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As polêmicas do novo Fies

Programa que fornece crédito para alunos conseguirem estudar em faculdades privadas está sendo reformulado

Ensino Superior: Congresso discute mudanças nas regras de financiamento do Fies (Mario Tama/Getty Images)
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Camila Almeida

Publicado em 14 de outubro de 2017 às 09h46.

Última atualização em 17 de setembro de 2021 às 14h01.

O Fundo de Financiamento Estudantil ( Fies ), que levou milhares de estudantes à faculdade e criou um rombo bilionário no caixa do governo, está sendo reformulado. Esta semana, foi aprovada por uma comissão mista do Congresso a MP 785/17, desenhada para reformular o programa de acesso ao ensino superior, que fornece crédito para alunos conseguirem estudar em faculdades privadas.

O Fies é marcado pela alta inadimplência, que fica em torno de 50%, segundo cálculos do governo. A camaradagem com as instituições de ensino, que não assumem nenhum risco em caso de falta de pagamentos, também é constante motivo de críticas.

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A ideia é resolver essas questões. Embora busque melhorar a equação financeira, o novo programa vem sendo criticado por continuar pouco arriscado para as instituições de ensino. No novo modelo, os bancos assumem boa parte do risco de crédito, mas também embarcam num mercado promissor, que é o financiamento estudantil. E os alunos passariam a pagar diretamente de seus salários, num formato que, segundo críticos, poderia até aumentar a informalidade. É uma solução polêmica para equacionar um programa que, em 2016, consumiu 32 bilhões de reais.

As mudanças

As principais mudanças têm a ver com a entrada dos bancos no financiamento, minimizando o risco de crédito para os cofres públicos, e a forma de cobrança, já que os estudantes vão passar a ter as parcelas descontadas em folha salarial assim que conseguirem um emprego. Para começar a valer em 2018, o Congresso precisa aprovar a medida até o dia 17 de novembro.

A Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (Seae) e o Tesouro Nacional divulgaram, em junho deste ano, um diagnóstico do programa, alertando para sua ausência de sustentabilidade fiscal. Criado em 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso, o Fies foi ampliado a partir de 2009.

Na época, o programa correspondia a 5% do total das matrículas na rede privada, e passou para 39% em 2015, segundo dados do Ministério da Educação. No período, foram firmadas 1 milhão de novas matrículas no ensino superior privado, mas o Fies garantiu 2,2 milhões de matrículas — o que significa que acabou financiando estudantes que já estavam cursando algum curso superior, minimizando o impacto em seu objetivo de ampliar o acesso ao ensino, de acordo com o relatório.

O Estado passou a financiar boa parte da rede de alunos das faculdades privadas, que passaram a ter a garantia de salas cheias e mensalidades pagas, sem uma cobrança meticulosa por qualidade, nem pela empregabilidade dos estudantes, e sem precisar arcar com riscos de crédito. Isso porque, da forma como o programa está desenhado, os cofres públicos é que pagam as mensalidades dos alunos, que só precisam pagar quando terminam o curso, num financiamento amigável, com juros subsidiados. Caso o aluno não pague, é o Estado quem arca sozinho com o prejuízo.

Uma premiada reportagem do jornal o Estado de S.Paulo, em 2015, intitulada “A farra do Fies”, mostrava que, entre 2010 e 2013, o número de matrículas pelo programa tinha subido 448%, enquanto o ritmo de matrículas no ensino superior privado tinha avançado apenas 13% — um sintoma de que as universidades estavam estimulando alunos que já tinham outras formas de bolsa ou financiamento a ingressarem no programa público, que lhes dava muito mais garantias. Esse fenômeno é denominado pelo governo como crowding out.

Os grandes grupos consolidadores, como define a consultoria Hoper Educação, são liderados pelas empresas Kroton e Estácio, que têm estratégias agressivas de expansão no território nacional — e chegaram a ter sua fusão rejeitada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) neste ano. Juntas, elas detêm 22% do mercado de ensino superior no país, e somam mais de 1,3 milhão de alunos matriculados.

O modelo não preza por educação de altíssima qualidade, mas por cursos acessíveis a estudantes de classe média, justamente o foco desses grupos. De acordo com dados do MEC compilados pela Hoper, em 2010, o programa correspondia a 25% do total de matrículas nos grupos consolidadores. Em 2015, praticamente metade dos alunos matriculados nessas redes já era beneficiário do Fies.

“O modelo do Fies foi ruim inclusive para as universidades privadas de excelência. É uma concorrência muito brutal contra esses grandes conglomerados”, diz o especialista em financiamento público de educação José Marcelino Rezende, professor da Faculdade de Educação da USP.

