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A vez do rádio

Depois da TV, agora é o rádio que inicia a transição do sistema analógico para o digital - o que é uma questão de sobrevivência para o setor

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 12h38.

"É... é incrível", balbuciou o repórter durante uma transmissão de rádio da Mercury Theater. "Os olhos são negros e reluzentes como os de uma serpente. A boca tem forma de V, com saliva escorrendo por seus lábios... não consigo encontrar palavras." Em 30 de outubro de 1938, cerca de 6 milhões de pessoas em Nova York e nas proximidades escutaram uma detalhada descrição de marcianos que invadiam a Terra.

Muitos só sintonizaram o programa após as explicações iniciais de que se tratava de uma adaptação de Orson Welles para o clássico livro A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, narrado na forma de boletim noticioso para obter um tom realista. O resultado foi muito além do que Welles poderia esperar. Quase 2 milhões de ouvintes, segundo pesquisas feitas na época, acreditaram na história e entraram em pânico. Foi um dos maiores casos de histeria coletiva de que se tem registro. A confusão foi logo desfeita, mas o incidente deixou uma lição valiosa sobre a força do rádio como meio de comunicação. Claro, naquela época ainda não havia internet, satélites ou TV a cabo. A BBC de Londres apenas iniciava as transmissões regulares de televisão aberta. A situação hoje é muito diferente. O rádio segue sendo um veículo de massa, mas sua audiência, influência e as receitas publicitárias foram corroídas pela concorrência com outros meios de comunicação. Para reverter esse declínio, os empresários do setor precisam se modernizar. A boa notícia é que o caminho para isso já é conhecido: abandonar o velho sistema analógico e entrar de vez na era digital. A notícia menos auspiciosa é que essa mudança requer investimentos de peso e um trabalho complexo, que envolve desde a adoção de novos equipamentos pelas empresas da área até a substituição dos aparelhos receptores dos consumidores.

No Brasil, a transição foi deflagrada em agosto do ano passado, quando o governo deu sinal verde para que as emissoras interessadas iniciassem testes com transmissão digital. Para se ter uma idéia da importância do tema, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) estima que os 3,8 mil radiodifusores espalhados pelo país alocarão 450 milhões de dólares no processo de digitalização dentro dos próximos cinco a dez anos. É muito dinheiro para um setor que movimenta 300 milhões de dólares por ano. "Se não fizermos isso, dificilmente manteremos o nível de faturamento atual. É uma questão de sobrevivência", diz Daniel Pimentel Slaviero, presidente da Abert. Para promover a nova tecnologia, os radiodifusores e fabricantes de aparelhos de transmissão e recepção reuniram-se em São Paulo no dia 24 de agosto, um ano após a liberação dos testes, e criaram a Aliança Brasileira para o Rádio Digital, seguindo o exemplo da associação americana HD Digital Radio Alliance, que no início do ano angariou 200 milhões de dólares em espaço publicitário para promover a rádio digital.

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Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, contudo, o mercado brasileiro ainda precisa dar um passo decisivo: escolher o padrão de rádio digital que será adotado. Há várias tecnologias disponíveis, como a americana (Iboc), a japonesa (Nisdb-t) e a européia (DRM). Para quem acompanhou os bastidores da guerra travada para definir o sistema de televisão digital (venceu o japonês), isso soa familiar. Assim como ocorreu com a TV, o governo precisa definir e homologar uma das alternativas - o que até agora não tem prazo para ocorrer. Mas o rádio parece caminhar com mais tranqüilidade para um consenso. O padrão da empresa americana iBiquity, o Iboc, está sendo testado por 15 emissoras e é o preferido dos empresários. Apenas a estatal Radiobrás experimentou o sistema europeu e ninguém iniciou estudos com o japonês.

