A filantropia como negócio
David Cohen O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, pode não estar muito convencido das agruras do aquecimento global, mas alguns de seus colegas bilionários encaram o assunto como prioridade pessoal. Em dezembro passado, uma dúzia deles, encabeçada por Bill Gates, co-fundador da Microsoft, criou o Breakthrough Energy Ventures, um fundo de investimentos de […]
Da Redação
Publicado em 9 de janeiro de 2017 às 12h10.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h32.
David Cohen
O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, pode não estar muito convencido das agruras do aquecimento global, mas alguns de seus colegas bilionários encaram o assunto como prioridade pessoal. Em dezembro passado, uma dúzia deles, encabeçada por Bill Gates, co-fundador da Microsoft, criou o Breakthrough Energy Ventures, um fundo de investimentos de 1 bilhão de dólares para promover avanços na produção de energia limpa.
O grupo inclui gente como Jeff Bezos, fundador da Amazon, Jack Ma, fundador do grupo chinês Alibaba, Richard Branson, do Grupo Virgin, John Arnold, um bilionário do negócio de gás natural, o príncipe Alwaleed bin Talal, um magnata saudita dono da firma de investimentos Kingdom Holding, Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York e CEO da Bloomberg, o megaempresário indiano Ratan Tata e Mark Zuckerberg, do Facebook.
“Nossa meta é construir companhias que vão ajudar a prover a próxima geração de energia confiável, barata e livre de emissões de poluentes”, disse Gates, no lançamento do fundo. A ideia nasceu em 2014, quando Gates reuniu o grupo de bilionários numa “coalizão para sair do impasse da energia”.
Segundo Gates, iniciativas como energia solar, usinas nucleares e carros elétricos serão insuficientes para resolver o problema do aquecimento global no curto prazo. É preciso encontrar uma solução radicalmente nova. O que era uma promessa de destinar uma significativa parte de suas fortunas para o desenvolvimento de energia limpa começou a tomar forma com o fundo.
Até alguns anos atrás, a busca de energias limpas era um objetivo de negócios que atraía vários fundos de investimentos. Mas os resultados não vieram na velocidade que os investidores esperavam e o dinheiro para financiamento começou a minguar. A solução foi recorrer à filantropia.
Caridade no século 21
Esta parece ser uma nova forma de filantropia. Cem anos atrás, os dois homens mais ricos dos Estados Unidos (e provavelmente do mundo), Andrew Carnegie e David Rockefeller, viviam uma espécie de competição informal para se tornar a pessoa que mais dinheiro distribuía para caridade.
Carnegie inaugurara uma filosofia que criou fortes raízes no capitalismo saxônico: “o homem que morre rico morre em desgraça”, escreveu. Para Rockefeller, acusado de tantas irregularidades na conquista de sua fortuna com petróleo, a caridade se tornou uma forma de redimir-se.
Não era um movimento incomum. O químico sueco Alfred Nobel, inventor da dinamite, irritado por ter sido chamado de “mercador da morte”, deixou a maior parte de sua fortuna para um trust incumbido de criar o prêmio que leva seu nome e que busca promover o avanço da paz e do progresso das ciências.
No século 21, o movimento filantrópico é menos um meio de compensação pela atuação ambiciosa no mundo dos negócios e mais uma extensão dos objetivos ambiciosos para outras áreas.
Bill Gates talvez seja o exemplo mais bem acabado. Sua contribuição para a revolução dos computadores pode ser contabilizada como uma benesse para o mundo, com aumento de produtividade e queda de barreiras na comunicação entre as pessoas. Ele achou que devia fazer mais, e criou uma fundação para expandir sua atuação – especialmente na área de saúde, provendo vacinas e tratamentos para doenças típicas de países pobres (como aids, poliomielite e tuberculose).
Se no século 20 a caridade era vista como algo alheio aos negócios (quando não seu contrário), no século 21 ela é, para parafrasear o estrategista militar Carl von Clausewitz, a continuação dos negócios por outros meios.
Alguns exemplos: Sara Blakely, fundadora das meias Spanx, devota fundos e energia para promover oportunidades para mulheres. Azim Premji, da consultoria indiana Wipro, quer mudar o sistema educacional do país. (Já deu 8 bilhões até agora). Jorge Paulo Lemann, a pessoa mais rica do Brasil, quer espalhar uma cultura empreendedora parecida com a que implementou em suas empresas e ajudar a resolver os gargalos da educação (com muito menos investimento financeiro, é verdade).
Sergey Brin, um dos fundadores do Google, investe milhões de dólares em pesquisas para tratamento do Mal de Parkinson – ele tem uma anomalia em um cromossomo que, acredita-se, está associada a um risco maior de desenvolver a doença.
Doar é poder
Não é apenas na destinação de recursos que a nova filantropia tem a ver com os negócios dos bilionários. É também na crença de que o terceiro setor precisa de uma gestão mais eficiente, “de resultados”, semelhante à lógica dos negócios.
É sintomático que Larry Page, o outro fundador do Google, tenha declarado em 2014 que preferiria doar seu dinheiro a Elon Musk, fundador de empresas que buscam avanços tecnológicos (como a Tesla, de carros elétricos, ou a SpaceX, para viagens espaciais), em vez de entregá-lo a fundações de caridade.
Um raciocínio similar está por trás da forma como Zuckerberg e sua mulher, Priscilla Chan, escolheram para doar 99% de sua fortuna ainda em vida. Em dezembro de 2015, o casal decidiu formar não uma fundação, mas uma sociedade anônima – seguindo o exemplo de Laurene Powell Jobs, a viúva de Steve Jobs.
