Milícias avançam sobre reserva ambiental no Rio de Janeiro
Na Baixada Fluminense, investigações do MPF e da PF, além de relatos de moradores, denunciam o nascimento de um novo loteamento ilegal
Clara Cerioni
Publicado em 3 de julho de 2019 às 13h55.
“Você acha que eu não tenho medo? Tenho. Eles sabem quem eu sou. Agora, não é só eu que tem medo”, diz a professora Marlucia Santos de Souza, curvando-se sobre a mesa para chegar mais perto do gravador, como se tivesse receio de ser ouvida. Não havia mais ninguém no local.
“Todo mundo sabe, já é público e notório que São Bento é controlado pelas milícias. Então nós, moradores, temos que lidar com essa ausência de alternativa. Mas também temos que defender direitos. Fazer denúncias é um caminho para criar uma possibilidade de abertura de solução”, completa.
Marlucia é uma mulher de estatura baixa e ar de destemida: os óculos azuis contrastam com os cabelos negros, lisos até o ombro e as roupas largas, neutras.
Em 7 de março deste ano, agentes da Polícia Federal (PF) pediram a essa mulher destemida que os acompanhasse em uma diligência policial.
Isso porque, além de ser professora de ensino médio em uma escola pública da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro , Marlucia é coordenadora do Centro de Referência Patrimonial e Histórico de Duque de Caxias e atua também como secretária executiva do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (Comdema).
Os policiais queriam apurar um esquema de grilagem de terras denunciado pelos moradores do Guedes, comunidade também conhecida como Novo São Bento, no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Cercada pelo rio Iguaçu e pelo rio Sarapuí, o Guedes parece estar brotando de um oásis verde, já que a área é cercada de manguezais e taboal, uma planta que cresce em regiões pantanosas.
A comunidade é rodeada por dois grandes rios, o Rio Sarapuí, que tem 36 km e corta quatro municípios da Baixada Fluminense, e o Rio Iguaçu que tem 43 km de extensão e deságua na Baía de Guanabara.
Desde agosto de 2015 os moradores reclamam aos órgãos públicos que as milícias avançam na comunidade onde moram mais de cem famílias, segundo lideranças locais. O objetivo: lucrar com a venda ilegal de terrenos.
Em quatro meses de apuração, a Pública reuniu documentos, ouviu testemunhas e conversou com os órgãos públicos à frente de investigações. A reportagem descobriu que os moradores convivem com o medo e o vaivém constante de caminhões de entulho que são usados pela milícia para aterrar e lotear mais terrenos ilegais.
Para piorar, a prefeitura construiu uma ponte no local que facilita a entrada dos caminhões de entulhos. Um inquérito policial que investigava o avanço de grilagem de terras no Guedes foi arquivado pelo Ministério Público Federal (MPF), embora relatório da PF comprove as denúncias. Resultado? Os moradores agora estão cada vez mais à mercê das milícias.
Um despacho do MPF emitido em julho de 2012 deixou claro que novas construções não são permitidas no local porque “é proibida a venda de lotes em toda a área do São Bento, já que o terreno é público”.
O documento do MPF explica que desde 2004 a região do São Bento pertence ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do governo federal. De acordo com o INCRA, o terreno onde fica o Guedes foi adquirido pela União, ou seja, é terra pública, desde 1931.
Além disso, o Guedes fica dentro da Área de Preservação Ambiental (APA) São Bento, com mais de mil hectares, que abriga um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica próxima ao centro urbano de Duque de Caxias.
A APA foi estabelecida como espaço ecológico pelo Decreto Municipal 320 de 1997 – quando já havia a comunidade do Guedes por ali – e, segundo o decreto, “não são permitidas atividades que venham a degradar ou a causar impactos ambientais”.
Mas, mesmo que o loteamento e a venda de terrenos no local sejam ilegais, as práticas persistem há quase três décadas.
PF contradiz decisão do MPF
Durante a diligência policial, Marlucia e os policiais visitaram o local das construções e conversaram com moradores. Onze dias depois da vistoria, porém, o inquérito IPL nº433/2015, que tramitava desde 2015, foi arquivado.
