Leal, Passos e Seabra (da esq. para a dir.): “Trabalho não falta” (Germano Lüders/Exame)
Cristiane Mano
Publicado em 6 de junho de 2019 às 05h48.
Última atualização em 25 de junho de 2019 às 15h21.
Luiz Seabra começou a trabalhar aos 14 anos numa gráfica em que o pai era empregado no almoxarifado. Aos 26 anos, tornou-se gerente num pequeno laboratório familiar de cosmética. Três anos mais tarde, em 1969, vendeu um Fusca para criar a própria empresa no ramo. A Natura nasceu como uma pequena loja de cosméticos manipulados na Rua Oscar Freire, hoje um endereço elegante na capital paulista. Mas o negócio só cresceu mesmo nos anos seguintes com o modelo de venda direta. Seabra foi o primeiro consultor da marca. Elaborava as fórmulas e atendia clientes, chamando a atenção para a função terapêutica dos produtos. Dez anos mais tarde, o amigo Guilherme Leal se juntou a ele depois de perder o emprego na Fepasa, antiga rede paulista de ferrovias. Pedro Passos, companheiro de partidas de futebol de Guilherme, uniu-se aos dois em 1983.
Cinco décadas separam o momento em que Seabra vendeu seu Fusca do dia em que assinou, ao lado dos sócios, a compra da Avon, empresa centenária que celebrizou mundo afora o modelo de negócios que inspirou a expansão do trio no Brasil. Atualmente, eles dividem a presidência do conselho de administração e permanecem atuantes na configuração da nova cara global da companhia. Os empresários falaram com exclusividade a EXAME poucos dias antes de embarcar rumo a Nova York para a reunião de planejamento estratégico da Natura & Co, como o grupo passou a se chamar depois da compra da britânica The Body Shop em 2017.
A soma da Avon, com 5 milhões de consultoras em 56 países, com a The Body Shop, com 3.000 lojas em 70 países, cria uma plataforma multicanal para levar a marca Natura para o mundo?
Guilherme Leal Sim. Até três anos atrás, éramos uma empresa latino-americana de venda direta, ponto. Com a compra da The Body Shop, a multicanalidade deixou de ser um desejo estratégico que nunca se realizava. Agora a empresa é multicanal. Tem 3 000 lojas no mundo. Não adianta mais dizer que não sabemos o que é varejo. A The Body Shop trouxe consigo um conjunto de relações muito duradouras e fortes com os masterfranqueados em diversos países, como os asiáticos. Fui a um encontro em Singapura com masterfranqueados da região. Fiquei absolutamente encantado. Tem gente com parcerias de dez e 20 anos, alguns foram amigos da fundadora, Anita Roddick, na Malásia, no Japão, na Indonésia, na Índia, nas Filipinas. E encontrei parceiros interessados desde o primeiro dia em conversar sobre a possibilidade de levar a marca Natura para lá. A Avon, por sua vez, tem operações em países em que não estamos e nos quais faz todo o sentido atuarmos: Turquia, África do Sul, Rússia. Temos algumas hipóteses, mas a verdade é que há uma enormidade de caminhos. Trabalho não falta.
A empresa abriu sua primeira loja em Paris em 2005. No entanto, nunca deslanchou fora da América Latina. Por que tem sido tão difícil crescer organicamente?
Pedro Passos Nós nunca fizemos um investimento importante para crescer organicamente fora da América Latina.
Guilherme Leal Tínhamos outras prioridades. Na primeira década deste século, o mercado de cosméticos brasileiro foi o que mais cresceu em todo o mundo. Não podíamos deixar passar batido. Ainda assim tivemos muita paciência na América Latina com resultados negativos. Na hora que colocamos a energia necessária, por volta do ano 2000, o negócio engrenou e atualmente temos uma participação relevante [na região]. A abertura da loja em Paris foi a primeira experiência do grupo no varejo e representou uma quebra de paradigma. Não alocamos recursos para promover um crescimento mais pujante. Houve uma época em que a loja de Paris era administrada de Buenos Aires. Não vai dar certo, né? E essa frente foi andando meio de lado. Quer aprender a nadar? Uma hora você terá de pular na piscina. Foi o que fizemos com a compra da The Body Shop.
O cenário de baixo crescimento no Brasil tornou mais urgente a ampliação das receitas em outros países?
Guilherme Leal Queremos reforçar a posição no Brasil e acreditamos no país. Mas é mais confortável nesse cenário de baixo crescimento aumentar o percentual de receitas que vêm de fora.
Nos bastidores, a Natura já tinha se movimentado para comprar a Avon em 2012. Por que o negócio não foi adiante naquele momento?