Uma das vantagens é que a sociedade anônima preserva a capacidade do casal de investir politicamente, no setor lucrativo, com mais voz em como o dinheiro será gasto. Zuckerberg parece não querer repetir a experiência de 2010, quando doou 100 milhões de dólares ao sistema de ensino público de Newark para melhorar os resultados na educação. A maior parte do dinheiro foi consumida por consultores e no final das contas não houve melhora no ensino.
Sean Parker, o primeiro presidente do Facebook e co-fundador do Napster, dono de uma fortuna estimada em 3 bilhões de dólares, tem um instituto devotado à saúde, mas seu foco é experimentar ações diferentes das usuais no setor. Em vez de buscar descobertas fantásticas, ele foca em obter aprovações para drogas estudadas e levá-las ao mercado rapidamente.
O lado B da filantropia
Esse novo tipo de ativismo social dos bilionários não está isento de críticas. Quando ficou mundialmente famoso por seu livro sobre desigualdade, o economista francês Thomas Piketty foi convidado para uma conversa com Bill Gates. Conforme relatou em uma conferência em São Paulo em 2014, saiu do encontro sem se convencer de que o bom uso da fortuna de Gates justificava a sua possibilidade de acumulá-la.
Um argumento semelhante é feito por Chuck Collins e Hellen Flannery, do Instituto de Estudos Políticos, um centro de pesquisas americano fundado há mais de quatro décadas para defender causas progressistas.
Os dois afirmam que a renúncia fiscal vinculada à filantropia significa que a sociedade como um todo está subsidiando a caridade dos bilionários. Pelo menos 50% da verba que os ricos doam, segundo eles, deveria estar indo para os cofres públicos por meio de impostos.
Se, por um lado, o dinheiro que passa pelo governo costuma esbarrar nas ineficiências burocráticas, por outro lado a filantropia dá a poucos bilionários o poder de definir as prioridades de investimento.
Tome-se, por exemplo, o caso de Phil Knight, co-fundador da Nike. No ano passado, ele doou 500 milhões de dólares à Universidade de Ciências e Saúde do Oregon – mas apenas depois que a escola concordou em contribuir com a mesma quantia, destinada a recrutar centenas de cientistas para trabalhar na detecção precoce do câncer.
Este movimento é crescente nos Estados Unidos. Na década de 2003 a 2013, as doações acima de 10 milhões de dólares cresceram 104% – e as deduções de imposto por caridade de gente que ganha até 100.000 dólares por ano caíram 34%. Entre 1993 e 2015, o número de entidades filantrópicas estabelecidas por gente rica dobrou, para mais de 86.000, enquanto as doações de pessoas da classe média caíram cerca de 25% na última década, de acordo com estimativas.
Em suma, os bilionários estão avançando sobre o mercado de doações, que contabiliza mais de 370 bilhões de dólares nos Estados Unidos.
O risco, segundo Collins e Flannery, é que essa filantropia dos ricos representa uma ameaça ao setor não lucrativo independente, porque traz consigo a imprevisibilidade dos humores de um número pequeno de doadores. Mais: sujeita o setor a interesses e projetos particulares.
Isso já acontece, por exemplo, com as verbas destinadas às universidades. Os ricos fazem grandes doações que indiretamente asseguram a admissão de seus filhos. (Em boa parte dos casos, essas doações ainda podem ser deduzidas do imposto devido.)
Pior, dizem os dois pesquisadores, é quando doadores ricos financiam centros de estudos destinados a promover seus interesses políticos, seja de corte de impostos, desregulamentações ou oposição a leis para frear as mudanças climáticas – algo que a jornalista Jane Mayer chamou de “filantropia armada”.
O lado A da filantropia
Apesar da contundência das críticas, é difícil negar que a filantropia faça mais bem do que mal. Bill Gates serve novamente como um exemplo. Suas iniciativas são voltadas a compensar um viés da indústria farmacêutica, de focar na cura das doenças que afetam os ricos – porque são quem pode pagar pelos remédios.
É claro que a isenção de impostos e, a complementá-la, uma taxação pesada sobre a herança, incentivam os bilionários a criar fundações.
O exemplo negativo mais falado nos últimos meses é Donald Trump, acusado de usar suas instituições de caridade para chegar a acordos extrajudiciais envolvendo suas empresas. É também um caso peculiar, de uma fundação que coleta e distribui dinheiro de outras pessoas – Trump declarou não ter dado dinheiro à sua fundação.
Mas Trump não é a norma. Para a maioria dos bilionários filantropos, não se pode menosprezar o fator cultural. Desde Andrew Carnegie, tornou-se vergonhoso, nos Estados Unidos, enriquecer e não retribuir à sociedade as oportunidades que a pessoa teve.
Nos últimos anos, esse sentimento tem se fortalecido (no Brasil, a prática começa a ganhar força, mas em escala muito menor). A ideia prevalente agora é de doar em vida. Em 2010, o megainvestidor Warren Buffett e seus sócios em filantropia, o casal Bill e Melinda Gates, criaram o Giving Pledge (promessa de doação), um convite aos bilionários do mundo inteiro para que se comprometam a doar mais da metade de suas fortunas a causas de caridade, ainda em vida ou pelo menos em seus testamentos. O site tem hoje 156 signatários (indivíduos ou casais).