Um despacho emitido pelo MPF afirmava que a PF não conseguira ao longo dos últimos quatro anos “localizar o local do loteamento irregular e as pessoas envolvidas com o ilícito”.
Porém, a Pública obteve um relatório da diligência da PF que contradiz esse despacho.
O documento só foi apresentado para o MPF depois do arquivamento do processo. E revela a gravidade das irregularidades em curso no Guedes.
“Trata-se de área em processo de aterramento, na qual já existem edificações de alvenaria e sinais de avanços de aterro em sentido às margens do rio, local e no sentido contrário também”, diz o relatório da PF.
O parecer da PF relata ainda que, em uma das entrevistas feitas na diligência, “foi possível obter informações de que a área é controlada por milicianos e que os mesmos possuem influência na Prefeitura e cartórios da região para legalizarem as áreas invadidas e que há outras áreas da reserva sendo aterradas”.
As constatações foram tão alarmantes que o procurador Julio José Araujo Junior, do MPF em São João de Meriti, pediu em abril a reabertura das investigações. “Essa prática [de grilagem de terras] se renovou, e agora a gente tem um outro inquérito a partir dos dados recentes da diligência que foi feita”, explica o procurador.
O novo inquérito policial tramita agora sob o número IPL 328/19. “Em relação à investigação, ela é incipiente, então a gente não sabe como é que vai caminhar. Agora o que eu acho importante é que os órgãos estejam atentos à realidade daquela população, porque viraram as costas pra ela”, alerta Julio Araujo.
Famílias que moram no local dizem ter sido enganadas por milicianos, quando adquiriram suas casas. Hoje, convivem com o medo em uma zona controlada – e com planos de expansão.
Enganados e em área de risco
A apropriação ilegal das terras da APA São Bento pelas milícias não é nenhuma novidade. Afinal, o próprio Guedes foi fundado por milicianos.
No final da década de 1990 e ao longo do início dos anos 2000, as milícias lotearam e venderam os terrenos para cerca de 80 famílias, que permanecem há quase três décadas no local. O próprio MPF pediu, em 2012, que os moradores encaminhassem os títulos de propriedade registrados em cartório no São Bento, “já que é possível que eles tenham sido falsificados pelos vendedores”.
“A gente acredita, né? A gente foi no cartório, primeiro ofício, reconheceu firma. Para gente era tudo legal”, diz um morador do Guedes que não quis revelar sua identidade.
Temendo correr risco de vida, três moradores conversaram com a Pública sob condição de anonimato. Eles pediram para se encontrar com a reportagem em um local fora da sua comunidade, por segurança. Segundo eles, só descobriram a natureza irregular do terreno quando o MPF esteve no local em 2011.
De acordo com eles, a propriedade foi adquirida por meio de uma antiga associação de moradores do bairro. No ato da compra, os vendedores não apresentaram o Registro Geral de Imóveis (RGI), documento que assegura a propriedade do terreno.
“Na verdade, naquela época a gente não sabia que não podia comprar um pedaço de terra, um imóvel, sem RGI. Todo mundo comprava”, disse um dos moradores.
“Eu paguei o cara lá. Ele foi lá no cartório, registrou e pronto. Dizem que é documento, mas não é documento. O documento da minha casa sou eu mesmo, que estou morando lá. É o que eu tenho pra provar que a casa é minha”, conclui.
Muitas dessas famílias vieram do Nordeste à procura de trabalho no Rio de Janeiro e chegaram com o sonho de construir uma casa própria.
“No início, você está construindo um sonho. Para gente era uma área rural, era uma fazenda que foi loteada. Então você pensa: ‘Poxa, eu vou com a minha família para um lugar tranquilo, com verde. Vai ser um lugar sossegado, o nosso recanto’. Só que não foi bem assim. A realidade desconstruiu tudo”, relata mais um morador.
Os cartórios, que expediram os títulos para os moradores, também são foco de uma investigação que tramita no MPF pelo Inquérito nº70/2015-89.
