Querida, encolhi o salário!
Cortar no orçamento dos outros não dói
Da Redação
Publicado em 9 de outubro de 2008 às 09h31.
-- Margarete, andei pensando...
-- Você quer dizer "pensei andando", né, Nicanor? Você estava caminhando no parque hoje cedo e aí bateu uma idéia, certo?
-- Tanto faz. Mas não foi bem uma idéia, foi mais uma preocupação. Sabe, com essa crise correndo solta...
-- Que crise?
-- E eu estaria aqui discutindo crise jurídica e constitucional com você, Margarete? Crise econômica, é claro.
-- Aconteceu alguma coisa que eu não fiquei sabendo, Nicanor?
-- Depois da Proclamação da República? Um monte de coisa. Mas, para encurtar o assunto, é o seguinte: precisamos nos adequar à situação e conter nossos gastos.
-- Que situação?
-- A da crise! Vamos ter de cortar umas despesinhas aí. Por exemplo, o celular...
-- Os nossos celulares?
-- Não. O seu celular. O meu é indispensável para o trabalho. Você gasta o quê, 120, 150 reais por mês, certo? Cortando isso, vamos poder ligar o aquecedor aos sábados.
-- O aquecedor?
-- Aquecedor gasta muita energia. Não parece, mas gasta. E o nosso nunca foi desligado desde que mudamos para cá.
-- Mas então vamos ter de tomar banho frio? Porque na embalagem do condicionador de cabelo está escrito que é para enxaguar com água a 80 graus...
-- Pois é, o condicionador é outro item da minha lista. Além do xampu.
-- Que lista?
-- A lista dos cortes. Para adequar nosso orçamento. A crise econômica, lembra?
-- Eu nem sabia que a gente tinha orçamento.
-- Agora temos. Aliás, eu até ia pedir para você cuidar da atualização diária dele, já que não vamos mais sair de férias.
-- Não vamos mais pra Aracaju?
-- Está fora de nosso orçamento, Margarete.
-- Mas como a gente vai dizer isso pro Nicanorzinho? Ele vai pensar que ficamos pobres.
-- Até vai, mas não por causa das férias. O fato de ele agora ter de ir para uma escola pública vai...
-- Nós vamos tirar o Niquinha da escola alemã?
-- Vamos ter. Veja bem, o que adianta o Niquinha freqüentar escola alemã? A gente não entende mesmo o que ele fala...
-- Mas escola pública dá pouco dever de casa. E você vai ficar mais irritado do que já é, porque o Niquinha vai passar o dia inteiro na frente do computador.
-- Iria ficar, Margarete. Iria. Mas não vai, porque teremos de vender o computador do Niquinha. Além disso, a escola pública é aqui pertinho, e o Niquinha pode ir a pé, agora que você não vai mais ter carro.
-- Hã?
-- Seu carro, Margarete. Vamos ter de nos desfazer dele. Mas é coisa, assim, temporária.
-- Mas sem o carro eu vou ter de deixar de fazer um monte de coisa...
-- Mas eu garanto que é tudo coisa que está na lista.
-- Peraí, Nicanor. De que tamanho é essa tal lista?
-- Do tamanho da crise. Mas não é nada assim de...
-- Como não é nada? Vou ficar sem telefone, sem carro, sem lavar o cabelo, sem sair de férias, e você diz que não é nada? Daqui a pouco você vai dizer que nem pedir pizza delivery a gente vai poder mais.
-- Era o próximo item da lista, Margarete.
-- Assim não dá, Nicanor. Nós vamos viver do quê? Como? Com quanto?
-- Opa, calma, uma pergunta de cada vez. Com quanto, por exemplo. Não sei. Do quê, também não. E como, nem faço idéia.
-- Você perdeu o emprego, né, Nicanor? E não tem coragem de me dizer. É isso?
-- Tecnicamente, não. Mas tudo é possível. Porque a crise recrudesceu e a empresa já avisou que este ano não vai dar bônus. Além de ter de tomar umas decisões drásticas. Precisamos estar prevenidos. Deixar de jantar fora, comprar presente de aniversário, abastecer a geladeira...
-- Fazer happy hour com os colegas de trabalho...
-- Ah, eu sabia, Margarete. Eu aqui falando sério e você vem com essas picuinhas. Precisamos nos concentrar no que é relevante.
-- No que é relevante para quem?
-- Para nós, para nosso futuro.
-- Quer dizer, tudo o que é "nós" vai ser podado, e tudo que é "voc" continua igual.
-- Para onde você está querendo levar esta discussão, Margarete?
-- Para a minha lista.
-- Que lista?
-- A da crise.
-- Mas você não tem lista nenhuma!
-- Acabei de ter. Também tenho direito à crise.
-- Hã?
-- "H" é a minha fala, Nicanor. A sua é "veja bem".
-- Você está muito agressiva, Margarete.
-- Alguém precisa ser agressivo nesta casa. Me dá o telefone do teu chefe que eu vou falar com ele.
-- Meu chefe não vai te atender, Margarete. Ele não fala nem comigo!
-- Ahá, eu sabia! Aí não tem crise nenhuma. O que tem é falta de diálogo.
-- Até parece que você entende de gestão empresarial, Margarete.
-- Sabe o quê? De repente eu comecei a entender por que as mulheres resolveram sair de casa e entrar no mercado de trabalho.
-- E por que foi, gênia?
-- Porque a mulher lavava, cozinhava, fazia a faxina da casa, cuidava dos filhos, ia às compras, entrava em filas, corria o dia inteiro para cima e para baixo. E, de noite, quando ela estava em pandarecos, o marido chegava em casa carrancudo e dizia o quê? "Nem conversa comigo, porque hoje eu estou arrebentado." E a coitadinha ainda trazia o chinelo para ele. Até que um dia, um marido mais ingênuo finalmente resolveu contar para a cônjuge por que estava arrebentado. E nesse dia o mundo mudou. E sabe qual foi o motivo que ele alegou para estar arrebentado?
-- Qual?
-- Uma reunião, Nicanor! Sentadinho, no ar condicionado, com cafezinho à disposição! Aí a mulher, mesmo a mais burrinha, pensou: "Opa!" E se mandou para o mercado de trabalho.
-- E tudo isso leva a quê, Margarete?
-- Ao que você já está acostumado: a uma avaliação de desempenho. Eu lhe deleguei só uma atribuição, a de provedor do lar, e você ficou muito aquém do seu objetivo. Portanto, você tem duas alternativas, Nicanor: ou melhora seu desempenho familiar no curto prazo, ou está despedido!