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A falência das UPPs

A reformulação vem em um momento de questionamento da eficácia do modelo e de aumento dos índices de violência na capital fluminense

FAVELA DA MARÉ: Policiais fazem abordagem em meio à operação realizada às vésperas da Copa do Mundo, em 2014; especialistas apontam que, naquele momento, já havia indícios de falência do modelo de UPP  / Mario Tama/Getty Images

FAVELA DA MARÉ: Policiais fazem abordagem em meio à operação realizada às vésperas da Copa do Mundo, em 2014; especialistas apontam que, naquele momento, já havia indícios de falência do modelo de UPP / Mario Tama/Getty Images

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Da Redação

Publicado em 1 de julho de 2017 às 08h35.

Última atualização em 3 de julho de 2017 às 10h59.

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro já não têm mais serventia. Após quase dez anos de projeto, começam agora a passar por mudanças drásticas. Recentemente, policiais das unidades dos morros da Grande Tijuca começaram a patrulhar também o asfalto, em um reforço ao batalhão de polícia militar que opera na região. Em abril, no Complexo do Alemão, foi instalada uma torre blindada de seis metros de altura, resistente a explosões de granadas e tiros de fuzis, para abrigar policiais da UPP da comunidade Nova Brasília. Segundo o jornal O Globo, as duas medidas fazem parte do plano de reformulação das UPPs, que ainda não foi concluído e nem apresentado pelo governo. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do estado, estão em estudo medidas que possibilitem que outros órgãos públicos e a iniciativa privada atendam às demandas das comunidades.

A reformulação vem em um momento de questionamento da eficácia do modelo e de aumento dos índices de violência na capital fluminense, que tem vivido dias de horror com ônibus queimados, caminhões incendiados e tiroteios, que interrompem as atividades de escolas e creches nas áreas mais violentas. A plataforma digital colaborativa Fogo Cruzado, lançada há cerca de um ano, já contabilizou mais de 4.000 trocas de tiros, o equivalente a, em média, 13 tiroteios por dia, segundo reportagem da revista piauí.

O Rio não via tantos crimes com morte violenta desde 2009, primeiro ano de funcionamento das UPPs. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), ligado ao governo estadual, foram 37,6 casos por 100.000 habitantes – um total de 6.248 ocorrências – em 2016, a maior taxa em sete anos. E a situação só está piorando. No primeiro trimestre deste ano, a letalidade violenta aumentou 26% em relação ao mesmo período de 2016 e as mortes em operações policiais, 85%. Somente na semana da operação para instalar a torre blindada no Alemão, cinco pessoas morreram.

Com o retorno de grupos armados às comunidades com UPPs, a avaliação de pesquisadores ouvidos por Exame Hoje é de que o projeto que por anos conseguiu reduzir os índices de criminalidade violenta está em pleno colapso. Mas o que levou ao atual esgotamento das UPPs?

O nascimento das UPPs

Não é de hoje que grupos armados controlam vastas áreas urbanas no Rio de Janeiro, impedindo o acesso da polícia e do poder público. Foi na década de 1980 que o varejo do tráfico de drogas na cidade se organizou, a partir do controle territorial das favelas, gerando disputas entre os próprios grupos armados e com a polícia. A intervenção do estado baseava-se em um modelo militar de invasões periódicas dos territórios na tentativa de recuperá-los. O resultado eram índices de mortes cometidas por policiais sem precedentes e um aumento exponencial das taxas de homicídio, que chegaram a figurar entre as piores do país.

“O estado abraçava o modelo da guerra às drogas, a guerra ao crime baseado em incursões muito violentas, que matavam muitas pessoas”, afirma o sociólogo e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Uerj Ignacio Cano. Junto com as invasões, o Rio chegou a testar alguns modelos de policiamento alternativo, como o Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais, mais conhecido como GPAE, implementado em 2000 e que, segundo Cano, nunca chegou a sair de uma fase mais experimental por falta de investimentos e apoio interno e externo.

Em dezembro de 2008, durante o primeiro mandato de Sérgio Cabral como governador (ele seria reeleito em 2010) e sob o comando do então secretário de Segurança Pública, José Beltrame, foi instalada a primeira UPP no morro de Santa Marta, em Botafogo. A proposta era nova: em vez de os policiais entrarem periodicamente, eles ficariam instalados dentro da comunidade e fariam um policiamento inspirado nos princípios da polícia comunitária ou de proximidade, fundamentados na presença constante e proatividade dos policiais e na descentralização da resolução de conflitos.

A partir da experiência piloto em Santa Marta, o programa foi definitivamente lançado no ano seguinte, com a previsão da instalação de 40 unidades visando dois objetivos centrais: recuperar os territórios sob domínio de grupos criminosos armados e acabar com os confrontos armados. O projeto das UPPs também almejava aumentar o investimento público e privado nas comunidades para melhorar a infra-estrutura e os serviços urbanos e aumentar as oportunidades de emprego. Naquele ano, mais quatro unidades foram instaladas, duas na Zona Sul e duas na Zona Oeste. O processo consistia em, primeiro, realizar uma operação militar para a retirada das armas e implementação da unidade, e, depois, seguir com um policiamento de proximidade.

