ROBÔ EM FEIRA DE TECNOLOGIA: afinal, quais os riscos de substituir a inteligência humana pela artificial? / Sean Gallup/ Getty Images
Da Redação
Publicado em 29 de julho de 2016 às 20h12.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h32.
David Cohen
No último dia de junho, o carro do americano Joshua David Brown foi atingido de lado por um caminhão que atravessava a pista para entrar numa rodovia secundária, no norte da Flórida. Brown morreu na hora. Há sinais de que ele assistia a um vídeo de Harry Potter em um DVD portátil no carro enquanto estava ao volante. Mesmo assim, o acidente poderia ter sido evitado. O carro, um modelo S da montadora Tesla, estava no piloto automático — uma tecnologia experimental que permite que o automóvel se dirija sozinho.
A Tesla frisou que esse foi o primeiro acidente fatal em mais de 130 milhões de milhas com o piloto automático ligado. A média nos Estados Unidos é de uma morte a cada 94 milhões de milhas (150 milhões de quilômetros) conduzidas por humanos. A comparação não é exata: o piloto automático é usado primordialmente em rodovias, onde a proporção de acidentes com direção humana também é menor. De qualquer modo, o acidente foi visto como um lembrete dos riscos de substituir a inteligência humana pela artificial.
Essa parece ser a discussão do momento em tecnologia. Nos últimos seis anos, o setor de inteligência artificial (IA) atraiu investimentos de mais de 18 bilhões de dólares em 322 companhias, segundo a empresa de análises Quid. A demanda por talentos é tão forte que o salário de um Ph.D. em IA no Vale do Silício, na Califórnia, chega a 400.000 dólares por ano.
Google, Yahoo, Intel, Dropbox, Twitter foram algumas das empresas que compraram startups de inteligência artificial nos últimos dois anos. Facebook, Baidu, Microsoft e IBM também estão investindo pesadamente em pesquisa. Todas querem assumir a dianteira na corrida pela “internet das coisas”, a promessa de que objetos conectados à rede vão interagir conosco e transformar o mundo.
A IA avança com uma onda de automação jamais vista, tanto em quantidade como em qualidade. Alguns exemplos:
Os dois lados da moeda virtual
Todos esses avanços projetam uma vida mais fácil para consumidores e clientes. Teremos mais e melhores produtos e serviços à disposição. O outro lado da moeda é que os robôs podem roubar nosso emprego.
A tecnologia sempre provocou desocupação, porém historicamente criou mais empregos do que eliminou. Em sua grande maioria, as funções que desempenhamos hoje, numa sociedade de serviços, nem sequer podiam ser imaginadas há dois séculos, quando a agricultura respondia por 90% do mercado de trabalho.
O problema é que as pessoas que exercem as novas atividades não costumam ser as mesmas que perderam o emprego. Por isso, os investimentos em educação são cruciais: trata-se de preparar a população para as exigências do futuro.
É o que faz a China, por exemplo. Seu crescimento foi baseado em grande parte em mão de obra barata, liberada do interior. Com o enriquecimento do país, os salários começaram a subir e as empresas passaram a investir em mecanização.
Até o final do ano, a China deve ultrapassar o Japão como o maior operador de robôs industriais, segundo a Federação Internacional de Robótica (IFR, na sigla em inglês). Em termos proporcionais, ela ainda está longe dos primeiros da fila. A China tem hoje, de acordo com a IFR, 36 robôs para cada 10.000 trabalhadores. A Alemanha tem 292; o Japão, 314; e a Coreia do Sul, campeã, tem 478.
O Brasil está muito atrás: tem apenas 9 robôs por 10.000 trabalhadores. A IFR prevê que a taxa dobre até o final de 2017. Alguns empresários brasileiros dizem que a automação vale a pena, mas outros investimentos dão retorno melhor. Isso tende a mudar. Segundo o Boston Consulting Group, o preço dos robôs industriais e do software para operá-los deve cair 20% na próxima década, enquanto seu desempenho deve melhorar 5% a cada ano.
Adeus, empregos?
O lado bom dessa história: os escândalos sobre trabalho escravo ou desumano devem sumir dos meios de comunicação. O lado ruim: é possível que todo subemprego se torne desemprego.
Por isso a China, ao mesmo tempo que se automatiza, investe pesadamente em educação — dando mais recursos a suas universidades e enviando estudantes em quantidades recordes para estudar no Ocidente.
