JULITA LEMGRUBER: Socióloga critica falta de plano emergencial para conter crise no sistema penitenciário / Divulgação
Da Redação
Publicado em 17 de janeiro de 2017 às 18h51.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h23.
Camila Almeida
A Penitenciária Estadual de Alcaçuz, na região metropolitana de Natal, é apenas mais uma unidade prisional a vivenciar rebeliões e fazer coro à crise penitenciária brasileira. Além do Rio Grande do Norte, São Paulo, Piauí, Minas Gerais, Paraná, Roraima e Amazonas já tiveram conflitos em prisões este ano que somam mais de 130 mortes. Em resposta aos massacres, o governo federal apresentou o Plano Nacional de Segurança, mas, após reunião com os secretários de segurança pública estaduais nesta terça-feira, o lançamento oficial previsto para esta quarta foi cancelado. Os secretários questionaram como o plano poderia ser financiado e alegaram que as propostas não atendem às necessidades locais. Em entrevista a EXAME Hoje, a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes e ex-diretora geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro, criticou o fato de o governo ainda não ter apresentado um plano emergencial e a falta de participação do Conselho Nacional de Justiça na resolução do problema. Lemgruber também falou sobre como a criação de penitenciárias federais de segurança máxima contribuíram para a crise do sistema.
O Planalto assumiu, nesta terça-feira, que a crise do sistema penitenciário iniciada em Manaus é um problema nacional. Por que essas rebeliões têm se espalhado?
Quando foram criadas as unidades federais e as penitenciárias de segurança máxima, presos de facções diferentes foram encaminhados para esse locais e passaram a ter um contato que não tinham antes. É uma ilusão pensar que essas pessoas nesses locais não têm contato, claro que têm, e seria até desumano se fosse diferente. Certamente, isso contribuiu para que essas pessoas discutissem estratégias de negócios, voltassem para seus estados e passassem a funcionar a partir de acordos. Mas, em determinado momento, alguns desses acordos se romperam – isso começou a ser identificado no final do ano passado. E é ilusório pensar que esses presos estão só disputando rotas de tráfico. O que temos visto, nessas unidades, é um nível de tensão que está diretamente relacionado ao controle das unidades prisionais. Evidente que quem controla as prisões passa a ter um poder enorme. Historicamente há uma omissão enorme do estado nesses espaços.
O PCC já está sendo responsabilizado por mortes fora de presídios no Rio Grande do Norte e de estar perseguindo policiais em São Paulo. Em 2006, a facção esteve à frente de uma onda de ataques que levou pânico a São Paulo. Por que vemos o mesmo filme dez anos depois?
Se uma repetição do que aconteceu em 2006 vai acontecer, só o futuro dirá. Mas formas de evitar isso passam pela polícia ter uma área de inteligência funcionando com competência para evitar e inibir situações que possam repetir o que aconteceu naquela época.
Que política pode ser adotada, pelo governo federal, para estancar o problema de forma emergencial e impedir que essas rebeliões continuem se espalhando?
O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, vem sugerindo a construção de unidades prisionais para aliviar a superlotação. Isso é uma forma míope de ver as coisas, porque uma unidade prisional não se constrói do dia para a noite. O que se precisa, no curtíssimo prazo, é neutralizar o poder dessas facções com a presença do estado. E o estado se faz presente atendendo às necessidades básicas de sobrevivência dos presos e proporcionando assistência jurídica adequada. Em vez de propor a construção de unidades prisionais, porque isso não é solução a curto prazo, o ministério da Justiça deveria estar propondo uma ação integrada com o Conselho Nacional de Justiça para que mutirões carcerários bastante articulados pudessem desafogar as unidades prisionais. Se as vaidades forem postas de lado e se o ministro da Justiça sentar com a ministra Cármen Lúcia, seria possível articular um plano nacional emergencial para a redução dessa superlotação carcerária insuportável.
Qual a responsabilidade da Justiça em relação à superlotação?
