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A Ford sai do país. A culpa é do Brasil ou da própria Ford?

Pode-se botar a culpa em nossa selva fiscal para justificar o que aconteceu. Mas a verdade é que a empresa não conseguiu se manter competitiva

Trabalhadores com máscaras faciais participam de assembleia geral com sindicato em frente a fábrica da Ford Motor Co, após a empresa anunciar que fechará suas três fábricas no país, em Taubaté, Brasil, em 12 de janeiro de 2021. (Carla Carniel/Reuters)
BG

Bibiana Guaraldi

Publicado em 13 de janeiro de 2021 às 08h49.

O inesquecível maestro Antônio Carlos Jobim disse certa vez que “o Brasil não é para amadores”. De fato, aqui temos um intrincado e sufocante sistema tributário, além de uma legislação trabalhista que causa mais arrepios que um filme de Alfred Hitchcock. Mas, mesmo assim, há empresas que prosperam e crescem dentro deste ambiente hostil. E quem fracassa acaba vociferando contra as condições inóspitas de nosso capitalismo (com razão, diga-se, pois teríamos uma geração de riqueza muito maior com uma agenda voltada para o crescimento da iniciativa privada).

É dentro deste contexto que a Ford deixa o Brasil, fato que ganhou todas as manchetes dos jornais de ontem. A decisão de fechar suas fábricas em território nacional é um soco no estômago de quem acredita no país, mas deve ser analisado sob dois diferentes pontos de vista.

A Ford é uma das primeiras grandes empresas que trocará o Brasil por outros países da América Latina, em especial Uruguai ou mesmo Paraguai, em busca de melhores condições tributárias e trabalhistas. Enquanto não encontrarmos uma fórmula para baixar e simplificar impostos (reduzir o tamanho do Estado é sempre um bom caminho, mas o governo está com o freio de mão puxado nesta estrada há dois anos), perderemos players importantes em nosso parque industrial. É possível arriscar que a Ford brasileira tenha mais processos trabalhistas do que somadas as demais filiais da empresa no mundo. Isso corrói uma corporação por dentro e tira qualquer estímulo para investir em um mercado tão inospitaleiro.

Mas precisamos também enxergar a saída da Ford por outro ângulo: trata-se da consequência natural de anos de decadência na praça brasileira. Temos aqui um cenário cheio de dificuldades, é verdade. Mas, neste mesmo panorama, vimos o crescimento ou a consolidação de outras montadoras. A pandemia foi um problema adicional – mas afetou também a todos os mercados mundo afora.

A Ford, diga-se, conseguiu fatias expressivas de mercado e até obteve grande sucesso durante um bom tempo. Talvez o auge da empresa tenha sido o lançamento da linha Escort, nos anos 1980. Mas este êxito traz em seu bojo um aspecto nada positivo.

Nos anos 1960, a Ford comprou a Willys, que fabricava o antigo Gordini. E essa empresa tinha um programa de lançamento, batizado de 117, que visava adaptar o Renault 12 francês ao gosto brasileiro. A Ford herdou o projeto, fez mais algumas adaptações e lançou o Corcel, um grande sucesso na década de 1970 (foi introduzida, inclusive, uma nova versão, o Corcel II, em 1977). Ocorre que, desde o primeiro Corcel até o Escort, a Ford utilizou o mesmo motor CHT que equipava o Gordini e seu antecessor, o Dauphine. Portanto, usou para motorizar um carro moderno, o Escort, um propulsor com mais de vinte anos de concepção.

O resultado era percebido pelos consumidores. O carrinho era bonito, mas não tinha a performance desejada. Neste sentido, o Escort lembrava muito o Simca Chambord, apelidado nos anos 1960 de Belo Antônio (como no filme de Marcello Mastroiani, era bonito. Mas não tinha potência). Para tentar resolver a defasagem técnica que a distanciava dos concorrentes, veio uma solução inusitada: unir-se à Volkswagem, criando uma nova empresa, a Autolatina, e poder usar a tecnologia alemã em seus automóveis.

