Funcionários do Citi, membros do projeto Somar: 42 pessoas com deficiência intelectual trabalham nas agências do banco em São Paulo (Fabiano Accorsi/EXAME)
Da Redação
Publicado em 4 de fevereiro de 2014 às 05h24.
São Paulo - Em setembro de 2013, a empresa de tecnologia SAP anunciou um projeto ousado na cidade alemã de Waldorf. A companhia colocou como meta ter 1% de autistas em seu quadro global de 65 000 empregados até 2020. A fase de recrutamento e capacitação já começou e, no primeiro semestre de 2014, pelo menos oito autistas já devem estar nas áreas de teste de software e programação.
Inovador, o projeto repercutiu no mundo todo.“Essas pessoas precisam de um investimento de longo prazo e contínuo, por isso é difícil ver autistas ocupando vagas. É um funcionário de custo alto”, afirma a psicóloga Leila Bagaiolo, fundadora do Grupo Gradual, focado na intervenção comportamental de pessoas com desenvolvimento atípico.
Tanto pelo alto custo como pela falta de uma cultura de inclusão, no Brasil esse movimento ainda é bastante tímido. Segundo dados do censo do IBGE e da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), existem no país 45,6 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência.
Desses, apenas 306 000 fazem parte da população economicamente ativa. “Infelizmente, em nosso país a maioria contrata para cumprir cota, não por acreditar que o deficiente possa desempenhar bem determinada função”, afirma Renata Casimiro, diretora de RH do i.Social, consultoria especializada em recrutamento e seleção de pessoas com deficiência.
“Já deparamos com situações absurdas, como a do empregador que contratou um funcionário e o deixou num canto fazendo artesanato.” Se existe resistência em contratar profissionais com deficiência física, a pessoa com limitação intelectual exige um esforço ainda maior de inclusão e, portanto, está mais distante do mercado de trabalho.
“A procura por autistas, por exemplo, é menor porque as organizações só enxergam problemas”, diz Marcelo Vitoriano, gerente nacional de inclusão da Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência (Avape). “De fato, a integração oferece dificuldade, mas, se identificados o perfil da pessoa e o tipo de apoio que precisa, ela poderá desempenhar muito bem suas funções.”
Mais do que dificuldade de integração e preconceito, o Brasil enfrenta outros obstáculos para a entrada de deficientes intelectuais no mercado de trabalho: falta informação sobre o assunto e estrutura de apoio a essas pessoas. Muitas vezes, a síndrome ou deficiência é diagnosticada e acompanhada tardiamente e, com isso, as sequelas se tornam maiores.
“No Brasil, falta estrutura na educação e até na saúde para a identificação rápida de doenças e deficiências, o que prejudica o desenvolvimento dessas pessoas”, diz o psiquiatra Sérgio Tamai, da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). “Outros países, como a Alemanha, estão em outro nível, por isso projetos como o da SAP são possíveis.”
Por aqui, também são poucas as instituições sérias que dão suporte a essas pessoas e seus familiares, o que dificulta a disseminação de programas de inclusão bem-sucedidos.
“Estudamos uma data para ampliar nosso projeto de inclusão para o Rio de Janeiro, mas estamos com dificuldade para encontrar parceiros na cidade”, afirma Henrique Szapiro, vice-presidente de recursos humanos e relações corporativas do Citi Brasil.
O Citi é um exemplo de empresa que — apesar de todas as barreiras — tem feito um trabalho extraordinário de inclusão de deficientes intelectuais. Por meio do projeto Somar, desde 2007 o banco empregou 51 pessoas com esse perfil. Hoje, 42 estão em agências espalhadas por São Paulo, trabalhando em áreas administrativas e no primeiro atendimento ao cliente – de acordo, é claro, com cada tipo de deficiência.
Eduardo Ferreira Silva Filho, de 28 anos, portador de uma deficiência intelectual leve, ingressou na primeira turma do projeto com dez outros selecionados. Nesses seis anos de empresa, ele já trabalhou em duas agências e até foi promovido de assistente administrativo I para assistente de suporte de vendas.
“A cada dois meses, fazemos uma análise e os capacitamos para a próxima função”, diz Szapiro. O executivo afirma que a evolução desses profissionais é nítida para todos no banco e de fundamental importância para o andamento da rotina. “Eles, de fato, têm um papel no Citi. Quando um entra de férias, posicionamos alguém para desempenhar suas funções”, diz.
Além de produtivo, esse grupo de deficientes costuma ser mais comprometido. No Citi, a taxa de retenção dos participantes do Somar é de 97%.
