Todos contaminados por covid-19? O risco da imunidade de rebanho
A estratégia funcionaria, em tese, para fazer o novo coronavírus parar de circular, mas ao custo de vidas e do colapso do sistema de saúde brasileiro
Lucas Agrela
Publicado em 18 de maio de 2020 às 05h55.
Última atualização em 18 de maio de 2020 às 12h38.
No começo da pandemia do novo coronavírus no Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson acreditava que o fenômeno da "imunidade de rebanho" poderia ajudar a combater a doença a longo prazo. Ele logo mudou de ideia e, atualmente, o país é o terceiro no maior número de infectados, com 238.001 doentes.
A Suécia , que adotou um modelo mais flexível como prevenção à covid-19, tem tido resultados negativos: o número de mortes por milhão de pessoas é maior do que o do Brasil. Por lá, são 11 milhões de habitantes, mais de 3 mil mortes e 29.207 infectados, segundo o monitoramento em tempo real da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos.
A teoria da imunidade consiste no efeito de proteção que surge nas pessoas quando grande parte se vacinou contra uma doença — assim, mesmo quem não tomou a vacina fica protegido. Muitos acreditam que o indivíduo, ao contrair a SARS-CoV-2, se torna imune a ela. Assim, quanto mais gente for infectada, maior a chance de todos se tornarem imunes. É daí que vem o termo "imunidade de rebanho". Com ela, todos estariam protegidos. No caso da covid-19, fica difícil imaginar que a situação possa ser resolvida dessa forma, já que ainda não existe uma vacina.
Nenhum estudo comprovou ainda se a imunidade após o contágio do novo coronavírus realmente acontece. Mesmo se acontecer, em outras variações do vírus (como a OC43 e a HKU1), as pessoas ficam imunes por um período determinado de tempo. A imunidade só dura até que surja uma nova cepa do vírus, uma vez que a mutação é inerente a ele. É o que nos faz pegar gripe mais de uma vez, por exemplo.
Fora isso, a estratégia da imunidade teria um custo social alto: a perda de vidas, não só de pessoas em grupos de risco, mas também de jovens e pessoas aparentemente saudáveis.
Em países como o nosso, o tamanho da população, de mais de 200 milhões, poderia causar um grande número de mortes, dada a atual taxa de letalidade de 6,7% do novo coronavírus no Brasil. Em um estudo no começo da quarentena, o Imperial College de Londres, um dos institutos de pesquisa mais respeitados do mundo, estimou que as medidas de distanciamento social poderiam poupar mais de 1 milhão de vidas no Brasil.
Além da atuação insuficiente de profissionais de saúde qualificados, das deficiências na infraestrutura de hospitais e das falhas no acesso aos serviços de saúde num país, outro fator que causa o aumento da taxa de mortalidade do vírus é a subnotificação de casos assintomáticos ou com sintomas leves, como ressaltou o biólogo, pesquisador e divulgador científico Atila Iamarino, em entrevista concedida à Exame em abril.
Para médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a estratégia da imunidade de rebanho não funciona no Brasil porque o sistema de saúde não teria capacidade para lidar com o grande número de internações que seriam necessárias para que o vírus parasse de circular.
“Se toda a população de uma cidade, país, ou do mundo, tiver coronavírus, o vírus deixa de circular. Mas não é preciso que todos seja infectados. Há uma regra que indica que, se o contágio chega a 70% das pessoas, o vírus não consegue achar os outros 30% e deixa de circular, desaparece. Mas ele pode voltar um tempo depois, quando aumentar a população que não foi infectada, por nascimento ou imigração. Isso é o que se chama de imunidade de manada. No caso da covid-19, 40% de quem tem a doença nem percebe que teve, 15% precisam de internação em hospital e 5% vão para a UTI. Se precisarmos internar 20% da população, seriam mais de 29 milhões de internações. Isso causaria colapso no sistema de saúde brasileiro”, afirma Vecina Neto, em entrevista à Exame.
“Se 0,36% das pessoas morrerem, vão morrer mais de 529 mil pessoas no Brasil. A imunidade de manada é muito cara. No resto do mundo, o mesmo aconteceria”, diz.
Por conta do custo de vidas da estratégia, pesquisadores e médicos reforçam a importância da quarentena e das medidas de distanciamento social para evitar a propagação do vírus e causar um achatamento da curva do número de contágios para que o sistema de saúde global não enfrente um colapso, no qual os hospitais teriam que atender o máximo de pessoas possível e deixar as demais em uma fila de espera, onde certamente haveria muitas mortes.
Portanto, a esperança para o fim da pandemia se concentra no desenvolvimento de uma vacina eficaz contra o coronavírus. Na revista Exame, informamos que existem cerca 100 vacinas e 200 medicamentos em fase de testes no mundo. Ainda assim, a taxa de aprovação de novos medicamentos nos últimos anos foi de apenas 16%, o que demonstra a complexidade do desenvolvimento de estratégias eficazes no combate a novas doenças infecciosas.