Uma recomendação expedida pelo MPF em 2016 pede que o Cartório de Registro de Imóveis do 1º Oficio de Duque de Caxias “se abstenha de realizar registro de desmembramentos e de alienações referentes a imóveis de propriedade do Incra na região do Núcleo Colonial São Bento”.
A recomendação demanda ainda que o cartório “adote as providências cabíveis para a retificação dos registros públicos de imóveis de propriedade do INCRA em nome de terceiros.”
O Incra, por sua vez, também foi acionado na mesma recomendação do MPF para realizar um levantamento cartorário dos seus imóveis no São Bento, com o objetivo de identificar e anular todos os registros ilegais encontrados.
Em nota enviada para a Agência Pública, o INCRA informou que foi criado um grupo de trabalho para tratar do tema, o que “resultou na elaboração do Relatório sobre a situação ocupacional de áreas remanescentes do Núcleo Colonial São Bento, bem como no encaminhamento de ofícios aos cartórios e na expedição de uma série de notificações a ocupantes irregulares (pessoas físicas e jurídicas) visando a reintegração da posse de áreas do Incra.”
Um despacho de 2012 do MPF já apontava que “em vistoria recente feita pelo Ministério Público Federal, foi constatada a construção de diversas novas casas, com aterro de vegetação nativa e em áreas alagadiças, sem devidas autorizações”. E o despacho não para por aí.
Além da grilagem de terras, o terreno em si foi avaliado como área de risco, sujeita a inundações, por ser uma área de transbordamento dos rios Sarapuí e Iguaçu.
“As pessoas que estão construindo nestes locais estão se submetendo a risco e aumentando o risco de enchentes no resto das áreas já ocupadas do bairro do São Bento e também dos bairros vizinhos”, diz o documento.
O Guedes fica localizado em cima de um pôlder, uma área de inundação natural. Quando chove, a água dos rios transborda para o Guedes, enchendo a casa dos moradores. “Se está chovendo muito, o rio enche, aí faz ressaca. Então, se já tiver chovendo muito, ressaca, pode ter certeza que a casa da gente vai inundar”, conta uma moradora.
Em 2012, o órgão de fiscalização ambiental do estado, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), em parceria com o Ministério das Cidades, prometeu integrar os moradores do Guedes ao programa de moradia Projeto Iguaçu, realocando-os para um local mais seguro.
Com investimentos da Caixa Econômica Federal, o programa previa o reassentamento de 2,5 mil famílias que vivem em áreas de risco de inundação nas margens dos rios.
Outros moradores receberiam unidades no complexo do Minha Casa Minha Vida próximo do local atual, na avenida Teixeira Mendes.
O cadastramento foi realizado entre julho de 2015 e janeiro de 2016. Porém, em junho de 2017, os moradores receberam a notícia de que o projeto tinha sido cancelado.
“O Projeto Iguaçu vai perdendo os recursos [da Caixa Econômica Federal]”, resume o procurador Julio José Araujo. “O Inea sai de cena e a prefeitura assume o conjunto habitacional e, quando assume, não destina as casas para aquelas pessoas.”
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Planejamento Habitação e Urbanismo de Duque de Caxias não respondeu aos questionamentos da Pública sobre os planos para o futuro do projeto.
O procurador Julio Araújo afirma que a prefeitura não parece interessada em reassentar os moradores. “Eu tentei reverter isso chamando a prefeitura, e foi um diálogo muito difícil, porque a prefeitura não quis cooperar. Ela tinha outros planos para a área. E aí, a partir do momento em que você não consegue dar uma solução na promoção, na concretização desse direito, a gente entra para um campo de responsabilização, buscar responsabilidade pelo que aconteceu, que é o que a gente está fazendo hoje no campo civil”, diz o procurador.
A Recomendação nº 05/2018, emitida no dia 18 de julho de 2018 pelo MPF, ressalta que o município de Duque de Caxias “tem atuado para minar políticas socioambientais na região”.
Encurralados na festa dos lobos
A suspensão do processo de reassentamento pela prefeitura deu um sinal claro às milícias, segundo Marlucia.
“Aí que eu acho que foi a festa dos lobos.”