Em entrevista a EXAME, representantes da Seae e do Tesouro Nacional (detalhes ao final da reportagem) afirmaram que o redesenho do programa tem como principal objetivo reequilibrar as responsabilidades das diversas instituições envolvidas, muito mais do que reduzir os custos em si — que passaram de 1,9 bilhão de reais em 2009 para 32,3 bilhões de reais em 2016, levando em conta os juros subsidiados, as despesas financeiras e os custos com a inadimplência.

Por isso, o foco da mudança é a sustentabilidade do programa no longo prazo. A MP já estava com o texto pronto em julho, um mês depois da publicação do diagnóstico. Mas, segundo especialistas ouvidos por EXAME, o novo formato ainda parece distante de resolver os problemas do programa.

O crédito no novo Fies

O Fies agora é dividido em três categorias diferentes. A modalidade 1, que está sendo informalmente chamada de “Fies público” dentro do governo federal, oferece juro zero para estudantes que venham de famílias com renda familiar de até três salários mínimos mensais por pessoa, algo em torno de 2.800 reais. Numa família de quatro pessoas, a renda mensal precisa ter um teto de 11.200 reais. Esses estudantes não vão precisar de fiador, e suas mensalidades serão totalmente custeadas pela União, por meio do fundo garantidor do Fies, que terá aporte de 2 a 3 bilhões de reais do Tesouro num período de quatro anos. Serão 100.000 vagas nessa modalidade no próximo ano, caso a medida seja aprovada.

Mas a grande mudança acontece nos Fies 2 e 3, para estudantes de famílias com renda de até cinco salários por pessoa, ou 18.700 reais numa família de quatro pessoas. Nesses casos, o risco de crédito fica a cargo dos bancos, que passam a cobrar juros mais próximos do valor de mercado. A segunda modalidade é destinada para alunos do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, consideradas regiões prioritárias pelo governo, e vai contar com 150.000 vagas. Os recursos seguem sendo públicos, desta vez representados por fundos constitucionais e pelo BNDES.

Na modalidade três, entram alunos de todo o Brasil, e estarão disponíveis entre 60.000 e 80.000 vagas. O uso do FGTS no programa, como acontece com o habitacional Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, também está sendo discutido, mas a proposta enfrenta resistência dos parlamentares.

No atual modelo, os juros praticados eram de 3,4% ao ano (em 2016, a taxa Selic estava em 14,25% ao ano, e hoje, está em 8,25%) — valor baixo porque o governo era quem arcava com os riscos de crédito. Agora, nos Fies 2 e 3, como os bancos assumem os riscos, eles também participam da escolha dos clientes, que são os alunos que desejam financiar os estudos numa faculdade privada.

Por isso, os bancos poderão cobrar juros maiores e estabelecer regras mais rigorosas. “Os bancos farão exigências muito maiores para conceder financiamento. Na prática, isso restringe o acesso, porque o aluno que realmente precisa não vai conseguir entrar no programa por conta dessas exigências”, afirma Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES).

Mais responsabilidade para as faculdades

Outra grande diferença é a maior participação das instituições de ensino no modelo de financiamento. Para serem aceitas no programa, as faculdades sempre precisaram inserir dinheiro no fundo garantidor, mantido pelo Tesouro e pela Comissão de Concessão de Garantia, formada por representantes das faculdades e que responde por 6,25% da verba total do fundo. Essa parcela da concessão é cobrada das instituições de ensino, e pressupõe uma inadimplência de 10%. Agora, no novo modelo, quanto maior a inadimplência, maior será a parcela paga pela instituição, num montante que pode variar de 10% a 25%.

Se uma instituição estiver formando alunos que não pagam o Fies quando se formam, ela vai precisar pagar mais ao programa. “É uma forma de as instituições serem pressionadas a melhorarem a qualidade de seus cursos. Se elas se esforçarem para melhorar a colocação de seus alunos no mercado de trabalho, vão diminuir a inadimplência”, diz o deputado Alex Canziani (PTB-PR), relator da MP no Congresso.

As instituições, por sua vez, argumentam que essa lógica não faz sentido, porque elas não têm autonomia para escolher os alunos que entram em seus cursos pelo Fies e porque não têm capacidade técnica para avaliar o risco de crédito dos estudantes. “A instituição de ensino não escolhe o aluno. Não tem seleção nem por nota, nem por critérios financeiros. Se o aluno fica inadimplente, é a instituição quem tem que assumir?”, diz Caldas, da ABMES. Sobre a qualidade, a associação afirma que as instituições de ensino passam por avaliação do Ministério da Educação para ter o direito de acessar o programa.