Alguns fatores explicam a predileção pela tecnologia americana. O mais importante deles é o custo para os radiodifusores e ouvintes. Digitalizar uma estação com Iboc demanda investimentos de 50 mil dólares a 200 mil dólares, dependendo do tamanho da operação. Calcula-se que o DRM exigiria duas ou três vezes mais. O mesmo ocorre na outra ponta: os modelos mais simples de aparelhos receptores desenvolvido para o Iboc custam 200 dólares, enquanto no padrão europeu as ofertas começam em cerca de mil dólares. A avaliação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) revela uma sintonia fina entre o órgão regulador e os interesses dos empresários. "Não faz sentido o receptor ter custo muito elevado em um país cuja população tem baixa renda. Ainda mais porque a radiodifusão no Brasil é gratuita e vive de publicidade. Não podemos onerar o ouvinte", diz Yapir Marotta, gerente-geral da área de administração de planos básicos da Anatel.

Outra vantagem do Iboc é a manutenção dos mesmos canais de estação de FM que existem hoje - as rádios não precisarão de outras faixas, ao contrário do que ocorre no sistema europeu. O padrão americano permite que na mesma freqüência sejam transmitidos os sinais analógicos e os digitais, o que significa que quem não tiver um aparelho receptor compatível com a nova tecnologia continuará sintonizando sua programação favorita como faz hoje durante o período previsto de transmissão simultânea, que deve se estender por muitos anos. Na atual fase de testes, pouca gente além dos técnicos das emissoras que transmitem em Iboc captam os sinais digitais, pois toda a base de receptores em uso ainda é analógica. "Estamos tocando para surdo dançar", diz Edilberto de Paula Ribeiro, presidente Associação das Emissoras de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo (Aesp). Essa situação só vai mudar quando os novos aparelhos começarem a chegar no mercado em larga escala, o que pode demorar de dois a três anos.

Se o padrão americano prevalecer como desejam os empresários, uma das grande beneficiadas será a iBiquity Digital Corporation, a empresa americana que desenvolve a tecnologia. Embora não revele seu faturamento nem faça previsões dos ganhos que terá com a adoção do Iboc, a companhia reconhece a importância do mercado nacional. "A adoção do rádio de alta definição no Brasil enviará uma mensagem poderosa sobre os benefícios desse sistema - tanto para os transmissores como para os ouvintes - e deve inspirar outros países a olhar mais de perto para essa tecnologia", disse a EXAME Perry Priestley, diretor de desenvolvimento de negócios internacionais da iBiquity.

Independente do padrão, o rádio digital traz benefícios importantes para os ouvintes. O mais óbvio é a melhoria sonora - as transmissões de FM ficam com qualidade de CD, enquanto o AM ganha uma clareza que apenas o FM consegue atualmente. O sinal digital é mais robusto e livre de interferências. Outra vantagem é o multicasting, a possibilidade de transmitir diversos canais de programação sobre uma única freqüência de FM. A previsão inicial é de três canais diferentes por faixa, o que permitirá veicular programações mais específicas, segmentando o público-alvo. O rádio digital permite ainda transmitir textos que serão exibidos em visores dos aparelhos receptores digitais, incluindo informações sobre trânsito - que podem ser especialmente atraentes para rádios de carros -, previsão do tempo ou o nome da música que está tocando com uma propaganda da loja onde o CD daquele artista está em promoção. O rádio digital abre frentes de receita para um setor que vê sua participação no bolo publicitário nacional, um mercado de 16 bilhões de reais, decair ano a ano (veja quadro). Para as rádios AM, a mudança é ainda mais premente. Nas grandes cidades, a urbanização piorou as condições de propagação das ondas médias e muitas estações sofrem com a dificuldade de serem sintonizadas.

Mas é razoável supor que nem todas as rádios completarão essa passagem para o mundo digital. Algumas não terão fôlego para os investimentos necessários e podem ficar pelo caminho. Mas tanto a Abert como a Aesp descartam uma consolidação radical, porque a mudança ocorrerá aos pouco, o custo da tecnologia tende a cair e a substituição dos equipamentos por obsolescência ocorreria mesmo sem uma mudança tecnológica. Tampouco espera-se que o rádio recupere de uma hora para outra a influência dos tempos de Orson Welles - é mais fácil acreditar em invasões alienígenas. Mas se estiverem definidas as bases para um crescimento sustentável, já será uma ótima notícia para um setor que há anos não tem muito a comemorar.

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