Com a melhora dos índices de violência nas comunidades com UPP e pesquisas indicando a aprovação de moradores, o projeto passou a ser amplamente aceito e visto com entusiasmo tanto pela sociedade civil quanto pela imprensa. Em 2009, quando o Rio foi escolhido para sediar os Jogos Olímpicos, realizados em 2016, o programa ganhou visibilidade nacional e internacional e se tornou o carro-chefe da política de segurança pública do estado.

De lá para cá, mais 33 unidades foram instaladas, totalizando, atualmente, 38 unidades (sendo somente uma delas fora da capital, na Baixada Fluminense, região campeã de homicídios do Rio de Janeiro), que contam com a atuação de 9.453 homens, cerca de 19% do efetivo total da PM no estado.

Por anos, a tática funcionou bem – com mais ou menos sucesso a depender da comunidade. Segundo dados do ISP, entre 2007 (ano anterior à instalação da primeira UPP) e 2013, a taxa de letalidade violenta nas áreas com UPPs chegou a cair 80% – uma redução bem mais acentuada do que a do restante do município, que também experienciou uma queda desses índices durante o período. A taxa de homicídio causado por oposição à intervenção policial foi o indicador de violência que apresentou uma redução mais significativa, de quase 90%, mas também diminuíram outros crimes contra a vida e o patrimônio. Os conflitos armados cessaram ou diminuíram drasticamente e, em algumas comunidades, a relação entre policiais e moradores melhorou a ponto de policiais relatarem, no estudo “Os Donos do Morro: Uma Avaliação Exploratória do Impacto das UPPs no Rio de Janeiro” (2012), do Fórum de Segurança Pública em parceria com o LAV, que levavam seus familiares para conhecer o local onde trabalhavam e participarem de festas da comunidade. Em 2014, no entanto, os indicadores de letalidade violenta voltaram a subir não só nas áreas de UPP, mas em todo município. Hoje os números já são praticamente os mesmos do período pré-UPP.

Os indícios de que o colapso estava por vir já começaram a aparecer há algum tempo. Segundo Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes, na última pesquisa do centro realizada em 2014 com os policiais das UPPs, os pesquisadores já haviam constatado um abandono completo da abordagem de proximidade e o retorno do policiamento repressivo. “A situação agora é de colapso total, porque verificamos a presença de grupos armados em todas as comunidades com UPPs. E essa era a característica mais definidora do projeto, ele foi criado justamente para desarmar essas áreas”, diz Ramos.

Cadê Amarildo?

O desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza, de 42 anos e morador da Rocinha, foi o início do fim da UPP. Em 2013, ele foi levado por policiais militares para prestar esclarecimentos na sede da UPP da Rocinha e nunca mais foi visto. Desde então, o projeto perdeu definitivamente o apoio da opinião pública, os ataques pontuais contra às unidades voltaram a aumentar, assim como os casos de desacato, e os policiais “tornaram-se menos pró-ativos, mais violentos e as comunidades mais relutantes em trabalhar com a polícia, preferindo fazer justiça com as próprias mãos”, diz Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé.

Robson Rodrigues, ex-coronel da PM e ex-comandante da Coordenadoria de Unidades de Polícia Pacificadora e do Estado Maior Administrativo da Polícia Militar do Rio, define o processo como o retorno a um ciclo vicioso de violência. Ele explica que o policiamento de proximidade depende da confiança estabelecida com os moradores da comunidade. “Duas coisas são básicas para acabar com a credibilidade do policial: violência e corrupção. Quando há atos de violência e de corrupção, e eles não são respondidos de forma rápida, perde-se o diálogo. Sem diálogo, não há credibilidade, sem credibilidade não há confiança, sem confiança, voltam os confrontos, as más práticas da polícia e as trocas de tiro”, afirma o ex-coronel.

O Cesec, que realizou pesquisas a cada dois anos com os policiais das UPPs entre 2010 e 2014, verificou que a mudança de abordagem durou pouco. “Todo mundo tinha a ideia de que a UPP, que tem 9.000 policiais, ia contaminar o resto da PM. Mas o que verificamos foi o contrário: uma incorporação pelos policiais das UPPs da lógica autoritária, militarista, que trata os moradores como suspeitos, como cúmplices do tráfico”, diz Silvia Ramos.

O que deu errado 

A falta de formalização do programa e de estabelecimento de indicadores de avaliação também foi um problema, dizem os pesquisadores. As UPPs nunca tiveram uma avaliação interna e sistemática, para além da divulgação dos casos de letalidade violenta — que o ISP é obrigado a divulgar por lei —, e as unidades não foram analisadas caso a caso. “Não foram feitos investimentos em tecnologia, mas quando eu era comandante, construímos indicadores provisórios para verificar quais áreas tinham mais conflagração. A mais problemática no Alemão era Nova Brasília. Lá nunca funcionou realmente como UPP, então precisava ter sido revista”, conta Rodrigues, que destaca a falta de revisão como um dos principais erros do projeto.