Guilherme Leal Diversos fatores pesaram. Não estávamos prontos. O valor da companhia era maior. Para nós [no caso de uma troca de ações], a saída seria ter uma diluição de participação na nova companhia maior do que a desejada. Ou [se a Natura assumisse uma dívida pela compra] teríamos uma alavancagem que não queríamos ter. Quando a Avon saiu da mesa, logo na sequência fizemos a aquisição da [australiana] Aesop, uma empresa bem menor, mas uma joia com um potencial de crescimento enorme. Além disso, a Natura não teve os anos mais brilhantes de sua vida entre 2012 e 2016. O João Paulo [Ferreira, presidente da Natura desde 2015], ainda como vice-presidente comercial, fez um amplo diagnóstico para identificar os desafios da empresa. A partir daí, tomamos decisões como investir em digitalização — um percentual ainda maior do que investimos em inovação de produtos. Começamos a reagir, ganhamos participação, melhoramos o índice de satisfação da consultora. Hoje, quando deparamos com a Avon com problemas da mesma natureza, nos sentimos muito mais preparados. Outra coisa: naquela época, se comprássemos a Avon, reforçaríamos demais um perfil de venda direta sem ter avançado na multicanalidade que o consumidor exige hoje. Com a The Body Shop e a Avon, temos um equilíbrio melhor.
Com a aquisição da The Body Shop, em 2017, a presença global da Natura passou de 20 para 70 países. E, com a Avon, passará para 100. Como lidar com as complexidades dessa súbita dispersão geográfica?
Pedro Passos Tivemos uma evolução do time profissional e também do conselho. Esse enriquecimento do conselho foi fundamental, com a presença de pessoas que viveram processos de compras globalmente em outras companhias. Há conselheiros com muita experiência no varejo em mercados competitivos: a Jessica Herrin [empreendedora americana do segmento de beleza] e o Ian Bickley [conselheiro da marca de calçados Crocs, dona de uma ampla rede de lojas no mundo]. Ganhamos confiança por ter com quem debater decisões de uma empresa global.
Guilherme Leal Essa estrutura fez diferença inclusive na decisão da compra, que foi muito participativa. O mais comum é o bloco de controle decidir e só comunicar quando a coisa já está ocorrendo. Ao longo do processo, que levou cerca de um ano e meio, as propostas foram espancadas pelo conselho, que recentemente reforçou suas competências com gente de fora, mais internacional. Desde o início houve participação também do grupo executivo, sem o qual não tomaríamos uma decisão dessa natureza. Fez diferença ter uma equipe exclusivamente dedicada às negociações [comandada pelo presidente executivo do conselho de administração, Roberto Marques]. Após a compra da The Body Shop, constituímos a Natura & Co, que consiste hoje numa fina camada corporativa diretamente ligada ao conselho de administração, sob o comando do Roberto. Não havia manual para criar essa governança. Para entrar seriamente numa negociação é preciso ter uma equipe capacitada e dedicada, de modo que o processo não interfira no cotidiano da empresa. A Natura passa e passava por desafios, ainda mais com a situação brasileira.
Como dar unidade ao grupo, em vez de ter uma colagem de operações distintas e independentes?
Guilherme Leal A ideia é manter uma interdependência entre as empresas e permitir que as marcas conservem um grau de autonomia e não sejam enfraquecidas. Um comitê com a presença de alguns dos principais executivos das empresas do grupo é responsável por buscar sinergias. Além do comitê, promovemos encontros entre os profissionais das companhias. O primeiro deles reuniu quase 100 executivos das três empresas, em janeiro de 2018, em São Paulo. Foi um grande barato. Temos uma diversidade muito rica e interessante de profissionais. Lembro a entrevista que fizemos para a contratação de David [Boynton, presidente da The Body Shop desde dezembro de 2017]. Ele tem uma experiência enorme no varejo [Boynton trabalhou dez anos na rede de cosméticos L’Occitane] e uma conexão com nossos valores. Anda sempre com uma bicicleta dobrável em Londres. Perguntamos se toparia vir, e ele se encantou pela proposta de reacender a chama de uma marca tão icônica.
Com a Avon, a Natura terá de enfrentar sua primeira integração, que exigirá um enorme trabalho na América Latina. Até que ponto a diferença entre a cultura das empresas pode ser um entrave?
Pedro Passos Vamos manter independentes as áreas de marketing e de vendas, para não enfraquecer a marca. E integrar o restante. Obviamente há diferenças. Temos preocupações diferentes no desenvolvimento de produtos, bases tecnológicas, outros objetivos. Mas existem pontos de afinidade importantes no modelo de negócios. Além disso, ficamos bem impressionados com o sentido da reestruturação em andamento, com muita convergência com o que estamos fazendo. O que vimos nos deu confiança de que o casamento pode ser bem-sucedido.
