Os deuses, as reformas e o economista Paulo Guedes
É evidente que governo algum sai de um terremoto, com o aumento brutal dos gastos públicos, sem proposição de agendas que vão ferir interesses corporativos
Janaína Ribeiro
Publicado em 19 de julho de 2020 às 09h27.
O economista e escritor Peter L. Bernstein escreveu, no fim dos anos 1990, um dos mais emblemáticos livros sobre a história do risco: “Desafio dos Deuses”. Nele, o autor destrói catedrais como quem soca uma parede. Ensina que é falso como uma nota de dois dólares a ideia de que “vender ações na alta e comprar na baixa” é um grande remédio para os investidores. Cita que na Grande Depressão quem comprou após o crash na Bolsa de Nova York, em 1929, viu a sua carteira de ações encolher mais de 70% até 1932. A tímida recuperação só começa a partir de 1933 e tem o seu ápice em 1955. “Nos extremos, o mercado não é uma marcha aleatória. Nos extremos, o mercado tende mais a destruir fortunas do que a cria-las. O mercado de ações é um lugar arriscado”. Bernstein mergulha na teoria do caos e recorda da caricatura contida nela. “O exemplo mais popular desse conceito é o bater de asas de uma borboleta no Havaí como causa derradeira de um furacão no Caribe”. Nesta pegada do caos, virou uma espécie de obsessão de economistas associar a dívida bruta, projetada neste ano a 100% do PIB e o déficit primário que varia de 10% a 16%, com a chegada da besta-fera ou das profecias de Nostradamus, aquelas que jamais se comprovaram. Qualquer leigo sabe que, uma queda próxima a 6% do PIB neste ano, advinda de uma brutal recessão iniciada no fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff, com ligeira recuperação ano passado, provocará a explosão da taxa de desemprego e o recuo gigantesco da renda per capita. Note, cara leitora e caro leitor, que a atividade econômica dá sinais de melhoria.
Apenas um desonesto intelectual – aquele que usa o conhecimento para apresentar uma solução contrária à lógica da teoria – , como ensinou o brilhante Dionísio Dias Carneiro (1945-2010), acreditaria que o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o Estado ficariam inertes diante de uma onda de dez metros em um mar revolto, algo assustador até mesmo para experientes surfistas. Cerca de R$ 150 bilhões foram despejados para 60 milhões de brasileiros por meio do chamado corona voucher . “Vale lembrar que um ano de Bolsa Família está na casa dos R$ 35 bilhões. As 13 prestações do Bolsa Família são menores que um mês do auxílio emergencial”, explicou o insuspeito Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados. Não à toa os programas sociais serão reunidos no “Renda Brasil”, em agosto.
Os índices de confiança do empresariado, medidos pela FGV e pela CNC, apontaram para uma melhoria significativa em junho. O emprego formal, apesar da base de comparação baixa, melhorou em maio. Os juros básicos, medidos pela Selic, a taxa fixada pelo Banco Central, vieram para ficar muito baixos. Há espaço para maior ingresso do capital externo _ a bolsa no patamar dos 100 mil pontos é um bom termômetro_ tanto os diretos (IDE) quanto em títulos (IEC), o que permitirá a venda de dólares sem qualquer manobra contábil para reduzir a colossal dívida pública bruta.
É evidente que governo algum sai de um terremoto, com o aumento brutal dos gastos públicos, sem a proposição de agendas que vão ferir de morte interesses corporativos e os mais ricos. A reforma administrativa _ tão cara ao país _ e uma verdadeira reforma tributária mexerão com os grupos de interesses plantados em Brasília. No primeiro caso, os funcionários públicos que ganham mais de R$ 15 mil, que sequer passam pelo teste da produtividade. Na segunda ponta, é imprescindível o aumento da carga tributária para cobrir o rombo fiscal, que foi fundamental para socorrer os mais pobres. Não é algo desejável, mas inevitável diante da emergência, repetem bons economistas. E aí o saco de maldades de Paulo Guedes não é tão diferente daquele que o então ministro Joaquim Levy tentou abrir , em 2015 _ aumento expressivo da tributação sobre os bancos, manter o corte sobre o chamado Sistema S e o fim da farra da desoneração, uma invenção da era petista e a criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) federal, resultado da reformulação do PIS-Cofins e alterações no Imposto de Renda, que oferece generosas isenções para a classe média e os ricos. O IVA vai atingir o setor de serviços, que responde por 63% do PIB, segundo o Banco Central.