Segundo os pessimistas, porém, essa receita clássica de preparar as pessoas para os trabalhos do futuro vai deixar de funcionar. Seu argumento é que os robôs, que até agora foram empregados em trabalhos pesados e rotineiros, estão avançando em setores de serviços mais elaborados, como dirigir carros, preparar textos, aconselhar vendas.
No ano passado, a consultoria McKinsey previu que 45% das atividades hoje realizadas por trabalhadores humanos serão automatizadas. Uma estimativa da empresa de pesquisas Gartner é que, até 2030, as máquinas vão substituir 90% de todos os empregos humanos.
Para os otimistas, esses empregos destruídos são uma benesse, não um problema. “Se a gente fizesse conexões de telefonemas do mesmo modo que no meio do século 20, precisaria de 200 milhões de telefonistas só para ligar os fios”, diz Claudio Pinhanez, pesquisador na área de computação cognitiva da IBM em São Paulo.
Esse setor foi criado na IBM do Brasil há cinco anos, com a meta de contratar 100 pesquisadores. “Não posso dizer qual o tamanho do nosso setor de pesquisas hoje, mas posso afirmar que já atingimos aquela meta”, diz Pinhanez.
O tipo de projeto em que ele trabalha tem como foco justamente a automação de tarefas realizadas por seres humanos. Baseia-se na tecnologia do robô Watson, seu sistema de computação cognitiva. O Watson ficou famoso em 2011, quando venceu uma competição de adivinhações, o Jeopardy, contra dois ex-campeões humanos.
Algumas más línguas afirmam que o Watson é uma enorme solução à procura de um problema. O fato é que a IBM tem achado problemas — a ponto de, em 2015, ter definido que a visão estratégia da empresa era estar pronta para a “era da computação cognitiva”. Traduzindo: um computador que tem capacidade de “aprender”, interpretando e incorporando respostas com base nas interações com o ambiente.
Uma tecnologia assim é especialmente útil no auxílio à tomada de decisões em situações complexas. Um exemplo: com dois programas do Watson — um que analisa a personalidade de uma pessoa com base em sua redação e outro que avalia prós e contras de ambientes com muitas variáveis — a IBM criou o NYC School Finder, um serviço que ajuda a encontrar a escola ideal para a criança, de acordo com seu estilo e o perfil da instituição.
No Brasil, a IBM fechou no ano passado um projeto para usar a computação cognitiva no call center do Bradesco. Em abril deste ano, a startup me casei.com lançou um aplicativo que ajuda os noivos a planejar seu casamento, conversando com eles para entender suas necessidades.
O mais novo projeto de Pinhanez é um sistema que ajuda as pessoas a investir. Nesse caso, não se trata de substituir o gerente do banco, e sim de preencher a lacuna de serviços criada com o encolhimento de mão de obra que já ocorreu.
“Ainda estamos em fase experimental”, diz Pinhanez. “Mas temos tido boa recepção. As pessoas às vezes têm vergonha de perguntar coisas para o gerente, e para o sistema elas não têm.” A máquina conversa “na linguagem dos clientes”, especialmente de classe média baixa, muitas vezes desatendidos pelo sistema financeiro. “A entrada de tanta gente no mercado formal criou uma demanda por serviços que não haveria profissionais suficientes para atender”, diz Pinhanez.
Singularidade x simbiose
Há basicamente duas posições sobre inteligência artificial. A primeira, dos que temem a automação, baseia-se na singularidade. Em física, o termo denota um ponto a partir do qual o comportamento futuro não pode ser previsto (um buraco negro, por exemplo). Em computação, o termo passou a significar o momento em que a inteligência artificial será capaz de criar máquinas mais inteligentes do que ela própria — portanto, em algum momento essa inteligência seria maior do que a dos humanos.
O físico mais conhecido da atualidade, Stephen Hawking, considera esse um grande perigo. “O desenvolvimento da inteligência artificial completa pode significar o fim da raça humana”, disse.
Esse temor foi aguçado em março, quando o sistema computacional Alpha Go, do Google, venceu por 4 a 1 o sul-coreano Lee Se-dol, campeão de Go. Em 1997, um computador da IBM, o Deep Blue, já havia vencido o campeão de xadrez, Garry Kasparov. Mas o Deep Blue usava uma estratégia de “força bruta”: havia sido alimentado com todas as partidas de grandes mestres e era capaz de avaliar 200 milhões de posições por segundo. O Alpha Go usa o deep learning, um sistema que evolui a partir das interações, como o do Watson, e “aprendeu” a reconhecer movimentos interessantes jogando contra si próprio inúmeras vezes.