Guilherme Leal Um dos princípios originais das duas empresas e que, na Avon, acabou ficando para trás foi a conexão afetiva e emocional com a representante.
Luiz Seabra O mesmo aconteceu com a conexão da marca com o cliente final.
As duas empresas — The Body Shop e Avon — passam por dificuldades e exigem uma reestruturação. Não é muita coisa para gerenciar ao mesmo tempo?
Guilherme Leal Tem hora que é preciso ser empreendedor. Sem arrogância, sabemos dos desafios e das dificuldades. Mas construímos a confiança de que podemos separar as complexidades.
Luiz Seabra Temos um ano e meio de reestruturação em andamento na The Body Shop, que está indo muito bem. Conseguimos reintroduzir princípios absolutamente inspiradores da fundadora, Anita Roddick [morta em 2007], com a valorização de ingredientes naturais extraídos com responsabilidade socioambiental. Na Avon, a reestruturação em andamento vai seguir até que o negócio seja aprovado em todas as instâncias.
Pedro Passos Em relação a 2012, a Avon está mais leve e focada. Mérito da turma que está lá.
A operação da Avon na América do Norte, considerada a mais problemática, nunca interessou à Natura?
Guilherme Leal A decisão de separar essa divisão no negócio foi da Avon, lá atrás. A companhia vendeu a operação americana há cerca de três anos ao fundo Cerberus [que a revendeu há um mês à sul-coreana LG]. Nunca morremos de vontade de levar o negócio dos Estados Unidos porque ali havia muito para fazer. Se fosse indispensável, teríamos um ponto de alerta. As circunstâncias avançaram e a Cerberus negociou com a LG. Mas a marca é da Avon Internacional, que recebe royalties.
Há quase 20 anos a Natura começou a criar uma cadeia de fornecimento de insumos amazônicos. Até que ponto esse passo fez parte de uma ambição global da marca?
Guilherme Leal Tivemos as primeiras reflexões nesse sentido em 1998. As vendas tinham quintuplicado nos quatro anos anteriores e nos perguntamos: “O que queremos ser quando crescer? Uma cópia da Lancôme?” Não. Se é para comprar a cópia, o consumidor compra o original. Naquela época, a Natura já tinha 30 anos de existência, associados a ingredientes naturais. Existia uma vocação para reforçar um apelo associado ao Brasil. Lá fora, quando se pensa no país, uma das primeiras ideias é de uma grande floresta, a Amazônia. Estée Lauder [empreendedora americana que criou a marca homônima] dizia que achava bom as pessoas não saberem a origem de sua marca ao ouvir seu nome, via uma vantagem em não ter uma identificação clara com uma origem. Não sabemos fazer isso. Somos brasileiros. Não negamos nossa origem. Acreditamos que temos valores universais que podem ser compartilhados. Investimos, entre 1997 e 1999, no desenvolvimento de fornecedores na Amazônia. A linha Ekos foi lançada em 2000. Ali começamos a preparar o terreno para que, com o tempo, viesse a internacionalização. Demorou mais do que imaginamos. Mas acreditávamos que aquele investimento geraria grandes frutos.
Luiz Seabra Ter a Amazônia como inspiração era um passo inerente à trajetória da empresa até aquele momento. Mas fazer isso na prática exigiu investimentos com os quais não podíamos nem sonhar. A construção de uma cadeia do zero é muito onerosa.
Pedro Passos Desde o começo usamos ingredientes da biodiversidade brasileira e, ao mesmo tempo, investimos em ciência, para entender os benefícios desses ingredientes. Não queríamos incluir o ingrediente pelo ingrediente. Criamos uma plataforma de inovação única. É complexo, muito complexo. Ninguém chega lá e diz: “Me dá 3 quilos de tal insumo”. Tem de ir à floresta, falar com as comunidades, descobrir princípios ativos. Já ficamos sem pitanga, sem patauá, devido à sazonalidade desses ingredientes. Enquanto todo mundo falava em just in time, criamos o season in time.
Para além dos números e sinergias, qual é o significado da compra da Avon na trajetória da Natura?
Luiz Seabra Ao ampliar extraordinariamente nossa presença no mundo, temos a chance de dar escala ao alcance de nossas crenças, de relações duradouras, de responsabilidade socioambiental.
Nestes 50 anos de história, houve algum momento em que vocês consideraram vender a Natura?
Luiz Seabra Eu não!
Pedro Passos Nós nos divertimos com o que fazemos.
Guilherme Leal Nós não somos garotos, mas não saímos da estrada.