Revista Exame

Tempo perdido em educação

A péssima qualidade da educação é marca registrada do Brasil desde sempre. O próximo governo tem a missão - inadiável - de acelerar o passo

BRASILEIROS, MATEMÁTICOS E PREMIADOS: com foco no uso dos recursos, Wellington de Melo (à esq.),
Jacob Palis (ao centro) e Artur Ávila, do Instituto de Matemática do Rio de Janeiro, são destaques mundiais (Germano Lüders/EXAME.com)

BRASILEIROS, MATEMÁTICOS E PREMIADOS: com foco no uso dos recursos, Wellington de Melo (à esq.), Jacob Palis (ao centro) e Artur Ávila, do Instituto de Matemática do Rio de Janeiro, são destaques mundiais (Germano Lüders/EXAME.com)

DR

Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.

Cada governo que passa para o seguinte o que conseguiu fazer. Passa, também, o que não conseguiu. A herança é tanto positiva quanto negativa — e falo de herança em sentido amplo, que inclui tanto fatos concretos quanto ideias. No caso da educação brasileira, o próximo governo herdará — não apenas deste, mas de vários governos passados — um conjunto de preconceitos, maus hábitos e atavismos que nos impedem de andar mais rápido. A mazela mais dramática e teimosa de nosso ensino é sua fraquíssima qualidade. Numa comparação entre 50 países, estamos entre os cinco piores. Ao fi m da 4ª série do ensino fundamental, mais da metade dos alunos continua funcionalmente analfabeta. Isso são fatos, não ideias. E as consequências deles estão aí para qualquer um ver: alunos despreparados, profi ssionais ineptos, sociedade e economia pouco competitivas em termos globais — pelo menos no que se refere ao longo prazo. Ainda assim, 70% dos pais brasileiros acreditam que nossa educação é boa. Como gerar a impaciência, a intransigência e a obstinação da sociedade requeridas para a mudança?

Não temos senso de urgência — e, por isso, convivemos há décadas com um mar de problemas. Mudamos lentamente numa área vital para a transformação real do país. Por seus impactos sociais e econômicos, por tudo o que acarretará na vida de cada um dos brasileiros que ali está, a sala de aula atrasada é provavelmente o maior deles. Em grande parte das escolas, mesmo o “feijão com arroz” não funciona.Nossos professores não aprenderam nas faculdades de educação a matéria que precisam ensinar. Também não aprenderam a dar aula, como acontecia antigamente nos institutos de educação. Mas aprenderam - e aprendem - muita ideologia que não produz nada em matéria de educação. Neste ponto, a educação brasileira não evoluiu nada nos últimos anos. O legado que temos é de retrocesso.

Vírus antimercado

Há quase cinco séculos, o fi lósofo Francis Bacon afi rmou ser a ciência um vaivém entre as ideias e a observação do mundo. Sem olhar, descrever, contar e medir, as teorias pairam no espaço e jamais saberemos quem está certo. Essa visão é o cimento da ciência moderna. Infelizmente, na educação brasileira, o guru fala mais alto que a pesquisa rigorosa. Nesse particular, o ministro Fernando Haddad dá um bom exemplo encomendando pesquisas sobre o estado atual da educação. Mas não vence o obscurantismo de muitos de sua equipe. Neste país, na área de educação, a ideologia se sobrepõe à técnica. Eis um mal que o governo Luiz Inácio Lula da Silva permitiu que se aprofundasse.


O mundo universitário continua contaminado por um vírus que reage contra o sistema privado, o mercado e a concorrência. Como mais de 80% das instituições já são privadas, esse preconceito desemboca em travas à abertura de novos cursos. Ótimo para os que se instalaram antes, pois têm seu mercado protegido. Mas mercado sem concorrência é monopólio, inefi ciente e injusto. Enquanto isso, a universidade pública continua ingovernável. É como se os reitores fossem jóqueis de dinossauros. O reitor não pode contratar, demitir, comprar, vender ou mudar o uso dos recursos. Sua eleição é um acerto político, tirando ainda mais graus de liberdade na gestão. Não há prêmios nem punições para quem quer que seja. A inefi ciência é endêmica. E a equidade passa longe, por ser um ensino caro e gratuito, frequentado pelos mais ricos. O resultado está aí. Como um país pode ambicionar o desenvolvimento se, entre suas universidades, nenhuma fi gura na lista das 200 melhores do mundo? No ensino superior — de onde saem nossos professores, médicos, engenheiros e que deveria ser nosso principal celeiro de inovação —, o próximo presidente herdará um cenário de paralisia numa área em que outros países emergentes, como a China, apontam para a rápida evolução. Em 2010, quatro universidades chinesas aparecem entre as 50 melhores do planeta — um desempenho compatível para um país que quer liderar a economia mundial nas próximas décadas.