Mas uma das principais críticas ao programa reside no fato de que as instituições continuarão com vantagens demais — afinal, a mensalidade estará na conta, caso o aluno pague ou não, e a vinculação ao programa reduz a evasão — e receberão cobranças de menos. “Os grandes grupos empresariais de educação só têm enriquecido às custas do Fies. E esse novo Fies vai continuar beneficiando essas instituições, sem resolver os problemas da qualidade”, diz a pesquisadora Vera Lúcia Jacob Chaves, Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior da Universidade Federal do Pará (UFPA).

No novo formato, o aluno é o principal afetado com o modelo de cobrança. Para garantir que o estudante formado vai pagar as parcelas que deve, o Fies vai descontar o valor diretamente da folha de pagamento, assim que ele conseguir um emprego, e o valor da parcela vai aumentar à medida que o salário aumenta. Questionados pela reportagem sobre um possível aumento na informalidade dentre os egressos do Fies — que podem escolher não trabalhar com carteira assinada para não terem de arcar com esses custos —, os representantes da Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae) e do Tesouro afirmaram acreditar que esse efeito não se reproduzirá, uma vez que, para o estudante, ainda valerá mais a pena ter um trabalho formal.

Além disso, disseram que está prevista uma parcela mínima, que deverá ser paga por todos os estudantes, empregados ou não. O governo também afirma que parte da inadimplência era devido à falhas de comunicação. “Muitas vezes, o estudante achava que estava ganhando uma bolsa, não fazendo um financiamento. Os detalhes do contrato, agora, serão repassados com mais clareza”, diz Aumara Feu, coordenadora-geral de estudos fiscais da Seae.

Que ensino queremos?

Um dos principais argumentos a favor do Fies é que o programa ajudou a democratizar o acesso ao ensino superior. Entre 2005 e 2015, o número de alunos matriculados nessa etapa escolar quase dobrou, subindo de 4,57 milhões para 8,03 milhões de alunos, segundo dados do MEC. O aumento se deve às bolsas do Fies e a outras iniciativas do governo, como a expansão das universidades públicas pelo Reuni e as bolsas em instituições privadas pelo Programa Universidade para Todos (Prouni). Aumentar o número de alunos no ensino superior está, inclusive, entre as metas do Plano Nacional de Educação, cujo objetivo era elevar a taxa da população entre 18 e 24 anos presentes no ensino superior para 33%, e 40% das novas matrículas deveria ser em instituições públicas.

Apesar de o Fies receber críticas por ter ofertado financiamento subsidiado a estudantes que poderiam acessar outros tipos de benefícios, um levantamento deste ano da ABMES mostrou que 83% dos formados com financiamento do Fies são oriundos de escolas públicas e 73% têm renda familiar mensal inferior a 4,5 salários mínimos.

Para especialistas, o foco do financiamento público deveria ser o estudante. A pesquisadora Helena Andery, da Faculdade de Educação da Unicamp, defende que o investimento no estudante que desejar fazer uma graduação numa faculdade privada poderia ser feito por meio de um voucher. “Esse voucher ajudaria o estudante a bancar sua mensalidade, e poderia estabelecer critérios mais rigorosos tanto de qualidade quanto de frequência, em vez de repassar o dinheiro diretamente para as instituições de ensino”, afirma Andery.

O novo Fies, porém, não se preocupa com questões como essa. “O novo formato do programa visa equalizar uma questão financeira para todos os atores do mercado, com foco no estudante que não tem condições de bancar os estudos. Esse entendimento se mantém”, afirma Felipe Bardella, coordenador geral de estudos econômico-fiscais do Tesouro Nacional. Porém, o governo salienta que a MP estabelece que é responsabilidade do MEC regulamentar os requisitos de adesão ao programa. “Isso é essencial na modelagem. O estudante precisa conseguir arrumar um emprego”, diz Bardella.

O foco do debate em torno da política pública continua sendo as operações financeiras, não a qualidade dos profissionais que estão sendo formados.

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*Concederam entrevista à reportagem, em 5 de outubro de 2017, por telefone e de forma coletiva, os seguintes representantes do governo federal:

Tesouro Nacional:

Felipe Bardella – coordenador geral de estudos econômico-fiscais
Carlos Renato Castro – gerente de estudos econômico-fiscais
Rodrigo Luz – auditor federal de finanças e controle

 

Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae):

Aumara Feu – coordenadora-geral de estudos fiscais
Jocifran Soares – coordenador de estudos fiscais
Rodrigo Moura – gerente de estudos fiscais

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