político do país. Mas há nichos nos poderes constituídos que parecem flertar perigosamente com o autoritarismo.

Um exemplo claro é a cassação de Deltan Dallagnol, decidida por unanimidade pelo Tribunal Superior Eleitoral. O parecer do relator Benjamin Gonçalves foi acompanhado por todo o plenário e parte do princípio de que o então candidato à Câmara deixou a Procuradoria para evitar um processo que o levaria à condenação.

Como Dallagnol não foi alvo de um processo nem foi condenado, Gonçalves instituiu um novo tipo de interpretação da lei em seu voto: a leitura profética dos fatos. Funciona assim: Dallagnol deixou a procuradoria porque seria processado (primeira conjectura) e considerado culpado (segundo prognóstico); logo, precisa ter seu registro de candidatura cassado. Para elaborar seus argumentos, Gonçalves deve ter se inspirado no filme “Minority Report”, no qual as pessoas são presas antes mesmo de cometer crimes.

Os sete votos unânimes mostram que o Judiciário tem espírito de corpo e dificilmente discutirá a interpretação de um dos seus pares em plenário. Isso quer dizer que estamos à mercê, sem ter com quem reclamar, das decisões das altas cortes do país. A Constituição de 1988 praticamente deu plenos poderes aos juízes do Supremo para dar a última palavra sobre o que ocorre no Brasil. E, a partir daí, os ministros passaram a entrar até em assuntos que não lhe dizem respeito, como os campos administrados pelo Executivo e pelo Legislativo. Com tanto poder nas mãos, as cortes caíram na tentação de dobrar a sociedade pela inclemência de suas decisões (muitas vezes embasadas em interpretações criativas da lei e das normas constitucionais) e pela força das punições. O resultado disso? Teme-se hoje o Supremo Tribunal Federal como nunca. Um poder quase extremo, que pode ser autoritário.

Mas o flerte com o autoritarismo não está presente somente no Judiciário.

Tomemos como exemplo um vídeo que circula nas redes sociais, no qual o ministro da Justiça, Flávio Dino, ameaça abertamente os executivos que tocam as empresas de tecnologia e de redes sociais. Entende-se que o ministro estava sob forte pressão na época. A tal reunião foi realizada no dia 10 de abril, quando havia uma ameaça de atos violentos nas escolas no dia 20 – e, naquela semana, um adolescente tinha esfaqueado uma professora em Manaus. Mesmo levando isso em consideração, o tom ameaçador foi exagerado e dispensável. Algumas frases ditas por Dino neste encontro:

– A partir daqui, se os senhores não mudarem [os termos de uso das redes], arquem com as consequências.

– Esse tempo da autorregulação, da ausência de regulação, da liberdade de expressão como um valor absoluto, que é uma fraude, que é uma falcatrua, esse tempo acabou no Brasil.

– Se os senhores não derem respostas que nós consideramos como compatíveis e ajustadas, nós vamos tomar as providências que a lei determina.

– Isso que as senhoras e senhores viveram no processo eleitoral de 2022 no Brasil… Adotem isso como referência. É o que nós faremos com os senhores. Tenham clareza disso. Vamos fazer todos os dias, até que nós cheguemos a um ponto em que as senhoras e os senhores consigam se adequar a uma premência.

– Esse discurso dos “termos de uso” é a única coisa inaceitável, isso não existe no nosso dicionário. Dicionário da gramática do Ministério da Justiça, e da Polícia Federal, que eu comando, não existe a expressão “termos de uso”. Esqueçam isso. Nunca mais falem nisso.

– Tenho certeza de que essa colaboração ocorrerá. Em não ocorrendo, é claro que quem se opuser a essa ideia de colaboração obviamente está se expondo a que nós adotemos as providências. Nós não queremos que os senhores passem à condição de investigados da Polícia Federal ou de réus. Nós não queremos isso. Nós queremos que os senhores e as senhoras colaborem. Porque seria constrangedor para nós ter de recorrer a mecanismos coercitivos.

Embora a voz do ministro esteja em um registro calmo e até amigável, o conteúdo de suas frases não dá margem a interpretações: a conversa está na base do “façam o que eu digo ou enfrentarão a ira do ministério e da Polícia Federal”. Trata-se de um comportamento típico de quem diz prezar a democracia, mas, no fundo, age como se estivesse na ditadura.

