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Privatização: verdades, mentiras e uma arguta observação de Francisco de Oliveira

Uma coisa que me impressiona é a ira sacrossanta com que os anti-privatistas recheiam seus comentários. Quais são as raízes desse sentimento? Em que fontes eles vão buscá-las? Ocorrem-me duas hipóteses diametralmente opostas (mas que não necessariamente se anulam uma à outra). De um lado, interesses materiais direta e negativamente afetados: funcionários de estatais que perderam ou temem perder seus empregos, por exemplo. Do outro, motivos ou crenças abstratas, descoladas […] Leia mais

DR

Da Redação

Publicado em 17 de outubro de 2010 às 19h16.

Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às 11h01.

Uma coisa que me impressiona é a ira sacrossanta com que os anti-privatistas recheiam seus comentários. Quais são as raízes desse sentimento? Em que fontes eles vão buscá-las?

Ocorrem-me duas hipóteses diametralmente opostas (mas que não necessariamente se anulam uma à outra).

De um lado, interesses materiais direta e negativamente afetados: funcionários de estatais que perderam ou temem perder seus empregos, por exemplo.

Do outro, motivos ou crenças abstratas, descoladas de interesses materiais. Razões que chegam a soar até como religiosas.

Nessa ótica, tratar-se-ia essencialmente de uma luta do bem contra o mal. A empresa privada e a busca do lucro são vistas como uma encarnação do demônio, e por isso devem ser incessantemente combatidos pelo Estado, que corporifica o bem comum, quem sabe até a vontade de Deus neste nosso mundo terreno.

No pensamento de Marx & Engels, por exemplo, as desigualdades e injustiças devem-se à divisão da sociedade em classes sociais, que por sua vez se deve à propriedade privada dos meios de produção (fábricas, fazendas etc); com a estatização de tais meios, as desigualdades começam a desaparecer, dando lugar à “sociedade sem classes”, que seria uma espécie de céu na terra.

Reações dos dois tipos mencionados acima, eu compreendo (obviamente sem concordar com elas) sem nenhuma dificuldade. Quem teve interesses contrariados reage contra a política que os contrariou. Quem acredita que estatizar tudo é um atalho para a felicidade geral e eterna, também se opõe à privatização. Isto é óbvio.

Que dizer porém de pessoas que não se situam naqueles dois extremos? Pessoas que tentam apreciar o assunto de uma forma não tão rente a seus interesses pessoais e sem abraçar o polo contrário – o do advento do paraíso socialista?

Entre os dois extremos indicados há espaço para várias posições que considero sensatas e realistas, ligadas seja à importância relativa da presença estatal em diferentes setores, seja à necessidade de alocar de forma adequada recursos públicos sabidamente escassos.

No Brasil, existe claramente um consenso ou uma forte maioria no sentido de manter a presença estatal no setor de petróleo ; em todos os campos de atividade, um grande número de pessoas vê razões importantes para apoiar a Petrobrás. Em relação a outros setores, o consenso é muito mais baixo, ou não existe.

Pensemos na alocação de recursos públicos. Num país que precisa desesperadamente melhorar a educação, a saúde, a segurança etc, o governo deveria ter continuado a cobrir buracos em simples empresas siderúrgicas? Ou transferi-las ao setor privado, para que elas, modernizadas e lucrativas, passassem a gerar recursos públicos sob a forma de impostos?

Sobre a privatização das telecomunicações e da Companhia Vale do Rio Doce eu, francamente, não vejo razão para me estender. Só pessoas desinformadas ou acometidas de obtusidade ideológica podem negar os resultados obtidos.

Quem viveu ou leu alguma coisa sobre a situação da telefonia brasileira até três ou quatro décadas atrás, sabe que estávamos na idade da pedra. Até os anos 60, mesmo nas capitais, quem precisasse fazer um interurbano tinha de ir ao centro da cidade e enfrentar uma fila.

Os governos militares implantaram o DDD – sistema de discagem direta à distância -, um grande avanço. Mas a escassez de linhas permaneceu dramática ainda por muito tempo.

Até a privatização, existiam por toda parte empresas dedicadas ao rendoso negócio de alugar linhas. E quem possuísse alguma em geral a incluía entre os bens declarados anualmente à Receita Federal. E não sem motivo, porque uma linha valia alguma coisa entre 3 e 5 mil dólares.

Ah, me esqueci: empresas públicas foram vendidas na “bacia das almas”. Foi tudo uma grande “privataria”. Lula teve 8 anos para reverter ou pelo menos para fazer uma mísera auditoria nas privatizações realizadas pelo governo Fernando Henrique. Não fez uma coisa nem outra.

Mas repete, por motivos exclusivamente eleitorais, a encenação de 2006. Demoniza a privatização, em geral, e tenta utilizá-la contra o PSDB e José Serra.

Em vista disso, quero concluir este post citando uma entrevista do sociólogo Francisco de Oliveira, publicada hoje pelo “Folha.com”.

Chico de Oliveira, para quem não se lembra, foi um petista histórico. Mantém-se visceralmente anti-tucano, por razões que não vou tentar decifrar. Mas rompeu com o PT e com Lula em 2003.

Falando à Folha, ele abordou especificamente a questão da privatização.

Lula, disse Chico de Oliveira,

“… é mais privatista que FHC. As grandes tendências vão se armando e ele usa o poder do Estado para confirmá-las, não para negá-las. Então, nessa história futura, Lula será o grande confirmador do sistema.

Ele não é nada opositor ou estatizante. Isso é uma ilusão de ótica. Ao contrário, ele é privatista numa escala que o Brasil nunca conheceu. Essa onda de fusões, concentrações e aquisições que o BNDES está patrocinando tem claro sentido privatista.

