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Efeito de construir mais prisões é fortalecer o PCC, diz pesquisadora

Em entrevista, Camila Nunes Dias, da UFABC, detalha como a lógica equivocada de segurança pública no Brasil fortaleceu a facção paulista nos últimos anos

Membro do PCC em presídio de Alcaçuz no RN: o resultado de anos de insistência em uma estratégia equivocada de segurança pública (./Reuters)

Membro do PCC em presídio de Alcaçuz no RN: o resultado de anos de insistência em uma estratégia equivocada de segurança pública (./Reuters)

Talita Abrantes

Talita Abrantes

Publicado em 7 de agosto de 2018 às 06h30.

Última atualização em 7 de agosto de 2018 às 06h43.

São Paulo - A guerra entre facções que deixou centenas de mortos durante rebeliões em prisões das regiões norte e nordeste no ano passado ainda não acabou. É o que afirma a socióloga Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC e especialista em sistema prisional, que lança neste mês o livro “A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil” (Editora Todavia, 2018).

Escrito em parceria com o pesquisador Bruno Paes Manso, a obra traz uma radiografia do Primeiro Comando da Capital, a principal facção do país e pivô da crise prisional de 2017.

Com cerca de 30 mil membros, o PCC está presente em quase todos os estados brasileiros, mas sua maior zona de influência é nos estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná.

No ecossistema atual do crime no Brasil, controlar uma cadeia significa gerir toda a rede de tráfico a ela ligada. Consciente desse fato, o grupo paulista tem aumentado paulatinamente desde 2014 sua rede de filiados em presídios dominados por outros grupos.

A expansão  não agradou as outras organizações criminosas, que travaram uma espécie de guerra fria com o PCC até o fim do primeiro semestre de 2016,  quando o grupo paulista rompeu com o carioca Comando Vermelho, que estava se aliando a rivais. O resultado foi a matança que se viu nos meses seguintes nas ruas e presídios de alguns estados do país.

Para Camila, essa situação de descalabro é um efeito direto de anos de uma visão de segurança pública equivocada no país. “As políticas de segurança no Brasil não enxergam outro caminho que não a prisão. Esse é um grande contrassenso já que foi justamente no sistema carcerário que produziu o fenômeno das facções”, afirma em entrevista a EXAME, que você vê a seguir:

Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias, autores do livro "“A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil” (Editora Todavia, 2018) (Editora Todavia/Divulgação)

EXAME:  O projeto expansionista do PCC é apontado como a principal razão para a guerra entre as facções. A investida das outras facções com os confrontos em presídios foi suficiente para conter esse avanço?

Camila Nunes Dias: A guerra entre facções ainda não acabou. Temos  menos conflitos porque as autoridades fizeram o básico que é separar esses grupos nos presídios. Mas eles continuam nessa relação de oposição e continuam guerreando entre si nas ruas. Os estados onde o equilíbrio entre os grupos rivais é maior são aqueles que apresentam as taxas de homicídio mais altas, muito especialmente alguns estados do nordeste, como o Ceará.

O PCC não teve um recuo nesse projeto de expansão, o que tem acontecido é um certo ajuste, uma acomodação. Em alguns estados, a disputa continua. Em outros, há um recuo estratégico. No Amazonas, por exemplo, a violência que se vê em Manaus está relacionada a uma dissidência dentro da própria Família do Norte. A tendência é que isso favoreça o PCC. Mas a situação é de muita instabilidade, ainda não conseguimos visualizar para onde esse processo está indo.

O que fortalece o PCC frente a outros grupos?

O PCC é, de longe, a facção que apresenta uma estabilidade e organização maiores. Embora todos os grupos defendam que são portadores de uma ética, o PCC é muito mais avançado no que diz respeito à narrativa da justiça e muito mais coerente em sua história. O exemplo é a própria FDN que está em conflito interno.

E o Comando Vermelho, que também surgiu com essa narrativa?

Embora o Comando Vermelho tenha esse discurso, o grupo sempre foi um agregado de traficantes que eram aliados entre si. O Comando Vermelho não tinha batismo, nem um processo de filiação, tinha uma estrutura hierárquica no morro e nada acima — o dono do morro mais valioso era o cara mais respeitado. O PCC surge com uma dinâmica diferente: não é qualquer traficante que se associa à facção. Há  um rito de entrada e de saída. Com esses ritos, cada indivíduo assume compromissos morais e econômicos.

No Comando Vermelho, embora existam normas, nunca houve uma preocupação de controlar seus integrantes. O interessante no PCC é que há uma obsessão pelo registro. Tudo está escrito no papel: quem são os integrantes, os gastos. São planilhas e mais planilhas. Isso criou uma dinâmica, um conjunto de códigos escritos que permitiu a transmissão da moral, do controle administrativo e das operações de uma geração para a outra.

A Polícia anunciou recentemente que detectou que o faturamento do PCC é de 400 milhões por ano. Mas no livro vocês diferenciam os negócios individuais e dos negócios coletivos. Como funciona essa dinâmica?

