Obra prometida por Bolsonaro em rodovia ameaça coração da Amazônia
Estudos estimam que o projeto de reconstruir estrada da época da ditadura resultaria em um aumento de cinco vezes no desmatamento até 2030
Reuters
Publicado em 2 de outubro de 2019 às 19h38.
Durante mais de 50 anos, o desmatamento da Amazônia quase sempre começou com a abertura de uma estrada na densa floresta tropical. Com o asfalto chega o corte de madeira, depois as fazendas e finalmente a agricultura comercial e as cidades.
Na cidade madeireira decadente de Realidade, no Amazonas, os ecologistas dizem que a história parece prestes a se repetir.
Este vilarejo de várias dúzias de casas se situa nos restos da BR-319, uma rodovia construída pelos militares nos anos 1970 e logo abandonada. Hoje sua maior parte é intransitável durante os cerca de seis meses da estação de chuvas.
Os veículos que tentam atravessá-la durante os meses secos se arrastam pelo asfalto rachado, desviando de grandes buracos e entulho da selva.
Agora o presidente Jair Bolsonaro prometeu ressuscitar a estrada. Alguns especialistas dizem que projeto pode determinar o futuro da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo.
O governo Bolsonaro está trabalhando em um plano ambicioso para iniciar a reconstrução até 2021, parte de uma estratégia mais ampla para retomar o desenvolvimento econômico na região. Uma vez finalizado, o projeto religaria Realidade a Manaus, metrópole de 2 milhões de habitantes situada 600 quilômetros ao nordeste. Como a BR-319 não tem serventia durante a maior parte do ano, o resto do Brasil só chega a Manaus pela água e pelo ar.
"Temos a certeza que a nossa BR-319 será asfaltada", disse Bolsonaro em julho durante um evento público em Manaus.
A Secretaria de Comunicação disse que o presidente debateu o projeto com o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, mas não quis comentar além disso.
Pesquisadores da Amazônia disseram que a estrada recapeada desencadearia uma explosão de desmatamento no Amazonas, atualmente o Estado com a floresta tropical mais bem preservada do país justamente por ter poucas estradas boas. Uma rodovia até Manaus permitiria que agricultores de subsistência, especuladores agrários e madeireiros penetrassem nos confins da selva, disse Philip Fearnside, ecologista norte-americano do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia de Manaus que tem examinado o vínculo entre as estradas e o desmatamento.
Um estudo liderado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) estima que o projeto resultaria em um aumento de cinco vezes no desmatamento até 2030.
Incêndios na Amazônia causaram um grande estrago neste ano, provocando uma reação global que acusou o governo Bolsonaro de não fazer o suficiente para proteger a floresta tropical.
O presidente defendeu suas políticas ambientais, além do direito de Brasil desenvolver seu território, como as nações industrializadas fizeram com os seus. Ele tem alertado líderes internacionais a não interferirem nos assuntos internos do Brasil.
Um importante pesquisador na área climática, Carlos Nobre, da Universidade de São Paulo (USP), afirma que a Amazônia está se aproximando de um ponto de inflexão depois do qual a floresta tropical entraria em um ciclo autossustentável de "morte de fora para dentro", tornando-se uma savana.
Cerca de 15% a 17% da floresta já foi destruída, e o ponto sem volta é a marca de 20% a 25%, diz Nobre.
Tal declínio liberaria quantidades enormes de gás de efeito estufa e tornaria mais difícil restringir o aumento das temperaturas globais à meta de 1,5 a 2 graus Celsius, que visa evitar os piores efeitos da mudança climática, dizem Nobre e outros especialistas.
"Com a BR-319, cruzaremos esse ponto de inflexão, isso é mais do que suficiente", disse Britaldo Soares Filho, professor da UFMG que realizou simulações das perdas esperadas caso a estrada seja pavimentada. "Você está abrindo uma fronteira totalmente nova pelo núcleo da floresta amazônica.".
O governo diz que tais temores são exagerados. Mateus Salomé do Amaral, subsecretário de Gestão Ambiental e Desapropriações do Ministério da Infraestrutura, diz que a reabertura planejada da BR-319 não pressagia um desastre ecológico. Na verdade, disse ele à Reuters, isso permitiria que fiscais ambientais policiassem a área com mais facilidade.
"Nosso objetivo não é gerar desmatamento", disse Amaral.
Sonho da ditadura
Temerosa de que países vizinhos roubassem uma porção da pouco povoada Amazônia, a ditadura militar construiu a BR-319 na década de 1970 para incentivar brasileiros a se estabelecerem na região. Com quase 900 quilômetros de extensão, a estrada ia de Porto Velho, no oeste de Rondônia, a Manaus, no Amazonas, considerado o coração da Amazônia brasileira.
O interesse do governo na estrada diminuiu com a volta da democracia em 1985. No final dos anos 1980, a maior parte da BR-319 havia degenerado em uma estrada de terra cheia de sulcos, uma ferida marrom na floresta verde. Hoje, os únicos trechos asfaltados em bom estado são os 200 quilômetros entre Porto Velho e a cidade de Humaitá e o trecho de 177 quilômetros mais próximo de Manaus.
"As pessoas que vieram para cá atrás do sonho prometido pelo governo militar na década de 70 (quando Geisel veio fazer esse estrada), elas têm que ter direito até pelo menos a ideia de que esse sonho possa sim, finalmente, depois tantas décadas ser realizado.”
Ambientalistas e procuradores públicos recorreram aos tribunais para impedir outros projetos, mas a maioria se resignou à perspectiva de a BR-319 ser asfaltada devido ao apoio local fervoroso. Ao invés de lutar, eles disseram que pleitearão para que a preservação ambiental seja incluída na iniciativa.