Milhares de pessoas, pelo Brasil afora, não deveriam estar presas. Há uma série de pesquisas que demonstram que cerca de metade dos presos provisórios, que estão aguardando julgamento, quando condenados, recebem uma pena diferente da pena de prisão. Então, o Brasil está entupindo as prisões com quem não deveria estar lá. Eu não estou dizendo que 100% dos presos devam aguardar o julgamento em liberdade. A lei brasileira é muito clara: só deve ficar preso provisoriamente aquele que pode tumultuar o processo, intimidar testemunha ou oferecer um risco à ordem pública. O problema é que esse risco é visto pelo judiciário de forma muito inadequada, para dizer o mínimo, porque a maioria dessas pessoas que estão presas provisoriamente não são violentas, não são perigosas e poderiam estar aguardando o julgamento em liberdade. Do outro lado dessa equação, há o problema da ilegalidade de manter milhares de presos que já tem direito ao livramento condicional ou à progressão de regime, mas que continuam mantidos em regime fechado. Esses dois pontos contribuem para a superlotação.
Especialmente depois da Lei de Drogas, de 2006, que não diferencia de forma enfática usuário de traficante, o encarceramento por tráfico de entorpecentes aumentou muito. É possível resolver o problema carcerário sem uma reforma no Código Penal?
Precisamos mudar a lei. Não é possível admitirmos que um juiz vai se valer da lei para sobrepor a um jovem negro e favelado o rótulo de traficante mesmo quando ele está carregando uma pequena quantidade de drogas. E a lei diz que o juiz pode considerar circunstâncias sociais e pessoais para definir quem é traficante e quem é usuário. E ainda há a crença na pena de prisão como solução para todos os males. Não é possível transformar radicalmente a cultura do judiciário, que é de aposta no encarceramento, é preciso mudar a lei.
O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, apresentou, este mês, o Plano Nacional de Segurança, com foco no combate a homicídios e à violência contra a mulher e ao tráfico de drogas, com combate ao crime organizado. O plano é adequado para os atuais problemas brasileiros?
O Plano Nacional de Segurança não é adequado; é mirabolante, fantasioso, inexequível. Ele nem estima o custo das variadas ações que propõe. E mais: foi um plano elaborado entre quatro paredes. Não houve uma consulta ampla. O plano de segurança que o ministro da Justiça, no final do governo Dilma, estava tentando propor, tinha sido um resultado de consulta com várias especialistas. Lamentavelmente, foi abandonado por este governo. Porque o Brasil tem esse mau costume de cada um que se senta em determinadas cadeiras achar que vai inventar a roda. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, vemos planos de segurança pública serem propostos sem jamais terem saído do papel. Porque sempre foram ambiciosos e se propuseram a alguma coisa que os orçamentos não tinham como dar conta.
Discursos radicais, que defendem a pena de morte, têm ganhado força no Brasil. Esse tipo de pensamento faz parte de uma descrença na eficiência do sistema prisional e na possibilidade de ressocialização?
O que a sociedade brasileira precisa discutir é o poder inibitório das diversas formas de controle social. Não há nenhuma pesquisa, em nenhum lugar do mundo, que prove que leis mais duras reduzem a criminalidade. É preciso discutir esse tema com seriedade, sem ficar fascinado com a possibilidade de o Estado responder com violência à violência.
Pensando na estrutura que o Brasil tem hoje, com os estados sendo responsáveis pela administração dos presídios, é possível dizer que esse tipo de modelo desarticulado fracassou? O governo federal precisa ser mais presente na questão penitenciária?
Absolutamente. O governo federal tem que ser indutor de políticas. Existe um Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que está lá para inglês ver. Esse conselho deveria estar propondo políticas para o país. Tem um grupo de pessoas que não são ouvidas e, nos últimos tempos, a contribuição que aquelas pessoas poderiam dar estão sendo ignoradas pelos governos. O governo federal deveria, através do conselho, estar discutindo e pautando essas questões e induzindo políticas. Mas isso não quer dizer que, na ponta, o governo federal deveria estar administrando presídios.