Essa é uma das coisas mais complexas. A questão do coletivo e do individual permeia várias narrativas do PCC. Há mercadorias e negócios que pertencem à “família”, ou seja ao PCC, e transações econômicas que são de seus integrantes. Isso é possível, desde que o grupo tenha conhecimento desses negócios, mas a inserção é restrita aos membros da cúpula e do segundo escalão. O que não se admite é usar o PCC para ganhar dinheiro. Na minha visão, as polícias e o Ministério Público não conseguem fazer essa diferenciação - daquilo que pertence ao PCC e o que é individual.

Uma das pessoas entrevistadas no livro questiona o fato de nenhuma liderança do PCC estar em um presídio federal fora do estado de origem do grupo. O que se sabe sobre as ligações entre a facção e o poder público?  Há conivência?

Eu não diria conivência, mas há uma certa acomodação, principalmente no estado de São Paulo, onde os homicídios estão em queda e não houve problemas graves no sistema prisional nos últimos anos. Politicamente, isso é muito valioso. Há uma relação muito ambígua com o governo de São Paulo: o PCC controla a periferia, mas se os homicídios estão caindo … é uma situação boa para todo mundo. Mas é um equilíbrio muito precário. Esta semana, há notícia de que a Rota matou três indivíduos que teriam ligação com o PCC. Em 2012, houve uma crise de segurança no estado exatamente por conta dessas execuções. Para o governo, é interessante que tudo permaneça como está, não é interessante mexer nessa estrutura porque pode bagunçar tudo. Há dois membros da cúpula que estão no sistema federal e, vira e mexe, esses dois são apontados como mandantes de crimes contra agentes penitenciários federais. Eu não acredito que exista essa ligação, mas entre os criminosos de outros grupos a desconfiança é muito grande.

O livro menciona que os órgãos de inteligência já tinham detectado a expansão do PCC, mas se mantiveram inertes. Quais os problemas estruturais de segurança pública no Brasil que explicam essa ineficiência?

Há problemas seríssimos na área de inteligência no Brasil. Os serviços mais eficientes são os ligados à Polícia Militar, que não tem a atribuição de investigar. Não há integração porque cada órgão tem seu próprio serviço de inteligência, sua metodologia  e equipamentos. Os projetos de intercâmbio de informação são pontuais, não é algo sistemático. Enquanto isso, as facções, e o PCC em particular, se constituem como uma rede que se articula em vários estados. Além disso, para que os serviços de inteligência servem? Como eles são utilizados?  Não é inteligência saber que tem um caminhão carregado com torta base de cocaína e usar essa informação apenas para apreender a droga e prender o motorista.

Outra questão é o fato de que as políticas de segurança no Brasil não enxergam outro caminho que não a prisão. Esse é um grande contrassenso já que foi justamente o sistema carcerário que produziu o fenômeno das facções e de toda a violência que isso implica. São Paulo é o maior exemplo disso. São 170 unidades prisionais e o resultado foi a consolidação do PCC no estado.  Conforme se constrói uma prisão, os nós dessa rede são expandidos para outros lugares a partir do sistema prisional. O próprio sistema penitenciário federal permitiu a nacionalização dessas facções. Mesmo com todas as restrições, é ali que o preso do Amazonas se encontra com o preso de Santa Catarina, com o do Pará. A gente precisa encontrar outro modelo de política pública, outro padrão de política de drogas. Não vejo nenhuma solução fora dessa perspectiva.

O PCC tem algum projeto de internacionalização de seus negócios? Há indícios de que a facção esteja trabalhando para entrar na disputa pelo mercado europeu?

O PCC tem hoje uma presença bastante intensa no Paraguai, na Bolívia e um pouco mais pontual no Peru, na Argentina e na Colômbia. Mas acho um equívoco considerar que o grupo teria condições de competir no mercado europeu. Pode até existir um ou outro membro que esteja lá, mas não com a estrutura da facção. A presença do PCC nos países vizinhos é mais para estar próximo aos fornecedores de drogas. O principal mercado do PCC é o brasileiro, não o vejo atuando em outros mercados de consumo.

Qual a diferença entre o PCC e os cartéis mexicanos ou a máfia italiana? O que aproxima o movimento dessas organizações?

Considero esses paralelos equivocados. A história, as bases sociais e a própria geografia do PCC é muito diferente da história, base social e geografia da máfia italiana. As máfias  estão entranhadas no Estado italiano, em todos os níveis da política e dos negócios. Apesar do crescimento dos últimos anos, o PCC ainda é uma organização de bandido comum. É claro que há alguns empresários vinculados, mas é tudo muito precário. A inserção na política também é muito pontual e geralmente está ligada à política mais local. O mesmo vale para os cartéis, que controlam toda a cadeia do tráfico, o volume de recursos é de outra magnitude. A ancoragem do PCC está na prisão. A extensão da facção está muito ligada à extensão da rede prisional. Essa é a sua força e sua fraqueza. Ao controlar a prisão, o grupo consegue tecer essa rede, mas isso também é um limite para a sua expansão.

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