Para ela, o reassentamento dos moradores teria ajudado a impor o controle do poder público sobre o local, passando assim o recado de que novas construções não seriam aturadas dali por diante. Mas, como a remoção dos moradores não se concretizou, ela diz que se abriam as portas para um novo avanço.
“As milícias vêm e não têm mais freios para os seus projetos de expansão. E isso se consolida. Quando a PF veio aqui, uma das coisas que eles perguntaram é como é que esses caras conseguiram poste de luz pra cá se aqui é terra do Incra e é área de preservação ambiental? Aqui as milícias são os prefeitos do local. Eles botam placa, abrem rua. Quando eles não têm ainda endereço, eles criam associação para receber correspondência, para receber as mensalidades. Eles são o Executivo aqui”, diz.
Em outubro de 2017, membros do Conselho Municipal de Meio Ambiente (Comdema) denunciaram à Secretaria de Meio Ambiente a operação em larga escala de despejos de entulho.
Segundo a denúncia, os entulhos são utilizados para aterrar novos lotes e “aqueles que já haviam realizado expropriação de terras públicas para acumular com a comercialização ilícita, aproveitaram e retomaram as suas atividades na Comunidade do Guedes”. O processo de aterramento ocorre há dois anos e continua a todo vapor, segundo apurou a Pública com moradores.
Todos os dias de madrugada, os moradores acordam com o barulho de caminhões despejando entulho no entorno de suas casas. Segundo os residentes, a ação ocorre de madrugada para passar despercebida e o objetivo do entulho seria construir a fundação de novas casas na área. Durante o dia, a população do Guedes é obrigada a conviver com lixo, poeira e caos.
“Hoje o lugar pra mim é um cenário de guerra. Parece que caiu uma bomba ali. Muito feio. Ou então virou um lixão”, diz um morador.
“A gente tem vergonha de convidar as pessoas para ir onde a gente mora. Porque, quando você chega, logo de cara você já vê entulho, lixo, vaso sanitário. É uma vergonha”, completa outro residente.
A denúncia do Comdema destaca como se dá o processo de grilagem explicando que “assim, começam os incêndios, depois os entulhos em larga escala, venda de lotes por 11 mil reais”.
Segundo Marlucia, que é uma das autoras da denúncia, o processo de grilagem começa com os milicianos pondo fogo na vegetação para abrir espaço para o loteamento dos terrenos. A prática já constitui logo de cara um crime ambiental porque ela ocorre em plena área ecológica protegida por lei.
“Primeiro eles tacam fogo porque tem mata, tem vegetação, tem mangue, tem taboal, então eles botam o fogo [para limpar o terreno]”, explica Marlucia. “Usam esses entulhos para aterrar e depois vendem os lotes para os trabalhadores pobres à prestação”, continua Marlucia, completando que os entulhos também contaminam o solo.
A milícia lucra e ainda amedronta as autoridades
O relatório da diligência da Polícia Federal em março deste ano aponta para outro negócio nas mãos dos milicianos: eles estariam lucrando com o próprio despejo do entulho. O relatório diz que em uma entrevista conduzida durante a diligência “foi informado ainda que os milicianos cobram dos caminhoneiros cerca de R$ 350 por cada caçamba de entulho descarregada nos locais”.
Os caminhoneiros, que chegam diariamente com o entulho, não se identificam ao entrar no Guedes, mas o relatório da diligência da Polícia Federal confirma a versão dos moradores de que o local é controlado por milícias.
“Cabe salientar que a área diligenciada é reconhecidamente controlada por milicianos, o que inviabiliza uma equipe composta por dois policiais diligenciar realizando questionamentos sobre membros da mesma, identificando e qualificando pessoas naquela localidade, sem se expor a risco de vida desproporcionais”, diz o relatório.
A presença de milicianos não intimidou somente a PF. Mais de uma vez, as autoridades públicas afirmaram não ter a capacidade de impedir, como Marlucia diz, que os lobos fizessem a festa.