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Ao observar a atual situação política brasileira, um amigo disse que o Brasil é uma democracia trans: é ditadura, mas se sente democracia. Retruquei que talvez o correto fosse o contrário: é democracia, mas se sente ditadura. Evidentemente, esse aspecto não se aplica a todo o panorama político do país. Mas há nichos nos poderes constituídos que parecem flertar perigosamente com o autoritarismo.

Um exemplo claro é a cassação de Deltan Dallagnol, decidida por unanimidade pelo Tribunal Superior Eleitoral. O parecer do relator Benjamin Gonçalves foi acompanhado por todo o plenário e parte do princípio de que o então candidato à Câmara deixou a Procuradoria para evitar um processo que o levaria à condenação.

Como Dallagnol não foi alvo de um processo nem foi condenado, Gonçalves instituiu um novo tipo de interpretação da lei em seu voto: a leitura profética dos fatos. Funciona assim: Dallagnol deixou a procuradoria porque seria processado (primeira conjectura) e considerado culpado (segundo prognóstico); logo, precisa ter seu registro de candidatura cassado. Para elaborar seus argumentos, Gonçalves deve ter se inspirado no filme “Minority Report”, no qual as pessoas são presas antes mesmo de cometer crimes.

Os sete votos unânimes mostram que o Judiciário tem espírito de corpo e dificilmente discutirá a interpretação de um dos seus pares em plenário. Isso quer dizer que estamos à mercê, sem ter com quem reclamar, das decisões das altas cortes do país. A Constituição de 1988 praticamente deu plenos poderes aos juízes do Supremo para dar a última palavra sobre o que ocorre no Brasil. E, a partir daí, os ministros passaram a entrar até em assuntos que não lhe dizem respeito, como os campos administrados pelo Executivo e pelo Legislativo. Com tanto poder nas mãos, as cortes caíram na tentação de dobrar a sociedade pela inclemência de suas decisões (muitas vezes embasadas em interpretações criativas da lei e das normas constitucionais) e pela força das punições. O resultado disso? Teme-se hoje o Supremo Tribunal Federal como nunca. Um poder quase extremo, que pode ser autoritário.

Mas o flerte com o autoritarismo não está presente somente no Judiciário.

Tomemos como exemplo um vídeo que circula nas redes sociais, no qual o ministro da Justiça, Flávio Dino, ameaça abertamente os executivos que tocam as empresas de tecnologia e de redes sociais. Entende-se que o ministro estava sob forte pressão na época. A tal reunião foi realizada no dia 10 de abril, quando havia uma ameaça de atos violentos nas escolas no dia 20 – e, naquela semana, um adolescente tinha esfaqueado uma professora em Manaus. Mesmo levando isso em consideração, o tom ameaçador foi exagerado e dispensável. Algumas frases ditas por Dino neste encontro:

– A partir daqui, se os senhores não mudarem [os termos de uso das redes], arquem com as consequências.

– Esse tempo da autorregulação, da ausência de regulação, da liberdade de expressão como um valor absoluto, que é uma fraude, que é uma falcatrua, esse tempo acabou no Brasil.

– Se os senhores não derem respostas que nós consideramos como compatíveis e ajustadas, nós vamos tomar as providências que a lei determina.

– Isso que as senhoras e senhores viveram no processo eleitoral de 2022 no Brasil… Adotem isso como referência. É o que nós faremos com os senhores. Tenham clareza disso. Vamos fazer todos os dias, até que nós cheguemos a um ponto em que as senhoras e os senhores consigam se adequar a uma premência.

– Esse discurso dos “termos de uso” é a única coisa inaceitável, isso não existe no nosso dicionário. Dicionário da gramática do Ministério da Justiça, e da Polícia Federal, que eu comando, não existe a expressão “termos de uso”. Esqueçam isso. Nunca mais falem nisso.

– Tenho certeza de que essa colaboração ocorrerá. Em não ocorrendo, é claro que quem se opuser a essa ideia de colaboração obviamente está se expondo a que nós adotemos as providências. Nós não queremos que os senhores passem à condição de investigados da Polícia Federal ou de réus. Nós não queremos isso. Nós queremos que os senhores e as senhoras colaborem. Porque seria constrangedor para nós ter de recorrer a mecanismos coercitivos.

Embora a voz do ministro esteja em um registro calmo e até amigável, o conteúdo de suas frases não dá margem a interpretações: a conversa está na base do “façam o que eu digo ou enfrentarão a ira do ministério e da Polícia Federal”. Trata-se de um comportamento típico de quem diz prezar a democracia, mas, no fundo, age como se estivesse na ditadura.

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