O movimento foi expandido de forma “desenfreada” e “a toque de caixa”. Entre 2010 e 2013, o número de UPPs quase triplicou, saltando de 13 para 36. Na avaliação de Pedro Strozenberg, que foi membro dos conselhos Nacional e Estadual de Segurança Pública e hoje é ouvidor externo da Defensoria Pública do RJ, a política de UPP trouxe importantes contribuições para a agenda de segurança pública, mas não conseguiu deixar um legado. “Foi uma política inconclusiva, que deixou incompleto um processo de mais avaliação e monitoramento, e fez uma escolha por expansão e não por aprimoramento”, afirma.

A expansão exagerada também acabou por sobrecarregar a Polícia Militar, uma instituição que, segundo Rodrigues, ex-coronel da PM, já precisava (e ainda precisa) de reformas estruturais. “Para ter pacificação, precisa ter todo o sistema junto, uma articulação institucional muito forte. Exigiu-se demais das estruturas anacrônicas e militarizadas de uma corporação que há muito tempo precisa ser modernizada e não foi. Tudo isso fez falta nos momentos mais adiante”, diz Rodrigues.

O grande investimento das UPPs foi em policiamento ostensivo, com a presença de muitos policiais para garantir a segurança das áreas, o que torna a política extremamente custosa, inviabilizando sua aplicação em todo o território. Em 2012, segundo dados da Secretaria de Estado de Segurança (Seseg) do Rio de Janeiro, para cada 100 policiais (quantidade mínima que toda unidade deveria ter) atuando nas UPPs, o custo anual era de aproximadamente 6 milhões de reais.

Na avaliação dos especialistas, faltou investir também em programas sociais integrados – a UPP Social, por exemplo, que visava atrair investimentos para essas áreas e era vista como um ponto fundamental desde a elaboração do projeto, nunca decolou – e em inteligência e investigação, que permitem um uso mais direcionado da força policial para desestruturar grandes operações, acompanhar de perto o nível de influência que os traficantes presos continuavam a exercer e analisar o surgimento de novas dinâmicas, já que o crime é capaz de se adaptar. “As UPPs comprovaram uma tese de segurança pública de que se fala há muito tempo, a de que o policiamento ostensivo perde força depois de um certo período. Se não tem atividade de inteligência, de investigação – para saber quando vai entrar fuzil, quando vai entrar droga – o policial fica ali na ponta final só levando tiro. A única coisa que a polícia pode fazer, e os criminosos não podem, é investigar”, diz Ramos.

A segurança em tempos de crise

A todos esses fatores, combinam-se ainda as crises financeira e institucional pelas quais passa o Rio de Janeiro e que só acentuam os problemas já existentes na política das UPPs. O Estado está afundado em um déficit bilionário e sem dinheiro para pagar servidores públicos, que, no final do mês de junho, ainda não haviam recebido cerca de 20% da folha salarial de abril, nem o décimo terceiro salário atrasado. Policiais também ainda não receberam pagamento por atingirem metas ou pelo trabalho adicional na Olimpíada, e 4.000 PMs já aprovados em concurso ainda não foram contratados por falta de recursos.

“Os primeiros grandes cortes na secretaria de Segurança Pública aconteceram em 2016 [o orçamento foi cortado em 32%] e continuaram em 2017. Há pressões orçamentárias tremendas, e demandas irrealistas na polícia. Como resultado, o sistema de metas foi abandonado e a moral da polícia está num nível baixo histórico”, explica Muggah, do Igarapé. O sistema de metas foi um programa que buscava uma maior integração por parte das polícias civis e militares por meio de bonificações aos policiais de áreas onde as taxas de criminalidade tivessem caído. A iniciativa foi apontada pelos pesquisadores ouvidos pela reportagem como um dos principais fatores para a queda nos índices de letalidade no município.

Soma-se à falta de dinheiro, a falta de legitimidade da administração do estado. Sérgio Cabral, que foi governador do Rio até 2014, está preso desde o ano passado e, recentemente, foi condenado pelo juiz Sergio Moro a 14 anos e dois meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Na sentença, Moro elencou a cobrança sistemática de propinas pelo ex-governador e seus associados como um dos fatores responsáveis pela atual financeira do governo fluminense.

Jogar a culpa somente na crise financeira não é a resposta, afinal ela apenas acentuou problemas já existentes, dizem os especialistas. A exemplo da cidade colombiana de Medellín, que já foi uma das mais letais do mundo e hoje tem a menor taxa de homicídios dos últimos 12 anos, é preciso investir em ações integradas de cidade e na investigação e inteligência policial, além de voltar ao modelo de policiamento de proximidade, que se provou eficaz nas UPPs para reduzir a letalidade violenta e acabar com o confrontos armados.

A política do governo do estado, porém, está indo no sentido contrário, investindo em torres blindadas, isoladas — antítese perfeito do policiamento comunitário. “É a ideia de que o que vence é a força, quando o Rio já tem 30 anos de experiência de que a força, com esse tipo de crime, não vence. Porque quando o traficante atira no policial e o policial atira de volta quem venceu foi o tráfico”, diz Ramos. O sangue continua a escorrer morro abaixo.

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