A fusão, que fazia sentido no Memorando de Entendimentos, não deu certo na dura realidade e os automóveis Ford perderam sua identidade visual. A joint-venture acabou depois de alguns anos e a Ford voltou aos seus dilemas de sempre.

Portanto, pode-se botar a culpa em nossa selva fiscal para justificar o que aconteceu. Mas a verdade é que a empresa não conseguiu se manter competitiva, como lograram Chevrolet, Volkswagen e Fiat. Por isso, a Ford via sua participação de mercado cair sistematicamente nos últimos anos, numa agonia silenciosa e constante.

A montadora, nos Estados Unidos, passou por momentos semelhantes como os vividos no Brasil. Tanto que, no início dos anos 1980, criou o slogan “Have you driven a Ford lately?” (“Você dirigiu um Ford recentemente?”). Parecia uma espécie de confissão de que a marca já não vendia mais como antes – e, no fundo, era isso mesmo. A maré somente virou com o lançamento do Taurus, que se transformou em um símbolo americano na luta contra os sedãs japoneses.

Se ficasse no Brasil, a empresa poderia ressuscitar esse slogan. Ontem, tive a pachorra de incomodar meus amigos, através do WhatsApp, com uma pergunta singela: “alguém do grupo é dono de um automóvel da Ford?”. Recebi cerca de duzentas respostas. Dessas, somente duas – repetindo: duas – foram positivas. À noite, percorri a garagem de meu prédio. São 88 vagas, das quais 60 devem estar preenchidas. Há quatro veículos da Ford (dois Focus, um Ecosport e um Edge). Mais uma vez: quatro em 60.

Embora sem nenhum valor estatístico ou científico, minha amostra informal é significativa, desde que lembremos o que o foi a Ford até a década de 1990, época na qual via-se nas ruas vários carrinhos com o logo azul ovalado na frente. Pode-se argumentar até que a matriz tomou a decisão de sair do mercado de veículos médios de passeio e se concentrar em SUVs e em picapes – uma fatia na qual a ainda se destaca. Mas o fato é que a operação brasileira estava à deriva. Neste caso, foi melhor ter puxado o band-aid de uma vez só e ter acabado logo com o pesadelo. Como diz um provérbio alemão (às vezes atribuído a Karl Marx), é melhor um final horroroso do que um horror sem fim.

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O inesquecível maestro Antônio Carlos Jobim disse certa vez que “o Brasil não é para amadores”. De fato, aqui temos um intrincado e sufocante sistema tributário, além de uma legislação trabalhista que causa mais arrepios que um filme de Alfred Hitchcock. Mas, mesmo assim, há empresas que prosperam e crescem dentro deste ambiente hostil. E quem fracassa acaba vociferando contra as condições inóspitas de nosso capitalismo (com razão, diga-se, pois teríamos uma geração de riqueza muito maior com uma agenda voltada para o crescimento da iniciativa privada).

É dentro deste contexto que a Ford deixa o Brasil, fato que ganhou todas as manchetes dos jornais de ontem. A decisão de fechar suas fábricas em território nacional é um soco no estômago de quem acredita no país, mas deve ser analisado sob dois diferentes pontos de vista.

A Ford é uma das primeiras grandes empresas que trocará o Brasil por outros países da América Latina, em especial Uruguai ou mesmo Paraguai, em busca de melhores condições tributárias e trabalhistas. Enquanto não encontrarmos uma fórmula para baixar e simplificar impostos (reduzir o tamanho do Estado é sempre um bom caminho, mas o governo está com o freio de mão puxado nesta estrada há dois anos), perderemos players importantes em nosso parque industrial. É possível arriscar que a Ford brasileira tenha mais processos trabalhistas do que somadas as demais filiais da empresa no mundo. Isso corrói uma corporação por dentro e tira qualquer estímulo para investir em um mercado tão inospitaleiro.

