O Brasil no osso: de pobres à elite, todos roem os restos da política
No futuro, esses ossos terão de ser roídos, digeridos e deglutidos pelo país; tomara que em melhores condições financeiras e fiscais que as atuais
Bússola
Publicado em 15 de outubro de 2021 às 18h15.
Última atualização em 15 de outubro de 2021 às 18h32.
Por Márcio de Freitas*
A imagem de brasileiros avançando sobre restos de açougues e frigoríficos é o retrato de um país no osso. A inflação deixou na panela dos mais vulneráveis apenas o cheiro da carne. Mas a elite também paga alto preço para o seu T-Bone, salgado, pelancudo e duro. A política nacional se tornou um problema amplo em várias frentes, e sem apontar solução, tornou-se um entrave generalizado pelos projetos políticos pessoais, partidários ou de corporações.
A agenda nacional caminha a passos largos para 2022 com muitas pendências. São tantos fios soltos, conflitos à direita, brigas à esquerda e instabilidade que qualquer previsão, além de que depois de segunda-feira vem a terça-feira, torna-se arriscada.
Os exemplos se multiplicam no noticiário, que consegue produzir um caleidoscópio de manchetes diversas como poucas vezes se viu na imprensa do país. A lista começa pelo “negacionismo” de agenda. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Davi Alcolumbre, nega-se a marcar a data da sabatina do indicado ao Supremo Tribunal Federal pelo presidente Jair Bolsonaro.
Ao presidente da República cabe a prerrogativa de indicar um nome ao STF sempre que houver vaga na corte. A legitimidade neste caso foi consagrada na Constituição Federal ao eleito pelo voto popular. O direito deriva portanto dos 57 milhões de votos destinados a Bolsonaro. Negar-lhe a prerrogativa é usurpação de poder popular delegado. Ao não marcar a data de sabatina ao indicado André Mendonça, o presidente da Comissão de Constituição e Justiça fere a Constituição e ataca o princípio legal da Justiça.
Davi Alcolumbre tem se mostrado um osso duro de roer. E de engolir. Apesar de várias ações em busca de diálogo, ele não apresenta nenhum argumento contra o indicado, há três meses exposto sem que apareça um porém a seu nome, a não ser o fato de ser afeito à honestidade e, talvez, defensor do combate à corrupção. Claro, é um terrivelmente evangélico, mas essa atribuição não é exigida no lugar do notório saber jurídico.
Somente, por vazamentos em off, ouve-se o desejo de certos grupos de ter um nome diferente indicado ao posto, quem sabe com mais flexibilidade moral e ética? Ora, a Constituição não concede a ele a prerrogativa da escolha, mas ao presidente da República. Há mistérios demais e intrigas além da conta nesta história — inclusive as palacianas e as da base (?) do governo. Fato é que Bolsonaro está comendo um saboroso pé de galinha neste churrasco que o senador quer fazer de seu indicado e com sua autoridade.
A arma de Alcolumbre é o regimento do Senado, que lhe concede o direito de comandar a agenda da CCJ. A firula é que esse direito é de marcar, não de jamais marcar — como ele exercita. A interpretação ampla e vasta permite o desvio. Mas é até difícil atacá-lo, porque esse desvio é prática corrente na ação da casa que pode ser o destino de André Mendonça. No Supremo, se um ministro percebe uma derrota em causa que lhe pareça importante, basta um pedido de vista para que se postergue, sine die, a formação de maioria contrária à sua tese jurídica. E assim, o que está sem conserto, quebrado permanece. Há pedidos de vistas que se perdem nos anos.
A complacência atual pode parecer ser boa para os adversários, mas quando certos princípios são quebrados, a incivilidade e o desrespeito às regras consuetudinárias se impõem, e passamos ao vale tudo. O osso se transmuta em arma, como na linda abertura de 2001, uma Odisseia no Espaço.
Mas até ossos futuros que demoraram anos para chegar às mãos de famintos podem ficar quase intocados. Veja-se o caso dos precatórios, decisões judiciais que levaram décadas para completar o ciclo de julgamento. Agora, no momento em que se define o direito ao pagamento, o Congresso prepara medida para parcelar parte dessa dívida em até dez anos. Em projeções publicadas no jornal Valor Econômico, a PEC pode adiar pagamentos da ordem de 347 bilhões de reais até 2030.
Os esqueletos vão sendo guardados no armário numa proporção inédita. Pelo menos à vista de todos. No futuro, esses ossos terão de ser roídos, digeridos e deglutidos pelo país. Tomara que em melhores condições financeiras e fiscais que as atuais.
*Márcio de Freitasé analista político da FSB Comunicação
**Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a EXAME. O texto não reflete necessariamente a opinião da EXAME.
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