Espécie humana pode ter triunfado graças às avós, diz pesquisa de Harvard
Segundo os cientistas, ajuda diante da dependência prolongada das crianças promoveu a longevidade humana e reforçou transmissão cultural entre gerações
Agência O Globo
Publicado em 21 de dezembro de 2021 às 19h19.
As crianças escondem um imenso potencial, mas para desenvolvê-lo requerem cuidados intensos e prolongados que muitas vezes excedem a capacidade dos pais. Somos dependentes por anos depois de deixar o útero da mãe, e isso provavelmente impulsionou características típicas da espécie.
Pesquisadores da Universidade Harvard defendem que a importância de ter avós ativos fez com que os humanos mantivessem uma boa condição física muito depois dos anos reprodutivos e que isso também explicaria por que o exercício é tão benéfico na velhice.
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Esse papel das avós, como pilares da educação, pode ser o motivo pelo qual as mulheres, ao contrário do que acontece em quase todas as espécies animais, podem viver décadas após perder a fertilidade. A análise foi publicada na revista PNAS, da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.
A “hipótese da avó” foi desenvolvida a partir da observação de mulheres mais velhas da tribo Hadza no Norte da Tanzânia. A pesquisadora Kristen Hawkes, da Universidade de Utah, viu que essas senhoras eram muito produtivas e coletavam alimentos que mais tarde compartilhavam com suas filhas. Essa generosidade favoreceu que elas lhes dessem mais netos.
A análise das sociedades pré-industriais no Canadá e na Finlândia produziu conclusões semelhantes. No início do século XVII, em Quebec, os registros eclesiásticos permitiam calcular que as mulheres que moravam na mesma paróquia que suas mães tinham em média 1,75 mais filhos do que as irmãs que moravam longe. Na Finlândia, os resultados mostraram uma tendência semelhante, desde que a avó não tivesse mais de 75 anos.
— A seleção natural teria favorecido a longevidade em espécies compostas por indivíduos dependentes — afirma María Martinón Torres, diretora do Centro Nacional de Pesquisas da Evolução Humana (Cenieh) em Burgos, na Espanha.
Os frágeis bebês humanos e seus cérebros enormes teriam mais probabilidade de sobreviver e se desenvolver se tivessem avós. Esse importante papel teria trazido, como recompensa, uma vida muito mais longa e saudável para nossa espécie do que para espécies próximas, como os chimpanzés. Esses animais, férteis até a morte, sofrem uma deterioração física significativa na casa dos 30 anos e geralmente não ultrapassam os 40 anos.
História evolutiva
A paleoantropóloga Marina Lozano lembra que esse papel de avó, estima-se, começou com o Homo erectus, espécie que surgiu há cerca de 1,8 milhão de anos.
— É a primeira espécie do nosso gênero que tem uma estrutura mais parecida com a nossa e um ciclo de vida semelhante, com um crescimento mais longo em que amamentação e infância se separam e temos outra fase como a adolescência — diz Lozano, do Instituto de Paleoecologia Humana e Evolução Social, em Tarragona, na Catalunha.
É provável que a ajuda das avós tenha começado com espécies humanas anteriores à nossa, mas parece que há cerca de 50 mil anos ocorreram transformações culturais que intensificaram o fenômeno.
De acordo com cálculos da pesquisadora Rachel Caspari, da Universidade de Michigan Central, a partir dos fósseis de dentes de 768 indivíduos que viveram nos últimos três milhões de anos, o Homo sapiens do Paleolítico Superior multiplicou o número de indivíduos que sobreviveram até a idade em que poderiam ser avós. Naquela época, para cada dez neandertais que morriam com idades entre 15 e 30 anos, apenas quatro estavam acima dessa idade. Entre os sapiens, porém, 20 conseguiram.
Os sapiens já estavam na Terra há dezenas de milhares de anos. No entanto, algo aconteceu há cerca de 60 mil anos que aumentou suas capacidades.
— Há uma sofisticação cultural palpável, é o momento em que ocorre a hibridização com os neandertais e também quando ocorre a migração para fora da África que coincide com as migrações dentro do continente — afirmaz Antonio Rosas, diretor do Grupo de Paleoantropologia do Museu Nacional de Ciências Naturais de Madri.— Esta data é única. Algo estava acontecendo e é claro que a organização social e cultural estava mudando, mudando também o valor das avós.
A capacidade de adaptação cultural aumentou a expectativa de vida dos sapiens ao aumentar o número de avós nessas populações. As mulheres nascem com vários óvulos, distribuídos durante os anos férteis. Com o aumento da expectativa de vida, pode ter havido um aumento da quantidade de óvulos para manter a fertilidade por mais tempo, mas a presença de avós sem os próprios filhos cuidando dos netos poderia oferecer outras vantagens. Os humanos estão entre as poucas espécies animais que não podem ter filhos até o fim de seus dias. Os outros são cetáceos dentados, como baleias-piloto, belugas, narvais e orcas, que também têm cérebros grandes.
Valor dos mais velhos
Neste período de transformações culturais e biológicas, o aumento da longevidade teria sido um grande impulso para nossa espécie, que após muitos milênios de sobrevivência caminhava para uma expansão global sem precedentes.
— O aumento da longevidade permite uma sobreposição de gerações que possibilita um acúmulo de riquezas excepcionais. Australopitecos não conheciam suas avós. O fato de você poder reunir três gerações em uma casa é uma fonte de conhecimento que outras espécies não possuem. Os humanos não precisam recomeçar a cada geração. Isso muda completamente o valor dos idosos — conclui Martinón Torres.
Aquelas sociedades em que as avós se tornaram cada vez mais importantes foram responsáveis por criações artísticas, aprimoraram as técnicas de caça e puderam sobreviver e prosperar em uma Europa glacial que viu os neandertais desaparecerem. Essa espécie peculiar, tão frágil por tantos anos, alcançou seu sucesso de forma paradoxal, segundo a diretora do Cenieh.
— O sucesso das espécies é reprodutivo, mas a nossa alcançou o sucesso com o aumento do tempo em que não é reprodutiva — afirma.
O apoio familiar das avós é uma das características que definiam a singularidade humana. Como em outras ocasiões, a força da espécie surgiu de alguns de seus membros mais fracos.