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Políticas públicas de combate à violência contra mulher: entre o desejo do universal e a realidade interseccional

Como uma política pública universal apresenta efeitos positivos para um grupo e negativos para outro? O que poderia ser feito para a correção dessas desigualdades?

MaxMilhas cria coletivo para enfrentar a violência de gênero (Cris Faga/Getty Images)
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marianamartucci

Publicado em 11 de fevereiro de 2021 às 15h00.

A percepção da violência de gênero como um problema público é resultado da incansável luta do movimento feminista para mover as estruturas. Como consequências dessa batalha, destacam-se a criação de uma política pública de prevenção e combate à violência de gênero em 2006, o desenvolvimento de uma rede de prevenção e atendimento a mulheres em situação de violência, regras jurídicas como a Lei Maria da Penha, lei de feminicídio, dentre outras, e a mudança do senso comum sobre a questão.

Embora as novas regras do jogo tenham aumentado o custo da violência, esta continua a ocorrer. De maneira geral, a violência de gênero se dá pelo contexto desigual das relações de poder. Construções de ordem moral, jurídica e religiosa atribuem significados privilegiados ao “ser homem” em detrimento do “ser mulher”.  Como consequência, numa sociedade marcada pelo machismo e pelo patriarcado, toda mulher estaria sujeita a sofrer violência pelo simples fato de ser mulher.

Embora o aparato de proteção tenha sido pensando para proteger a todas, na prática, a política não tem produzido efeitos equivalentes quando as diferenças intragrupos são consideradas. A análise dos números de feminicídios, assassinato de mulheres em contexto de violência doméstica e familiar ou em decorrência de misoginia (menosprezo ou discriminação à condição de mulher), demonstra esse ponto.

Em 2019, 1.326 mulheres foram mortas, segundo o Atlas da Violência 2020. As mulheres negras representam 67% desse total. A desigualdade reflete-se ainda no aumento dos casos. Entre 2008 e 2018, a taxa de homicídio de mulheres não negras caiu 11,7%. No entanto, entre as mulheres negras houve aumento de 12,4%. Vale dizer que 1/3 dos estados brasileiros não informa o perfil racial de suas vítimas de feminicídio e esses números se referem aos dados completos. O Dossiê sobre Assassinatos e Violência da ANTRA (Associação Nacional de Transexuais e Travestis) em 2020 corrobora essa análise.  75 mulheres trans e travestis foram assassinadas em 2020. Não há registro de homicídio de homens trans e o Estado não publica dados oficiais.

Como uma política pública universal apresenta efeitos positivos para um grupo e negativos para outro? O que poderia ser feito para a correção dessas desigualdades? Uma análise interseccional poderia ser uma solução para entender esses resultados desiguais. Interseccionalidade é uma categoria teórico-analítica que focaliza múltiplos sistemas de opressão para propor um entendimento sobre determinado fenômeno. No caso do feminicídio, além de considerar o gênero, nos perguntaríamos: qual é a cor dessa mulher? Ela é uma mulher cis ou trans? Teve orientação jurídica? Possui acesso a trabalho e renda? Na região onde mora, havia uma delegacia da mulher? Foi bem assistida juridicamente? Tinha filhos menores? Dependia economicamente do agressor? Tinha para onde ir? De que região era?

As respostas a essas perguntas dariam aos atores envolvidos na implementação da política um melhor acesso à complexidade do fenômeno da violência de gênero e da real condição de vulnerabilidade. Isso permitiria compreender o fenômeno não pela variável única de gênero, mas por muitos eixos como classe, raça, orientação sexual e de gênero, entre outros.

A interseccionalidade tornou-se uma “buzz word”, remédio para todos os males. No entanto, quando apenas falada e não implementada tem efeito placebo: acalma alguns membros interessados, mas não possui efeito ativo no corpo social. A universalidade padece do mesmo mal. Em um país marcado por desigualdades estruturais complexas, proclamar algo universal para garantir o acesso à política, sem implementar medidas que sobreponham as desigualdades de raça, classe e gênero, é apenas uma boa intenção. O trabalho começa, portanto, por reconhecer a complexidade dos fenômenos sociais e entender como os eixos de subordinação afetam a forma como as pessoas vivem um mesmo problema. A partir daí é possível estender horizontes interpretativos e protetivos, reconhecendo a desigualdade interseccional, e caminhar para um resultado, de fato, universal.