A universidade é um reflexo do que ocorre nos ensinos fundamental e médio. Na Europa, os alunos podem escolher entre muitos tipos de escola no ensino médio: profi ssionais, semiprofissionais e acadêmicas. Nos Estados Unidos, cada aluno monta seu currículo. No Brasil, conseguimos a perfeição: um só modelo de escola e currículo único para todos. Como as escolas precisam preparar os alunos para o vestibular, há uma inundação de conteúdos - e, em consequência, não sobra tempo para profundidade, aplicação e experimentação. As teorias estão distanciadas do mundo dos alunos, e os professores não dominam o assunto. De tempos em tempos, surgem mais disciplinas - filosofi a, sociologia, estudos afro-brasileiros etc. Tudo isso resulta numa escola supremamente desmotivadora.

O atual quadro da educação brasileira exige profundas transformações, providências muito mais amplas do que as que foram tomadas até aqui. Isso, claro, se quisermos suplantar os limites que defi nem as sociedades social e economicamente desenvolvidas. Mas seria ingênuo e equivocado dizer que tudo vai irremediavelmente mal. Nada é tão preto ou tão branco no Brasil de hoje. Há, sim, setores nos quais brilhamos - por mérito de governos anteriores e também do atual. E eles precisam ser ressaltados para que possam servir de modelo. Nosso maior motivo de orgulho são os cursos de pós-graduação, o único segmento que temos de alta performance. Um exemplo é o Instituto de Matemática Pura e Aplicada do Rio de Janeiro. Com foco bem defi nido e aplicação efi ciente dos recursos, o Impa se tornou uma referência. Alunos e pesquisadores, como Wellington de Melo, Jacob Palis e Artur Ávila, vêm ganhando prêmios no exterior. Em 1980, éramos o 30º país em termos de publicações científicas internacionais. Hoje estamos em 13º nessa lista, à frente de Rússia e Israel. A chamada revolução verde brasileira, nome dado à tropicalização de culturas vegetais, como a soja, que ajudou a tornar o Brasil uma das maiores potências agrícolas do mundo, é fruto da Embrapa e da pós-graduação. Não é pouca coisa. Talvez a principal explicação para o sucesso nesse campo seja a existência de fi nanciamento à pesquisa por meio de fundos competitivos, criados pelas grandes agências de fomento. É um caso raro de continuidade por meio século — e também de disponibilidade crescente de recursos.


Um dos segredos do sucesso da pósgraduação é seu sistema de avaliação. Abrange todos os cursos de mestrado e doutorado e é acoplada a prêmios para notas boas e penalidades para resultados medíocres. A cultura da avaliação, aliás, parece estar pegando em todas as áreas da educação. Afrontando a barragem ideológica existente, o Ministério da Educação criou o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) para aferir a qualidade do ensino básico. Surgiu depois o Enem, ainda na ges tão do ministro Paulo Renato de Souza. Mas a maior ousadia foi o Provão, sem similar em nenhum outro país. Seu impacto no ensino superior foi enorme, punindo os incompetentes e premiando os bem-sucedidos. Com o início do governo Lula, destruir o Provão virou o troféu mais cobiçado da equipe recém-chegada ao ministério. Ela quase teve sucesso. Felizmente, os radicais foram substituídos, e o Provão, exumado. Ao governo Lula devemos a Prova Brasil, produzindo avaliações para cada escola do país, e o Ideb, que afere a velocidade de avanço da educação.

Barreira ideológica

O governo Lula teve também uma boa ideia para aumentar a frequência no ensino superior — o Prouni, programa que dá isenção fi scal a universidades privadas em troca de bolsas de estudo a estudantes carentes. Dada a exigência de provar renda baixa e haver estudado em escola pública, o programa tem um forte impacto sobre a equidade. Ao mesmo tempo, sendo selecionados pelo Enem, seus alunos exibem melhor desempenho do que os pagantes. Tratase de uma ruptura com a inércia. Assim como foi uma ruptura a incorporação dos sistemas de ensino à sala de aula. Nos últimos tempos, os melhores cursinhos invadiram o ensino regular, em razão da qualidade das aulas, dos materiais explícitos e detalhados, bem como de sua gestão empresarial. Em seguida, passaram a vender seus serviços às escolas privadas que a eles se associaram. Assim foram criados os "sistemas", vendendo coleções de livros, planejando o ritmo das aulas, ensinando aos professores os conteúdos e como usar efi cientemente os livros. Como já cobrem perto de metade do setor privado, o objeto de cobiça passou a ser chegar aos 40 milhões de alunos das redes públicas. Rapidamente, conquistaram metade dos municípios do estado de São Paulo. Pesquisas mostraram que os alunos dos municípios que utilizam os sistemas estão meio ano letivo à frente dos demais. Pela lógica, o Ministério da Educação exultaria por ter à sua disposição uma fórmula para melhorar a qualidade do ensino. Mas é o oposto. À exceção do próprio ministro Haddad, há uma barreira ideológica contra os malignos "apostiladores".

O desenvolvimento da educação de um país não é tarefa de um ou dois governos ou missão de um líder iluminado. É um processo no qual não se tem o direito de perder tempo. O governo que agora chega ao fi m não será marcado pelo progresso que dele se esperava. Há oito anos, imaginava-se a continuação de muitas reformas esboçadas no governo anterior. O que se materializou foi pífio. Dados os atrasos acumulados por cinco séculos, o ritmo de recuperação do tempo perdido não convenceu. Acelerá-lo é a missão - inadiável - que Lula deixa a seu sucessor.


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