Mas precisamos também enxergar a saída da Ford por outro ângulo: trata-se da consequência natural de anos de decadência na praça brasileira. Temos aqui um cenário cheio de dificuldades, é verdade. Mas, neste mesmo panorama, vimos o crescimento ou a consolidação de outras montadoras. A pandemia foi um problema adicional – mas afetou também a todos os mercados mundo afora.

A Ford, diga-se, conseguiu fatias expressivas de mercado e até obteve grande sucesso durante um bom tempo. Talvez o auge da empresa tenha sido o lançamento da linha Escort, nos anos 1980. Mas este êxito traz em seu bojo um aspecto nada positivo.

Nos anos 1960, a Ford comprou a Willys, que fabricava o antigo Gordini. E essa empresa tinha um programa de lançamento, batizado de 117, que visava adaptar o Renault 12 francês ao gosto brasileiro. A Ford herdou o projeto, fez mais algumas adaptações e lançou o Corcel, um grande sucesso na década de 1970 (foi introduzida, inclusive, uma nova versão, o Corcel II, em 1977). Ocorre que, desde o primeiro Corcel até o Escort, a Ford utilizou o mesmo motor CHT que equipava o Gordini e seu antecessor, o Dauphine. Portanto, usou para motorizar um carro moderno, o Escort, um propulsor com mais de vinte anos de concepção.

O resultado era percebido pelos consumidores. O carrinho era bonito, mas não tinha a performance desejada. Neste sentido, o Escort lembrava muito o Simca Chambord, apelidado nos anos 1960 de Belo Antônio (como no filme de Marcello Mastroiani, era bonito. Mas não tinha potência). Para tentar resolver a defasagem técnica que a distanciava dos concorrentes, veio uma solução inusitada: unir-se à Volkswagem, criando uma nova empresa, a Autolatina, e poder usar a tecnologia alemã em seus automóveis.

A fusão, que fazia sentido no Memorando de Entendimentos, não deu certo na dura realidade e os automóveis Ford perderam sua identidade visual. A joint-venture acabou depois de alguns anos e a Ford voltou aos seus dilemas de sempre.

Portanto, pode-se botar a culpa em nossa selva fiscal para justificar o que aconteceu. Mas a verdade é que a empresa não conseguiu se manter competitiva, como lograram Chevrolet, Volkswagen e Fiat. Por isso, a Ford via sua participação de mercado cair sistematicamente nos últimos anos, numa agonia silenciosa e constante.

A montadora, nos Estados Unidos, passou por momentos semelhantes como os vividos no Brasil. Tanto que, no início dos anos 1980, criou o slogan “Have you driven a Ford lately?” (“Você dirigiu um Ford recentemente?”). Parecia uma espécie de confissão de que a marca já não vendia mais como antes – e, no fundo, era isso mesmo. A maré somente virou com o lançamento do Taurus, que se transformou em um símbolo americano na luta contra os sedãs japoneses.

Se ficasse no Brasil, a empresa poderia ressuscitar esse slogan. Ontem, tive a pachorra de incomodar meus amigos, através do WhatsApp, com uma pergunta singela: “alguém do grupo é dono de um automóvel da Ford?”. Recebi cerca de duzentas respostas. Dessas, somente duas – repetindo: duas – foram positivas. À noite, percorri a garagem de meu prédio. São 88 vagas, das quais 60 devem estar preenchidas. Há quatro veículos da Ford (dois Focus, um Ecosport e um Edge). Mais uma vez: quatro em 60.

Embora sem nenhum valor estatístico ou científico, minha amostra informal é significativa, desde que lembremos o que o foi a Ford até a década de 1990, época na qual via-se nas ruas vários carrinhos com o logo azul ovalado na frente. Pode-se argumentar até que a matriz tomou a decisão de sair do mercado de veículos médios de passeio e se concentrar em SUVs e em picapes – uma fatia na qual a ainda se destaca. Mas o fato é que a operação brasileira estava à deriva. Neste caso, foi melhor ter puxado o band-aid de uma vez só e ter acabado logo com o pesadelo. Como diz um provérbio alemão (às vezes atribuído a Karl Marx), é melhor um final horroroso do que um horror sem fim.

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