À época em que era ministro da Fazenda, Levy atacou a desoneração da folha de pagamento ao produzir um paper que comprovava como uma grande empresa de call center utilizou o benefício para demitir pessoal, aumentar os salários de executivos e trocar uma sede modesta no Rio de Janeiro para algo suntuoso em São Paulo. O enredo tem nome e endereço: é como a Contax reproduziu o filme indiano Outsourced (“Despachado para a Índia”). A empresa representava 35% do mercado e agiu sob a batuta da malfadada nova matriz econômica, que empurrou o país para a recessão. Teve o apoio de entidades do Sistema S e de muitos empresários oportunistas, que depois se bandearam para o governo Temer.
Desde os anos 1970, esta é a primeira crise que poupou o sistema bancário. Houve terremoto em meados de 1976, 1985, 1987, 1995, 1996 e 2008/2009. Desta vez, os grandes bancos alardeiam que foram a solução e não o problema. Estão certos. Numa live com o Itaú, Guedes, sempre muito falante, naquele estilo tonitruante, disse que eram seis bancos no país e 200 milhões de trouxas. O fato é que um ex-dirigente do BC, gestor de duas grandes crises bancárias, estranha que apenas as empresas paguem a conta da recessão brutal _ o dobro da de 1983, em meio à crise da dívida externa na América Latina, deflagrada pelo calote do México, no chamado setembro negro de 1982. “Não faz sentido os bancos saírem ilesos. Não é um padrão das crises no Brasil “.
O economista Paulo Guede sme disse, certa vez, que participou de todos os debates nos anos 1980 e 1990 e se recorda de algo inusitado: “Os mesmos que diziam que déficit público era uma invenção da Universidade de Chicago passaram a defendê-lo, anos mais tarde, com grande ênfase – e houve quem dissesse que a política monetária era uma anteninha e anos depois usou, sem qualquer cerimônia, doses cavalares do depósito compulsório”. Guedes não citou nomes. Nem precisava: o alvo eram os autores do Plano Cruzado (1986) e do Plano Real (1994).
No petit comité, Guedes, acusado pela esquerda de darwinista social e de um gestor insensível aos pobres, sabe que é preciso adotar medidas amargas em 2021 para proteger o Estado e, ao mesmo tempo, acenar com bandeiras que possam ter trânsito em setores mais à esquerda. E espera-se que o programa de privatização ganhe um ritmo acelerado.
Os empresários, rentistas e grandes profissionais liberais, devem desde já seguir o conselho do engenheiro Eliezer Batista (1924-2018), que criou a atual Vale S/A: usar cueca de titânio e suportar com valentia a mão pesada do Estado ou a sua própria tirania.
O economista e escritor Peter L. Bernstein escreveu, no fim dos anos 1990, um dos mais emblemáticos livros sobre a história do risco: “Desafio dos Deuses”. Nele, o autor destrói catedrais como quem soca uma parede. Ensina que é falso como uma nota de dois dólares a ideia de que “vender ações na alta e comprar na baixa” é um grande remédio para os investidores. Cita que na Grande Depressão quem comprou após o crash na Bolsa de Nova York, em 1929, viu a sua carteira de ações encolher mais de 70% até 1932. A tímida recuperação só começa a partir de 1933 e tem o seu ápice em 1955. “Nos extremos, o mercado não é uma marcha aleatória. Nos extremos, o mercado tende mais a destruir fortunas do que a cria-las. O mercado de ações é um lugar arriscado”. Bernstein mergulha na teoria do caos e recorda da caricatura contida nela. “O exemplo mais popular desse conceito é o bater de asas de uma borboleta no Havaí como causa derradeira de um furacão no Caribe”. Nesta pegada do caos, virou uma espécie de obsessão de economistas associar a dívida bruta, projetada neste ano a 100% do PIB e o déficit primário que varia de 10% a 16%, com a chegada da besta-fera ou das profecias de Nostradamus, aquelas que jamais se comprovaram. Qualquer leigo sabe que, uma queda próxima a 6% do PIB neste ano, advinda de uma brutal recessão iniciada no fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff, com ligeira recuperação ano passado, provocará a explosão da taxa de desemprego e o recuo gigantesco da renda per capita. Note, cara leitora e caro leitor, que a atividade econômica dá sinais de melhoria.
Apenas um desonesto intelectual – aquele que usa o conhecimento para apresentar uma solução contrária à lógica da teoria – , como ensinou o brilhante Dionísio Dias Carneiro (1945-2010), acreditaria que o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o Estado ficariam inertes diante de uma onda de dez metros em um mar revolto, algo assustador até mesmo para experientes surfistas. Cerca de R$ 150 bilhões foram despejados para 60 milhões de brasileiros por meio do chamado corona voucher . “Vale lembrar que um ano de Bolsa Família está na casa dos R$ 35 bilhões. As 13 prestações do Bolsa Família são menores que um mês do auxílio emergencial”, explicou o insuspeito Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados. Não à toa os programas sociais serão reunidos no “Renda Brasil”, em agosto.