A C&C, empresa especializada na venda de material de construção e bricolagem, que em 2012 implantou o Programa de Capacitação de Aprendizes com Deficiência, também identificou que a rotatividade dos profissionais com deficiência intelectual é baixa.
Apesar de não divulgar os números, a empresa afirma que os desligamentos desse tipo de profissional são muito menores do que o dos portadores de deficiência motora.
O caminho da inclusão
Selecionar, contratar e, especialmente, incluir o deficiente intelectual na rotina da empresa não são tarefas simples. É preciso tempo, paciência e metodologia nos processos.
O trabalho da C&C com portadores de deficiência intelectual existe desde 2009, mas somente no ano passado a empresa criou um projeto para englobar também indivíduos com síndrome de Asperger, uma forma branda de autismo. São 16 pessoas — três com a síndrome — entre 18 e 41 anos na primeira turma de aprendizes, os quais atuam somente nas unidades da Grande São Paulo.
Todos passaram por um longo e detalhado processo até conquistar a vaga. Primeiro, a equipe da Avape conduziu o recrutamento. Só esse processo levou três meses. Depois, os selecionados foram submetidos a 80 horas de treinamento. Finalmente, partiram para a experiência prática nas lojas.
“Quando eles vão para as unidades, são recebidos por um tutor responsável por orientar as atividades diárias e, principalmente, promover a integração com os colegas”, diz Suzi Arnone, gerente de desenvolvimento de RH da empresa.
Segundo o psiquiatra Sérgio Tamai, para obter sucesso em programas de inclusão com deficientes intelectuais, é preciso — antes de tudo — estudar três perfis: o da empresa, o das vagas e o das condições neuropsiquiátricas.
“Para uma boa adaptação dessas pessoas, são necessários uma seleção eficiente e um posicionamento na função correta”, diz Tamai, que ressalta a importância de preparar também os demais funcionários da empresa.
Outra recomendação do psiquiatra é a criação de uma rotina específica para ajudar no processo de adaptação desses profissionais. “Rotinizar uma função ajuda a assimilar o conhecimento. Por isso, não é recomendado colocar esses profissionais em turnos e ambientes com muita pressão, por exemplo”, orienta.
Ciente desses detalhes, o Citibank criou uma lista de atividades em que detalha cada uma das tarefas que o funcionário deve cumprir ao longo do dia. Para incentivar a interação, os colegas também têm acesso à lista, podendo prestar auxílio em caso de dúvida ou má conduta.
Esse tipo de cuidado foi fundamental no processo de ambientação de Paulo Policastri, auxiliar administrativo da Novartis. Policastri, de 37 anos, tem síndrome de Down e entrou na farmacêutica no departamento de RH. Após seis meses, ingressou no marketing da área de oncologia até migrar para a função atual.
Hoje, ele é acompanhado por Elisabeth Prupere, supervisora administrativa de vendas e sua segunda tutora na empresa. “Criei para ele uma agenda de rotinas diárias distribuídas entre as 4 horas do período de trabalho e, assim, fui aprendendo como obter o melhor do Paulo”, explica Elisabeth. Aos poucos, Elisabeth introduziu mais quatro tarefas na lista de afazeres e, hoje, Policastri realiza 13 atividades diárias.
Na Novartis, os integrantes do programa Diversidade e Inclusão, que reúne deficientes físicos, visuais, auditivos e um intelectual, têm Plano de Desenvolvimento Anual como qualquer outro colaborador e são tratados como os demais.
Claro que a empresa se preocupa em oferecer os suportes necessários para esses trabalhadores com defasagem no intelecto e entende que eles precisam de um cenário diferente para ter melhor performance. Mas, na medida do possível, a farmacêutica tenta lidar com as pessoas sem diferenciá-las.
“Não temos um programa específico para pessoas com deficiência intelectual, porque, se tivéssemos, não seria inclusivo”, afirma Isabella Maciel de Sá, líder de diversidade e inclusão na Novartis.
Ainda que bem-intencionada, a prática de agrupar os diversos tipos de deficiente e até tratar os funcionários da mesma forma nem sempre é garantia de bons resultados.
“É preciso conhecer as necessidades e particularidades de cada deficiência para saber lidar com ela”, recomenda o psiquiatra Marcelo Fernandes, da Unifesp. Ignorar a diferença pode prejudicar não só a empresa como a própria pessoa com defasagem intelectual.
“A inclusão bem-feita é aquela em que a empresa analisa as competências de cada cargo juntamente com as condições de cada tipo de deficiência para, então, colocar os indivíduos certos nos lugares certos”, diz Fernandes.