O jogo de Go, originário da Ásia, sempre foi considerado um desafio para as máquinas por causa de sua complexidade. Enquanto o xadrez tem cerca de 35 movimentos possíveis a cada jogada, o Go tem 250. Se a inteligência artificial chegou ao ponto de dominar o Go, é sinal de que em breve vai nos ultrapassar em todas as atividades, certo? Mais ou menos.
Segundo Gary Marcus, professor de psicologia da Universidade de Nova York e fundador da empresa Geometric Intelligence, há muita espuma nessa onda de inteligência artificial. “Hoje as pessoas falam que estão envolvidas com IA, quando há dois anos diriam que fazem estatística”, escreveu em um artigo no site Edge.
O progresso atual, para ele, deve-se à evolução do poder computacional e ao volume exuberante de dados agora disponíveis com a chegada da era digital. Nos anos 50 e 60, os cientistas buscavam modelos que explicassem o mundo. Hoje, os sistemas memorizam parâmetros, mas não entendem as interações. “Para um psicólogo, um gato é um tipo particular de animal que emite um tipo particular de som e participa da nossa vida de um modo particular”, escreveu. “Para um computador deep learner, ele é um conjunto de pixels e uma imagem.”
Isso leva à segunda posição sobre IA. Não é que seremos trocados por computadores, seremos combinados a eles. “Muita gente tem medo da substituição das pessoas por máquinas”, diz Peter Thiel, um dos fundadores do PayPal, no livro De Zero a Um. “Mas as melhores oportunidades estão na cooperação entre gente e máquina. Daí vêm os projetos de big data para lidar com grandes montanhas de informação — mas com gente para analisar as que restam.”
Um dos projetos de Pinhanez, da IBM, é a análise de dados os mais diversos para prever se vale a pena perfurar um poço de petróleo. “O sistema avalia 5.000 papers, de resultados de exames de gás e análises de mercado a comparações com outros poços, e fornece os dois ou três que o pesquisar deve ler”, diz.
A máquina não está tomando o lugar de 200 pesquisadores (ou estagiários). Está criando oportunidades — e potencialmente mais empregos. Um dos projetos de alunos orientados por Marcelo Finger, pesquisador de inteligência artificial no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP), é um sistema para analisar decisões judiciais no emaranhado de casos de variadas instâncias e regiões. “Isso não vai eliminar o trabalho humano”, diz Finger. “Ao contrário, vai dar muito mais trabalho, porque vai fornecer muito mais material para pesquisa e análise.”
O próprio xadrez, em que o homem foi batido pela máquina, é um exemplo de cooperação. Depois que foi derrotado, Kasparov percebeu que poderia ter se dado melhor se tivesse acesso à gigantesca base de dados que o Deep Blue tinha. Então foi um pioneiro do conceito de partidas que combinam a força do ser humano com a força da máquina. Hoje esses torneios são chamados de partidas de xadrez estilo livre, algo como o MMA para as artes marciais.
Você pode concorrer como máquina, como homem ou como centauro, um misto. No campeonato de 2014, as máquinas ganharam 42 vezes. Os centauros, 53. O melhor jogador do mundo é um centauro, Intagrand, uma equipe de vários humanos que usam diversos programas.
Além disso, as máquinas melhoraram o xadrez. Hoje há mais que o dobro de grandes mestres no mundo do que quando o Deep Blue bateu Kasparov. Magnus Carlsen, o campeão mundial entre os humanos, treinou com computadores e é considerado o jogador mais parecido com uma máquina que existe. É também o que tem a maior pontuação de um grande mestre de todos os tempos.
Ainda não deu tempo de acontecer isso com o Go. Mas o interesse pelo jogo já cresceu. Segundo uma loja online da Coreia do Sul, a venda de produtos relacionados ao jogo quintuplicou em relação ao ano passado.
O próximo desafio para as máquinas é um jogo ainda mais complexo do que o Go: o futebol. Desde a década de 90, times do mundo todo enfrentam-se na RoboCup em várias categorias — de robôs humanoides a máquinas esquisitas. A ideia é que, até 2050, um time de robôs consiga vencer a equipe humana campeã do mundo.
Quer as máquinas evoluam a ponto de vencer os humanos, quer fiquem aquém, uma coisa parece difícil de mudar: na competição principal, de robôs de 60 centímetros de altura, neste ano a seleção alemã se sagrou campeã, nos pênaltis, contra a equipe dos Estados Unidos. O melhor resultado do Brasil foi no juvenil. Representado por uma equipe de um colégio de Recife, o país ficou com um honroso oitavo lugar.