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A percepção da violência de gênero como um problema público é resultado da incansável luta do movimento feminista para mover as estruturas. Como consequências dessa batalha, destacam-se a criação de uma política pública de prevenção e combate à violência de gênero em 2006, o desenvolvimento de uma rede de prevenção e atendimento a mulheres em situação de violência, regras jurídicas como a Lei Maria da Penha, lei de feminicídio, dentre outras, e a mudança do senso comum sobre a questão.

Embora as novas regras do jogo tenham aumentado o custo da violência, esta continua a ocorrer. De maneira geral, a violência de gênero se dá pelo contexto desigual das relações de poder. Construções de ordem moral, jurídica e religiosa atribuem significados privilegiados ao “ser homem” em detrimento do “ser mulher”.  Como consequência, numa sociedade marcada pelo machismo e pelo patriarcado, toda mulher estaria sujeita a sofrer violência pelo simples fato de ser mulher.

Embora o aparato de proteção tenha sido pensando para proteger a todas, na prática, a política não tem produzido efeitos equivalentes quando as diferenças intragrupos são consideradas. A análise dos números de feminicídios, assassinato de mulheres em contexto de violência doméstica e familiar ou em decorrência de misoginia (menosprezo ou discriminação à condição de mulher), demonstra esse ponto.

Em 2019, 1.326 mulheres foram mortas, segundo o Atlas da Violência 2020. As mulheres negras representam 67% desse total. A desigualdade reflete-se ainda no aumento dos casos. Entre 2008 e 2018, a taxa de homicídio de mulheres não negras caiu 11,7%. No entanto, entre as mulheres negras houve aumento de 12,4%. Vale dizer que 1/3 dos estados brasileiros não informa o perfil racial de suas vítimas de feminicídio e esses números se referem aos dados completos. O Dossiê sobre Assassinatos e Violência da ANTRA (Associação Nacional de Transexuais e Travestis) em 2020 corrobora essa análise.  75 mulheres trans e travestis foram assassinadas em 2020. Não há registro de homicídio de homens trans e o Estado não publica dados oficiais.

Como uma política pública universal apresenta efeitos positivos para um grupo e negativos para outro? O que poderia ser feito para a correção dessas desigualdades? Uma análise interseccional poderia ser uma solução para entender esses resultados desiguais. Interseccionalidade é uma categoria teórico-analítica que focaliza múltiplos sistemas de opressão para propor um entendimento sobre determinado fenômeno. No caso do feminicídio, além de considerar o gênero, nos perguntaríamos: qual é a cor dessa mulher? Ela é uma mulher cis ou trans? Teve orientação jurídica? Possui acesso a trabalho e renda? Na região onde mora, havia uma delegacia da mulher? Foi bem assistida juridicamente? Tinha filhos menores? Dependia economicamente do agressor? Tinha para onde ir? De que região era?

As respostas a essas perguntas dariam aos atores envolvidos na implementação da política um melhor acesso à complexidade do fenômeno da violência de gênero e da real condição de vulnerabilidade. Isso permitiria compreender o fenômeno não pela variável única de gênero, mas por muitos eixos como classe, raça, orientação sexual e de gênero, entre outros.

A interseccionalidade tornou-se uma “buzz word”, remédio para todos os males. No entanto, quando apenas falada e não implementada tem efeito placebo: acalma alguns membros interessados, mas não possui efeito ativo no corpo social. A universalidade padece do mesmo mal. Em um país marcado por desigualdades estruturais complexas, proclamar algo universal para garantir o acesso à política, sem implementar medidas que sobreponham as desigualdades de raça, classe e gênero, é apenas uma boa intenção. O trabalho começa, portanto, por reconhecer a complexidade dos fenômenos sociais e entender como os eixos de subordinação afetam a forma como as pessoas vivem um mesmo problema. A partir daí é possível estender horizontes interpretativos e protetivos, reconhecendo a desigualdade interseccional, e caminhar para um resultado, de fato, universal.

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