Meses depois da denúncia do Comdema, a Secretaria de Meio Ambiente fez uma vistoria no Guedes. No dia 20 de fevereiro de 2018, os funcionários da secretaria atestaram “a existência de diversos pontos com acúmulo de resíduos da construção civil”, segundo o relatório da vistoria. Na ocasião constataram também que parte desse material “é utilizado para nivelar o solo, visando a construção de novas residências”.
Mas o relatório termina dizendo que, apesar de a equipe ter conseguido fazer registros fotográficos, “em determinado momento da vistoria, a equipe foi informada por duas pessoas que não deveria continuar com a atividade e insinuou que seria melhor a equipe deixar o local. A partir desse momento, a equipe interrompeu o trabalho e deixou a região imediatamente. Ressalta-se que a área em questão apresenta atuação de milicianos, impedindo a presença e prestação de serviços pelos órgãos públicos”.
Se nem a Secretaria de Meio Ambiente nem a PF dizem conseguir atuar em território comandado por milícias, quem acaba assumindo o papel de fiscal são os próprios moradores, que descrevem como vão brotando novas construções.
“Logo na entrada você visualiza duas construções novas. Mais para frente você vê obras assim tipo muros e terrenos. Na minha rua tem mais duas sendo construídas. Eu acho que tem até morador novo na minha rua”, contou um morador à Pública.
A ponte que viabiliza o crime
Ao mesmo tempo que os planos para a expansão ilegal do Guedes caminham para a realização, a prefeitura parece estar mais interessada em adiantar outra obra: uma ponte de acesso cuja construção está sendo investigada pelo MPF.
Segundo relatório da diligência feita pela Polícia Federal em março de 2019, “se obteve informação da realização de obras por servidores da prefeitura no acesso a esta Área de Preservação Ambiental, com a colocação de manilhas na passagem de um valão”.
Trata-se do alargamento de uma ponte dentro da APA São Bento, feita para facilitar a passagem para a comunidade do Guedes.
A obra, segundo o relatório, “possibilitou o acesso de caminhões que levam entulhos para aterramento da referida área, que, de acordo com informações, anteriormente só era acessada por carroceiros”.
Segundo contam os moradores, havia já no local uma ponte estreita construída pela própria população para a passagem de carroças para dentro da APA. Depois que melhorias foram feitas pela prefeitura, a ponte passou a comportar veículos muito maiores.
“O que a gente recebeu em relação a essa ponte é que ela vem viabilizando o tráfego de caminhões lá para despejar [entulhos] e para fazer aterramentos, e é isso que está sendo apurado agora”, explica o procurador Julio Araujo. “Inclusive para apurar como a prefeitura está vendo essa questão.”
De acordo com os moradores, em novembro do ano passado agentes da prefeitura foram até o Guedes conversar com a população do entorno sobre a construção de uma nova ponte. Eles relatam que os integrantes da prefeitura se identificaram como assessores do vereador Celso do Alba (PMDB), hoje Secretário de Meio Ambiente de Duque de Caxias.
O vereador virou secretário do prefeito Washington Reis, que em 2016 foi condenado a sete anos de prisão por crimes ambientais e loteamento irregular.
O STF considerou ilegal a divisão de uma área que foi vendida a ele, Washington Reis, para a construção de um condomínio de luxo conhecido como Vila Verde, no entorno da Reserva Biológica do Tinguá, em Duque de Caxias. A irregularidade foi cometida quando era deputado estadual e durante uma parte de seu primeiro mandato como prefeito.
Quando Washington Reis foi eleito prefeito pela segunda vez, em 2016, a condenação motivou um pedido de impugnação do seu mandato. Porém, em março deste ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) afastou a possibilidade de cassação do mandato porque a condenação aconteceu depois da eleição.
“O Município de Duque de Caxias vem se apresentando como um notório violador de normas ambientais e de destinação socioambiental a imóveis”, destacou o MPF em uma recomendação emitida no ano passado. O documento aponta ainda que Duque de Caxias é investigado em nada menos de seis inquéritos pela violação de normas ambientais envolvendo imóveis.
O próprio secretário Celso do Alba anunciou em sua página oficial no Facebook que estava à frente do projeto de construção da nova ponte.
