A rota do Open Finance para o Open Data
Entenda como alguns países já estão planejando a abertura de dados para além do mercado financeiro
Lucas Josa
Publicado em 19 de setembro de 2021 às 13h25.
Em uma realidade cada vez mais desmaterializada, novos dados são gerados a todo instante, convertendo-se em combustível para múltiplas soluções fundamentais que fazem parte do nosso cotidiano. Contas de e-mail, redes sociais, e-commerce e tantos outros serviços que nasceram no ambiente digital, puderam se desenvolver e foram impulsionados ao longo dos anos em função da forma como a análise e o processamento dos dados foi sendo aperfeiçoada. As grandes empresas de tecnologia, por exemplo, construíram verdadeiros impérios em cima deste ativo, ao mesmo tempo em que entregavam facilidades, personalização e serviços com alto grau de eficiência.
Ao mesmo tempo em que experienciamos os avanços proporcionados pelo refino deste “novo petróleo”, vimos surgir uma série de questionamentos relacionados à maneira como os dados pessoais são coletados, utilizados e armazenados pelas empresas. Em função disso, reguladores ao redor do mundo buscaram endereçar este tema ao desenvolverem regras para dar aos cidadãos mais controle sobre esse precioso ativo, criando também normativas e sanções que impactam diretamente a forma como as empresas devem proceder em relação a este tópico. A União Europeia foi uma das primeiras jurisdições a agir neste sentido, criando a GDPR (General Data Protection Regulation) em 2018. No Brasil, temos o exemplo da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), regulação bastante inspirada na versão europeia, entrando em vigor em 2020.
O compartilhamento de dados no segmento financeiro
Os movimentos regulatórios citados anteriormente se tornaram um ponto de partida fundamental no desenvolvimento de iniciativas voltadas para o compartilhamento de dados de forma consentida pelos usuários. O primeiro segmento no qual essa possibilidade se tornou realidade (de forma regulada) foi no bancário, com a implementação do Open Banking em 2018 na União Europeia e no Reino Unido. Esta última jurisdição de fato adotou esse nome e criou também uma série de padronizações técnicas, infraestrutura tecnológica específica, órgão responsável pela implementação desse “sistema” e camadas regulatórias adicionais, entregando uma experiência padronizada e segura de compartilhamento de dados.
Atualmente, está sendo discutida a ampliação do escopo inicial do Open Banking britânico, passando a incluir as mais diversas instituições do ecossistema financeiro (como seguradoras, gestoras de recursos, dentre outras) em um projeto que foi batizado de Open Finance. Contudo, ainda existem dúvidas em relação a como será custeada essa nova estrutura, como as novas instituições serão incluídas, se a infraestrutura desenvolvida até então será compartilhada e como se dará sua governança. Uma consulta pública sobre esse processo de transição e seus pontos sensíveis já foi realizada na terra da rainha. Agora, os reguladores esperam utilizar as respostas fornecidas pela sociedade para esboçar um plano de ação mais claro.
Vale lembrar que o modelo brasileiro é inspirado no modelo do Reino Unido e, por ter sido desenhado 2 anos após este último, já nasceu contemplando o escopo expandido do Open Finance.
Open Data, o próximo passo
Mesmo com o Open Finance ainda em processo de discussão e desenvolvimento iniciais, já começamos a ouvir propostas de reguladores e entidades governamentais no sentido de expandir ainda mais o conceito do compartilhamento de dados para outros segmentos da economia. Esse movimento tem sido chamado de Open Data (por vezes chamado também de Open Everything).
No Reino Unido, o governo divulgou um documento em 2020 chamado “Next steps for Smart Data”, material que busca abrir o debate a respeito do desenvolvimento de uma estrutura política clara para identificar onde um melhor acesso e disponibilidade de dados pode apoiar a inovação e o crescimento do país. Segundo o documento, o maior inibidor dessas inovações não é a tecnologia, mas a falta de uma estrutura para acessar, usar e compartilhar dados com segurança.
Deste modo, a ampla iniciativa de dados britânica (que foi batizada de Smart Data) deve avançar com o desenvolvimento do Open Finance e adicionar (a princípio) o setor de telecomunicações e energia. Outros segmentos como educação, varejo, transporte e saúde podem ser contemplados futuramente.
A Austrália é outro país que desenhou os próximos passos de sua estratégia de compartilhamento de dados pensando em outros mercados além do financeiro. Por lá, a iniciativa se chama Consumer Data Rights e, desde o início, prevê que os segmentos de energia e telecomunicações sejam os próximos a serem trabalhados.
Fechando a lista de jurisdições nas quais encontramos planos para o Open Data temos a União Europeia. Lá foi publicado em 2020 um relatório chamado “A European Strategy for Data”, documento que inicialmente sugere recomendações sobre esse tema, em vez de prescrever regulamentos. O objetivo neste caso é criar um ambiente adequado até 2030, no qual os dados abertos possam prosperar graças a melhores padrões, infraestrutura e disponibilidade de dados. As ambições neste caso são grandes e envolvem os seguintes setores: Finanças (movendo para o Open Finance); Indústria (Manufatura); Mobilidade; Energia; Meio Ambiente; Energia; Agricultura; Administração pública; Habilidades e qualificação; Ciências (pesquisas científicas); e saúde.
Como exemplos de utilização no segmento de mobilidade e transportes, por exemplo, seria possível vincular dados sobre trens, companhias aéreas e veículos para habilitar aplicativos que podem reivindicar automaticamente uma indenização após atrasos em viagens ou permitir que os consumidores rastreiem sua pegada de carbono em cada trecho.
Uma vez implementado, o Open Data abre incontáveis possibilidades de criação de novos modelos de negócios e soluções para o consumidor de bens e serviços em diferente segmentos da economia. Pensando de forma abrangente, o compartilhamento poderia acontecer de múltiplas maneiras, sendo efetuado por parte dos cidadãos, das empresas e de órgãos públicos.
Desafios e pontos de atenção
A tarefa de se criar um ambiente amplo e multissetorial de dados abertos é algo bastante complexo e desafiador. Para que possamos usufruir dessa realidade e das possíveis combinações que poderão surgir ao compartilharmos dados de diferentes esferas da nossa vida, é importante que a infraestrutura desenvolvida para cada segmento possua interoperabilidade entre si. Políticas de identidade digital também precisam ser implementadas para tornar mais factível esse sistema do ponto de vista técnico. Além disso, para dar conta desse processo de evolução, as leis gerais de proteção de dados deverão ser atualizadas de tempos em tempos para capturar novos casos e cenários, a fim de apoiar um ambiente de dados totalmente aberto.
O trajeto também não deve ser livre de obstáculos. Em alguns segmentos, a opinião pública deve desempenhar um papel muito importante no andamento das discussões. Durante a consulta pública que foi realizada no Reino Unido a respeito de segmentos que deveriam ser incluídos no escopo do Smart Data, foram recebidas manifestações de algumas pessoas a favor da adição de dados relativos à saúde. Por outro lado, uma outra parte do grupo de cidadãos ouvidos se mostraram absolutamente contra essa inclusão, por considerar que são dados muito sensíveis e que podem gerar efeitos bastante negativos (desde ordem discriminatória na sociedade até outros tipos de utilizações controversas). De modo geral, inclusive, vale dizer que a ética no uso dos dados e a proteção de indivíduos vulneráveis neste novo ambiente são pautas recorrentes no contexto dos dados abertos.
Futuro
Apesar dos desafios, é possível imaginar para os próximos anos uma realidade transformada, no qual teremos em muitas partes do mundo regras claras que protegem os cidadãos (ao mesmo tempo em que cobram as empresas que fazem uso de seus dados), combinadas com mecanismos tecnológicos e de infraestrutura que permitirão que o compartilhamento aconteça de forma fluida, segura, eficiente, padronizada e multissetorial. Um importante passo após anos de construção do nosso ambiente digital, mostrando que o futuro será, inevitavelmente, “Open”.
Em uma realidade cada vez mais desmaterializada, novos dados são gerados a todo instante, convertendo-se em combustível para múltiplas soluções fundamentais que fazem parte do nosso cotidiano. Contas de e-mail, redes sociais, e-commerce e tantos outros serviços que nasceram no ambiente digital, puderam se desenvolver e foram impulsionados ao longo dos anos em função da forma como a análise e o processamento dos dados foi sendo aperfeiçoada. As grandes empresas de tecnologia, por exemplo, construíram verdadeiros impérios em cima deste ativo, ao mesmo tempo em que entregavam facilidades, personalização e serviços com alto grau de eficiência.
Ao mesmo tempo em que experienciamos os avanços proporcionados pelo refino deste “novo petróleo”, vimos surgir uma série de questionamentos relacionados à maneira como os dados pessoais são coletados, utilizados e armazenados pelas empresas. Em função disso, reguladores ao redor do mundo buscaram endereçar este tema ao desenvolverem regras para dar aos cidadãos mais controle sobre esse precioso ativo, criando também normativas e sanções que impactam diretamente a forma como as empresas devem proceder em relação a este tópico. A União Europeia foi uma das primeiras jurisdições a agir neste sentido, criando a GDPR (General Data Protection Regulation) em 2018. No Brasil, temos o exemplo da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), regulação bastante inspirada na versão europeia, entrando em vigor em 2020.
O compartilhamento de dados no segmento financeiro
Os movimentos regulatórios citados anteriormente se tornaram um ponto de partida fundamental no desenvolvimento de iniciativas voltadas para o compartilhamento de dados de forma consentida pelos usuários. O primeiro segmento no qual essa possibilidade se tornou realidade (de forma regulada) foi no bancário, com a implementação do Open Banking em 2018 na União Europeia e no Reino Unido. Esta última jurisdição de fato adotou esse nome e criou também uma série de padronizações técnicas, infraestrutura tecnológica específica, órgão responsável pela implementação desse “sistema” e camadas regulatórias adicionais, entregando uma experiência padronizada e segura de compartilhamento de dados.
Atualmente, está sendo discutida a ampliação do escopo inicial do Open Banking britânico, passando a incluir as mais diversas instituições do ecossistema financeiro (como seguradoras, gestoras de recursos, dentre outras) em um projeto que foi batizado de Open Finance. Contudo, ainda existem dúvidas em relação a como será custeada essa nova estrutura, como as novas instituições serão incluídas, se a infraestrutura desenvolvida até então será compartilhada e como se dará sua governança. Uma consulta pública sobre esse processo de transição e seus pontos sensíveis já foi realizada na terra da rainha. Agora, os reguladores esperam utilizar as respostas fornecidas pela sociedade para esboçar um plano de ação mais claro.
Vale lembrar que o modelo brasileiro é inspirado no modelo do Reino Unido e, por ter sido desenhado 2 anos após este último, já nasceu contemplando o escopo expandido do Open Finance.
Open Data, o próximo passo
Mesmo com o Open Finance ainda em processo de discussão e desenvolvimento iniciais, já começamos a ouvir propostas de reguladores e entidades governamentais no sentido de expandir ainda mais o conceito do compartilhamento de dados para outros segmentos da economia. Esse movimento tem sido chamado de Open Data (por vezes chamado também de Open Everything).
No Reino Unido, o governo divulgou um documento em 2020 chamado “Next steps for Smart Data”, material que busca abrir o debate a respeito do desenvolvimento de uma estrutura política clara para identificar onde um melhor acesso e disponibilidade de dados pode apoiar a inovação e o crescimento do país. Segundo o documento, o maior inibidor dessas inovações não é a tecnologia, mas a falta de uma estrutura para acessar, usar e compartilhar dados com segurança.
Deste modo, a ampla iniciativa de dados britânica (que foi batizada de Smart Data) deve avançar com o desenvolvimento do Open Finance e adicionar (a princípio) o setor de telecomunicações e energia. Outros segmentos como educação, varejo, transporte e saúde podem ser contemplados futuramente.
A Austrália é outro país que desenhou os próximos passos de sua estratégia de compartilhamento de dados pensando em outros mercados além do financeiro. Por lá, a iniciativa se chama Consumer Data Rights e, desde o início, prevê que os segmentos de energia e telecomunicações sejam os próximos a serem trabalhados.
Fechando a lista de jurisdições nas quais encontramos planos para o Open Data temos a União Europeia. Lá foi publicado em 2020 um relatório chamado “A European Strategy for Data”, documento que inicialmente sugere recomendações sobre esse tema, em vez de prescrever regulamentos. O objetivo neste caso é criar um ambiente adequado até 2030, no qual os dados abertos possam prosperar graças a melhores padrões, infraestrutura e disponibilidade de dados. As ambições neste caso são grandes e envolvem os seguintes setores: Finanças (movendo para o Open Finance); Indústria (Manufatura); Mobilidade; Energia; Meio Ambiente; Energia; Agricultura; Administração pública; Habilidades e qualificação; Ciências (pesquisas científicas); e saúde.
Como exemplos de utilização no segmento de mobilidade e transportes, por exemplo, seria possível vincular dados sobre trens, companhias aéreas e veículos para habilitar aplicativos que podem reivindicar automaticamente uma indenização após atrasos em viagens ou permitir que os consumidores rastreiem sua pegada de carbono em cada trecho.
Uma vez implementado, o Open Data abre incontáveis possibilidades de criação de novos modelos de negócios e soluções para o consumidor de bens e serviços em diferente segmentos da economia. Pensando de forma abrangente, o compartilhamento poderia acontecer de múltiplas maneiras, sendo efetuado por parte dos cidadãos, das empresas e de órgãos públicos.
Desafios e pontos de atenção
A tarefa de se criar um ambiente amplo e multissetorial de dados abertos é algo bastante complexo e desafiador. Para que possamos usufruir dessa realidade e das possíveis combinações que poderão surgir ao compartilharmos dados de diferentes esferas da nossa vida, é importante que a infraestrutura desenvolvida para cada segmento possua interoperabilidade entre si. Políticas de identidade digital também precisam ser implementadas para tornar mais factível esse sistema do ponto de vista técnico. Além disso, para dar conta desse processo de evolução, as leis gerais de proteção de dados deverão ser atualizadas de tempos em tempos para capturar novos casos e cenários, a fim de apoiar um ambiente de dados totalmente aberto.
O trajeto também não deve ser livre de obstáculos. Em alguns segmentos, a opinião pública deve desempenhar um papel muito importante no andamento das discussões. Durante a consulta pública que foi realizada no Reino Unido a respeito de segmentos que deveriam ser incluídos no escopo do Smart Data, foram recebidas manifestações de algumas pessoas a favor da adição de dados relativos à saúde. Por outro lado, uma outra parte do grupo de cidadãos ouvidos se mostraram absolutamente contra essa inclusão, por considerar que são dados muito sensíveis e que podem gerar efeitos bastante negativos (desde ordem discriminatória na sociedade até outros tipos de utilizações controversas). De modo geral, inclusive, vale dizer que a ética no uso dos dados e a proteção de indivíduos vulneráveis neste novo ambiente são pautas recorrentes no contexto dos dados abertos.
Futuro
Apesar dos desafios, é possível imaginar para os próximos anos uma realidade transformada, no qual teremos em muitas partes do mundo regras claras que protegem os cidadãos (ao mesmo tempo em que cobram as empresas que fazem uso de seus dados), combinadas com mecanismos tecnológicos e de infraestrutura que permitirão que o compartilhamento aconteça de forma fluida, segura, eficiente, padronizada e multissetorial. Um importante passo após anos de construção do nosso ambiente digital, mostrando que o futuro será, inevitavelmente, “Open”.