Para o país, para a sociedade, para o cidadão, que bem faz que o Brasil tenha a maior empresa de carnes do mundo, por exemplo? Em termos de estratégia de desenvolvimento, divisão de renda e melhoria de bem-estar da população, isso não quer dizer nada”.

Publicado no blog de Bolívar Lamounier no site da revista “Exame”

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Uma coisa que me impressiona é a ira sacrossanta com que os anti-privatistas recheiam seus comentários. Quais são as raízes desse sentimento? Em que fontes eles vão buscá-las?

Ocorrem-me duas hipóteses diametralmente opostas (mas que não necessariamente se anulam uma à outra).

De um lado, interesses materiais direta e negativamente afetados: funcionários de estatais que perderam ou temem perder seus empregos, por exemplo.

Do outro, motivos ou crenças abstratas, descoladas de interesses materiais. Razões que chegam a soar até como religiosas.

Nessa ótica, tratar-se-ia essencialmente de uma luta do bem contra o mal. A empresa privada e a busca do lucro são vistas como uma encarnação do demônio, e por isso devem ser incessantemente combatidos pelo Estado, que corporifica o bem comum, quem sabe até a vontade de Deus neste nosso mundo terreno.

No pensamento de Marx & Engels, por exemplo, as desigualdades e injustiças devem-se à divisão da sociedade em classes sociais, que por sua vez se deve à propriedade privada dos meios de produção (fábricas, fazendas etc); com a estatização de tais meios, as desigualdades começam a desaparecer, dando lugar à “sociedade sem classes”, que seria uma espécie de céu na terra.

Reações dos dois tipos mencionados acima, eu compreendo (obviamente sem concordar com elas) sem nenhuma dificuldade. Quem teve interesses contrariados reage contra a política que os contrariou. Quem acredita que estatizar tudo é um atalho para a felicidade geral e eterna, também se opõe à privatização. Isto é óbvio.

Que dizer porém de pessoas que não se situam naqueles dois extremos? Pessoas que tentam apreciar o assunto de uma forma não tão rente a seus interesses pessoais e sem abraçar o polo contrário – o do advento do paraíso socialista?

Entre os dois extremos indicados há espaço para várias posições que considero sensatas e realistas, ligadas seja à importância relativa da presença estatal em diferentes setores, seja à necessidade de alocar de forma adequada recursos públicos sabidamente escassos.

No Brasil, existe claramente um consenso ou uma forte maioria no sentido de manter a presença estatal no setor de petróleo ; em todos os campos de atividade, um grande número de pessoas vê razões importantes para apoiar a Petrobrás. Em relação a outros setores, o consenso é muito mais baixo, ou não existe.

Pensemos na alocação de recursos públicos. Num país que precisa desesperadamente melhorar a educação, a saúde, a segurança etc, o governo deveria ter continuado a cobrir buracos em simples empresas siderúrgicas? Ou transferi-las ao setor privado, para que elas, modernizadas e lucrativas, passassem a gerar recursos públicos sob a forma de impostos?

Sobre a privatização das telecomunicações e da Companhia Vale do Rio Doce eu, francamente, não vejo razão para me estender. Só pessoas desinformadas ou acometidas de obtusidade ideológica podem negar os resultados obtidos.

Quem viveu ou leu alguma coisa sobre a situação da telefonia brasileira até três ou quatro décadas atrás, sabe que estávamos na idade da pedra. Até os anos 60, mesmo nas capitais, quem precisasse fazer um interurbano tinha de ir ao centro da cidade e enfrentar uma fila.

Os governos militares implantaram o DDD – sistema de discagem direta à distância -, um grande avanço. Mas a escassez de linhas permaneceu dramática ainda por muito tempo.

Até a privatização, existiam por toda parte empresas dedicadas ao rendoso negócio de alugar linhas. E quem possuísse alguma em geral a incluía entre os bens declarados anualmente à Receita Federal. E não sem motivo, porque uma linha valia alguma coisa entre 3 e 5 mil dólares.

Ah, me esqueci: empresas públicas foram vendidas na “bacia das almas”. Foi tudo uma grande “privataria”. Lula teve 8 anos para reverter ou pelo menos para fazer uma mísera auditoria nas privatizações realizadas pelo governo Fernando Henrique. Não fez uma coisa nem outra.

Mas repete, por motivos exclusivamente eleitorais, a encenação de 2006. Demoniza a privatização, em geral, e tenta utilizá-la contra o PSDB e José Serra.

Em vista disso, quero concluir este post citando uma entrevista do sociólogo Francisco de Oliveira, publicada hoje pelo “Folha.com”.

Chico de Oliveira, para quem não se lembra, foi um petista histórico. Mantém-se visceralmente anti-tucano, por razões que não vou tentar decifrar. Mas rompeu com o PT e com Lula em 2003.

Falando à Folha, ele abordou especificamente a questão da privatização.

Lula, disse Chico de Oliveira,

“… é mais privatista que FHC. As grandes tendências vão se armando e ele usa o poder do Estado para confirmá-las, não para negá-las. Então, nessa história futura, Lula será o grande confirmador do sistema.

Ele não é nada opositor ou estatizante. Isso é uma ilusão de ótica. Ao contrário, ele é privatista numa escala que o Brasil nunca conheceu. Essa onda de fusões, concentrações e aquisições que o BNDES está patrocinando tem claro sentido privatista.

Para o país, para a sociedade, para o cidadão, que bem faz que o Brasil tenha a maior empresa de carnes do mundo, por exemplo? Em termos de estratégia de desenvolvimento, divisão de renda e melhoria de bem-estar da população, isso não quer dizer nada”.

Publicado no blog de Bolívar Lamounier no site da revista “Exame”

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