Os índices de confiança do empresariado, medidos pela FGV e pela CNC, apontaram para uma melhoria significativa em junho. O emprego formal, apesar da base de comparação baixa, melhorou em maio. Os juros básicos, medidos pela Selic, a taxa fixada pelo Banco Central, vieram para ficar muito baixos. Há espaço para maior ingresso do capital externo _ a bolsa no patamar dos 100 mil pontos é um bom termômetro_ tanto os diretos (IDE) quanto em títulos (IEC), o que permitirá a venda de dólares sem qualquer manobra contábil para reduzir a colossal dívida pública bruta.
É evidente que governo algum sai de um terremoto, com o aumento brutal dos gastos públicos, sem a proposição de agendas que vão ferir de morte interesses corporativos e os mais ricos. A reforma administrativa _ tão cara ao país _ e uma verdadeira reforma tributária mexerão com os grupos de interesses plantados em Brasília. No primeiro caso, os funcionários públicos que ganham mais de R$ 15 mil, que sequer passam pelo teste da produtividade. Na segunda ponta, é imprescindível o aumento da carga tributária para cobrir o rombo fiscal, que foi fundamental para socorrer os mais pobres. Não é algo desejável, mas inevitável diante da emergência, repetem bons economistas. E aí o saco de maldades de Paulo Guedes não é tão diferente daquele que o então ministro Joaquim Levy tentou abrir , em 2015 _ aumento expressivo da tributação sobre os bancos, manter o corte sobre o chamado Sistema S e o fim da farra da desoneração, uma invenção da era petista e a criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) federal, resultado da reformulação do PIS-Cofins e alterações no Imposto de Renda, que oferece generosas isenções para a classe média e os ricos. O IVA vai atingir o setor de serviços, que responde por 63% do PIB, segundo o Banco Central.
À época em que era ministro da Fazenda, Levy atacou a desoneração da folha de pagamento ao produzir um paper que comprovava como uma grande empresa de call center utilizou o benefício para demitir pessoal, aumentar os salários de executivos e trocar uma sede modesta no Rio de Janeiro para algo suntuoso em São Paulo. O enredo tem nome e endereço: é como a Contax reproduziu o filme indiano Outsourced (“Despachado para a Índia”). A empresa representava 35% do mercado e agiu sob a batuta da malfadada nova matriz econômica, que empurrou o país para a recessão. Teve o apoio de entidades do Sistema S e de muitos empresários oportunistas, que depois se bandearam para o governo Temer.
Desde os anos 1970, esta é a primeira crise que poupou o sistema bancário. Houve terremoto em meados de 1976, 1985, 1987, 1995, 1996 e 2008/2009. Desta vez, os grandes bancos alardeiam que foram a solução e não o problema. Estão certos. Numa live com o Itaú, Guedes, sempre muito falante, naquele estilo tonitruante, disse que eram seis bancos no país e 200 milhões de trouxas. O fato é que um ex-dirigente do BC, gestor de duas grandes crises bancárias, estranha que apenas as empresas paguem a conta da recessão brutal _ o dobro da de 1983, em meio à crise da dívida externa na América Latina, deflagrada pelo calote do México, no chamado setembro negro de 1982. “Não faz sentido os bancos saírem ilesos. Não é um padrão das crises no Brasil “.
O economista Paulo Guede sme disse, certa vez, que participou de todos os debates nos anos 1980 e 1990 e se recorda de algo inusitado: “Os mesmos que diziam que déficit público era uma invenção da Universidade de Chicago passaram a defendê-lo, anos mais tarde, com grande ênfase – e houve quem dissesse que a política monetária era uma anteninha e anos depois usou, sem qualquer cerimônia, doses cavalares do depósito compulsório”. Guedes não citou nomes. Nem precisava: o alvo eram os autores do Plano Cruzado (1986) e do Plano Real (1994).
No petit comité, Guedes, acusado pela esquerda de darwinista social e de um gestor insensível aos pobres, sabe que é preciso adotar medidas amargas em 2021 para proteger o Estado e, ao mesmo tempo, acenar com bandeiras que possam ter trânsito em setores mais à esquerda. E espera-se que o programa de privatização ganhe um ritmo acelerado.
Os empresários, rentistas e grandes profissionais liberais, devem desde já seguir o conselho do engenheiro Eliezer Batista (1924-2018), que criou a atual Vale S/A: usar cueca de titânio e suportar com valentia a mão pesada do Estado ou a sua própria tirania.