No post publicado no dia 14 de novembro, ele comemora o feito dizendo: “Estou aqui no novo São Bento conversando com os moradores a respeito das inúmeras melhorias que solicitei a Prefeitura de Duque de Caxias que fizesse. Iniciaremos com manilhamento e a construção de uma nova ponte”.
Mas um morador reclama: “A promessa era fazer a ponte, colocar manilhas, colocar muretas de proteção e jogar algum tipo de asfalto, uma pólvora, alguma coisa de asfalto na rua principal. Só que aí [a obra] parou com o aterro das manilhas. O mato está crescendo, mas os caminhões passam muito bem, obrigado”.
“Não houve uma melhora significativa da ponte, houve um aumento dela. Então agora estão entrando caçambas e caminhões, diz Marlucia.
“Diziam que era para melhorar a circulação. Eu não quero dizer com isso que a intencionalidade era favorecer as ações milicianas, mas fato é que essa ação acabou favorecendo.”
No dia 29 de maio, o MPF emitiu um despacho pedindo que o Inea realizasse “com urgência” fiscalização no local. Pediu também à prefeitura de Duque de Caxias, por meio da Secretaria de Meio Ambiente, que vistoriasse o local e “avalie as providências para interditar o trânsito da ponte que vem sendo utilizada para a realização do transporte de materiais para aterramento no local”. Não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Meio Ambiente não se manifestou sobre os questionamentos feitos pela Pública sobre a construção da ponte.
Enquanto a luta para decidir o futuro das terras do São Bento continua, os moradores do Guedes assistem à cristalização do domínio das milícias.
O enredo é um exemplo de como vai se construindo um território dominado por elas, segundo o sociólogo José Cláudio Souza Alves, que estuda a expansão das milícias no Rio de Janeiro há 26 anos. “A tendência é piorar, não vai melhorar não. Você está pegando um caso que está começando e que vai expandir. Esse é o cenário que eu vejo”, explica o sociólogo.
“Qual é a prática mais rentável de uma milícia? É vender terrenos, é vender casas. Bom, para vender casas você tem que ter um terreno para construir. Então a lógica é fundiária, é a lógica de maior extração para que você possa fazer disso um ganho maior. A venda de terrenos e de imóveis é a grande prática das milícias que já existe há muito tempo. Não é de hoje. Só que agora virou uma coisa incontrolável, monstruosa”, diz José Cláudio.
“Como um bicho”
No Guedes, a milícia ainda engatinha, por meio da venda de serviços clandestinos como a distribuição de água, luz, gás e até o sinal da TV por assinatura roubada, conhecida como “gatonet”. Segundo os moradores, embora a gama de oferta de serviços venha aumentando, eles ainda não se sentem obrigados a utilizá-los.
“Por enquanto oferecem só serviços. Depois eles passam a cobrar taxas e a obrigar a usar o serviço”, diz um morador.
“O futuro ali vai ser você pagar para entrar dentro de casa. Esse futuro aí ele está bem próximo, está bem pertinho”, complementa outro.
E não há nada que eles possam fazer.
“Eu acho que, se a gente se expor mesmo, bater de frente, a gente corre risco [de vida]”, diz um morador. “Por isso que a gente preferiu conversar com você aqui, para a gente não se expor.”
A mesma pessoa diz se sentir completamente abandonada pelo poder público. “A gente se sente um bicho. Como se fosse um bicho que ninguém escutasse o nosso gemido. Porque na realidade é isso: a gente está pedindo socorro.”
Apesar disso, Marlucia vê esperança na insistência dos moradores em continuar denunciando as ilicitudes que persistem há décadas no Guedes. “Aqui tem vários que fazem denúncias ao Ministério Público. São muitos. Isso foi uma coisa boa”, diz.
“A gente sonha com um projeto para o São Bento de arborização, de recuperação do rio Iguaçu e do rio Sarapuí. Tem o potencial turístico, de pesquisa, de qualidade de vida para os moradores. A gente sonha ter os moradores com água e com luz, sem intervenção da milícia. Só que a gente vê que as nossas pernas são mais curtas. Como você vai movimentar multidões para barrar isso se existe o medo?”
*Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública.