Revista Exame

Os 5 mitos da globalização

Tem muita gente dizendo bobagem sobre a internacionalização da economia. Conheça os erros mais comuns

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Da Redação

Publicado em 31 de agosto de 2012 às 11h15.

Dirija até o centro de Los Angeles, saindo da costa, e você defrontará com uma muralha de cintilantes arranha-céus, monumentos ao sonho da cidade de transformar-se na Manhattan da costa do Pacífico. Nessa cidadela de quartzo, construída principalmente com dinheiro japonês, labutam banqueiros, executivos da indústria petrolífera e advogados atraídos pela expansão das grandes multinacionais.

Dirija um pouco mais, porém, e você verá que o Primeiro Mundo acaba. Os prédios se tornam encardidos e decadentes. Quarteirões inteiros foram abandonados e fechados com tábuas. Certo trecho da Rua Cinco agora hospeda representantes dos mais baixos degraus da sociedade - estropiados arengando sob o efeito de drogas para as calçadas desertas, miseráveis pedindo esmolas uns aos outros.

Com um pouco mais de paciência, o observador que se detiver por algum tempo na Rua Cinco logo descobrirá que a situação é mais complexa. Os depósitos locais, que havia uns poucos anos caíam aos pedaços pelo desuso, estão sendo reformados. Os cortiços imundos se transformaram em lojas e escritórios improvisados.

A cidade até enfrenta problemas de estacionamento em áreas que já foram sinônimo de abandono. Nas primeiras horas da manhã, as ruas locais estão repletas de caminhões. Nos fins de semana, ficam apinhadas de compradores em busca de pechinchas.

Los Angeles deve essa melhoria a um pólo de quase 400 fabricantes e atacadistas de brinquedos, que empregam em conjunto 4 000 pessoas e vendem mais de 1 bilhão de dólares por ano, a metade fora dos Estados Unidos.

As duas ou três maiores empresas empregam cada uma quase 500 funcionários, mas a maioria são fabriquetas que funcionam em apenas um galpão, dirigidas por chineses, mexicanos e coreanos. Em muitas dessas oficinas vêem-se espelhos pendurados do lado de fora, para impedir a entrada de maus espíritos. Dentro, ao lado das pilhas de brinquedos, erguem-se altares aos deuses ancestrais.

O arquiteto dessa regeneração urbana é um afável imigrante de Hong Kong, com 40 e tantos anos, chamado Charlie Woo. Estes últimos anos foram sem dúvida bons para ele. A barriga debruçou-se sobre a cintura e o rosto está tão rechonchudo que empurra os óculos para cima. Mas ele conserva toda a energia de um homem muito mais moço, falando com rapidez, rindo alto.


Em geral, a impressão de vitalidade é tal que é fácil esquecer, até o momento em que ele se levanta para apanhar um brinquedo, que uma doença contraída na infância paralisou-lhe uma das pernas. Seu escritório é uma combinação de corredor e depósito: os empregados passam às pressas por ele para chegar à plataforma de carga nos fundos do prédio.

Sua temível secretária, que ainda não conseguiu dominar o aparelho de intercomunicação, anuncia cada um dos novos visitantes com gritos estridentes de "Charlie! Charlie!"

Essa informalidade disfarça o respeito, e até mesmo a veneração. Woo, conhecido como o rei de Toytown, chegou aos Estados Unidos em 1968 para fazer um curso de Ph.D. em física na Universidade da Califórnia (Ucla). Era um estudante promissor, mas a família queria que ganhasse dinheiro.

A contragosto, abandonou os estudos e passou vários anos dirigindo um restaurante chinês em Laguna Beach. Depois, andou namorando o comércio de roupas, mas deixou de lado a idéia por considerar o negócio muito incerto. Finalmente, analisando o estado lastimável do mercado de brinquedos local, vislumbrou uma oportunidade.

Na época, o negócio de brinquedos nos Estados Unidos se compunha, na verdade, de dois setores. Um era de produtos de alta qualidade, dominado por multinacionais como a Mattel. O outro era de artigos baratos, em que predominavam empresas pouco confiáveis, que destinavam suas mercadorias de segunda a vendedores ambulantes ou a mercados de rua.

Woo calculou que conseguiria vender brinquedos a preços inferiores aos das empresas tradicionais como a Mattel, importando de Hong Kong produtos de baixo custo, mas de certa qualidade. E assim criou sua primeira empresa, a ABC Toys, em 1979, chamando o pai e três irmãos que viviam em Hong Kong para ajudá-lo. Dez anos mais tarde, criou a Megatoys, sua atual empresa.

O centro de Los Angeles se revelou um lugar melhor para uma empresa de brinquedos do que o próprio Woo imaginara. Os proprietários dos prédios em torno da Rua Cinco estavam tão ansiosos para se desvencilhar daquelas ruínas que quase os davam de graça. Era grande a quantidade de imigrantes dispostos a executar o trabalho pesado.

A proximidade dos gigantescos portos de Los Angeles e Long Beach permitia que Woo importasse brinquedos do Extremo Oriente a preços muito inferiores aos dos rivais de outras partes do país. E, para sua surpresa, o mercado não se limitava aos Estados Unidos.


Varejistas mexicanos, que careciam de contatos para importar brinquedos diretamente de Hong Kong, mas que tinham enormes mercados em sua terra natal, começaram a bater à porta de Woo. Outros fabricantes de brinquedos se juntaram ao pequeno cluster de Woo, e assim surgiu a Toytown.

A fábrica mítica

Para Charlie Woo, a globalização é simplesmente um fato natural - ou, talvez com mais exatidão, um conjunto de fatos sobre fornecedores, clientes e trabalhadores. Não importa para ele que muitos aspectos de Toytown pareçam contradizer as percepções comuns sobre a maneira como o capitalismo afeta a sociedade.

Ele não usa o termo globalização a não ser em discursos de vendas. Sob esse aspecto, não foge aos padrões. Empresas de todos os tipos descobriram que a globalização serve de boa desculpa para tudo, do fechamento de fábricas à compra de um novo jato particular para o presidente do conselho de administração.

Enquanto isso, os governos recorrem a ela para legitimar todas as ações, desde a taxa de câmbio fixa até a falta de dinheiro para a reforma das escolas.

Sob o peso de iguais cargas de emoção e imprecisão, o termo globalização se juntou à lista de palavras turbinadas - outras são família, ética e comunidade - que geralmente dizem mais sobre as atitudes básicas das pessoas perante o mundo do que de fato descrevem a realidade.

Para quem adota uma postura cultural conservadora, globalização é um eufemismo para tudo o que gera ansiedade no mundo moderno, dos lares desfeitos à onipresença da música popular. Em contrapartida, para os que atuam em setores de alta tecnologia, é uma daquelas palavras que atestam seu nível de atualização.


As palavras turbinadas sempre geram mitos. Neste texto, identificaremos aqueles que para nós necessitam de exame atento e minucioso. Eis alguns:

1) A globalização promove o triunfo das grandes empresas

2) Introduz uma era de produtos globais, da Coca-Cola ao Mercedes Classe S

3) Supera os ciclos econômicos tradicionais

4) É um jogo de soma zero (em que alguns perdem para que outros ganhem)

5) Significa que a geografia não é importante

A análise dessas globobagens é mais do que mero exercício de faxina intelectual. Os mitos associados à globalização, não menos do que outros preconceitos mal informados, induzem a ações que por vezes exercem efeitos funestos sobre a vida de milhões de pessoas.

A idéia de que as empresas devem ser grandes ou de que os produtos precisam ser globais induzem a fusões desnecessárias. Os investidores empilham dinheiro em empresas absurdamente valorizadas, convencidos de que isso é parte da Nova Economia.

A idéia de que os países estão lutando por uma quantidade limitada de empregos - em que um dos lados necessariamente será derrotado - alastra as chamas do protecionismo e ajuda a promover ilusões mais benignas, como o conceito de "comércio justo". A idéia de que as empresas agora não têm raízes leva os governos a gastar milhões para evitar que elas se transfiram para outros mercados.

Mito 1

O mais importante é o tamanho

O escritório de Charlie Woo, à sombra dos arranha-céus de Los Angeles, é um bom lugar para sentar e meditar sobre o primeiro de nossos mitos: que um punhado de megacorporações globais retalhará o mundo entre si.


A "multinacional sem rosto" desponta em numerosas arengas sobre a globalização. "Coca-colonização", "Disneyficação", "McEmpregos" e "economia Nike" - tais disparates são chavões que descrevem o processo pelo qual os pequenos seriam esmagados pelos grandes. A onda de fusões nestes últimos anos (2,4 trilhões de dólares em 1998) parece apenas reforçar essa imagem.

Em cada novo acordo - a Daimler-Benz se acasalando com a Chrysler; a Exxon com a Mobil - dizem que o motivo tem a ver com a necessidade de escala na economia global.

Mas a idéia de que o grande está ficando maior é um velho mito que, sob o ponto de vista estatístico, parece cada vez mais inexato a cada repetição.

Há mais de 30 anos, em seu livro The New Industrial State, John Kenneth Galbraith previu que o mundo seria dirigido por grandes corporações: "Com a ascensão da moderna corporação e a emergência da forma organizacional imposta pela tecnologia moderna e pela necessidade de planejamento, assim como o divórcio entre o capital financeiro e o controle do negócio, o empreendedor não mais existe como pessoa individual na empresa industrial madura".

Evidentemente, desde então a história corporativa dos Estados Unidos tem sido dominada por empreendedores de todos os tipos, sejam os predadores corporativos que dilaceram os velhos monstros, sejam os jovens magnatas que sobrepujam os predadores em esperteza.

A proporção da produção americana gerada por grandes empresas aumentou gradualmente de 22%, em 1918, para 33%, em 1970, mas não se alterou desde então até 1990 (e certamente, em face do desenvolvimento dos setores de alta tecnologia, deve ter caído nesse período). Na Alemanha, no Japão e na Inglaterra, a mesma proporção apresentou quedas bastante acentuadas de 1970 a 1990.

Muitas são as maneiras pelas quais a globalização reduz o poder das grandes empresas. É verdade que os campeões nacionais têm mais facilidade para estender seus tentáculos pelo mundo, mas no percurso defrontam com outros gigantes que também alongam seus braços de borracha.


No próprio setor de Woo, a Mattel e a Hasbro depararam com Lego, Sony e Nintendo. A Toys "R" Us vem perdendo participação de mercado para redes como a Wal-Mart. As pequenas empresas têm menos custos fixos que os rivais de maior porte, que sustentam todo um aparato de sedes corporativas inchadas e gerentes de nível médio desnecessários.

A desregulamentação dos mercados de capitais tornou mais fácil a obtenção de empréstimos pelas empresas de pequeno porte. A maior disponibilidade de tecnologia da informação democratizou o processamento numérico pesado, até então viável apenas para os gigantes. E a redução dos custos de transporte converteu o mundo em mercado acessível a todos os negócios.

Então, por que tantas empresas de grande porte tentam tornar-se ainda maiores? Sem dúvida, em certos mercados o tamanho sempre foi importante: a indústria aeroespacial, por exemplo.

Em outros, o porte está começando a desempenhar papel mais importante do que no passado. Os custos crescentes do projeto de novos carros está dividindo a indústria automobilística em dois níveis: meia dúzia de gigantes globais singra os mares, enquanto as rivais menores fazem água ou vão a pique.

Mas em muitas grandes fusões as empresas buscam o tamanho para superar debilidades, e não como parte de algum esquema megalomaníaco de dominação do mundo. As maiores empresas petrolíferas do mundo foram induzidas à fusão pelo longo declínio no preço do petróleo e pela dificuldade de encontrar novas reservas. Boa parte das grandes fusões, inclusive as da DaimlerChrysler e a Exxon-Mobil, destinam-se a reduzir custos em setores com excesso de capacidade.

Embora os motivos pareçam bons, a única coisa mais certa que o aumento contínuo no número de fusões é o fato de que a maioria não dará certo.

Muitos estudos acadêmicos chegaram à mesma conclusão: em média, duas em cada três fusões não produzem resultados. Os únicos vencedores são os acionistas da empresa adquirida, que recebem por suas ações mais do que elas de fato valem. A razão óbvia para a predominância dos casos de fracasso é o preço excessivo.

No calor da batalha, o ego muitas vezes sobrepuja a lógica. Um estudo delicioso observa que o tamanho do ágio está associado ao número de capas de revista adornadas pelo presidente da adquirente antes do acordo.


Mito 2

O triunfo de produtos universais

O mito gêmeo da vitória do tamanho é o do triunfo de produtos globais, a idéia de que um grupo de elite de marcas poderosas, respaldadas por pujantes máquinas de marketing, acabará conquistando o mundo.

A manifestação mais inequívoca dessa visão se encontra em The Globalization of Markets (A Globalização dos Mercados), artigo clássico de Theodore Levitt, um guru da Harvard Business School. Levitt sustentou que a tecnologia estava produzindo uma "nova realidade comercial - a emergência de mercados globais em escalas de magnitude antes inimagináveis".

As empresas globais que ignoram diferenças regionais "superficiais" e exploram economias de escala mediante a venda dos mesmos produtos, da mesma maneira, em todos os lugares, em breve tirariam do cami-nho não apenas as pequenas companhias locais mas também o velho tipo de empresa multinacional que gastava boa parte do tempo tentando "respeitar" as idiossincrasias e pecadilhos locais. "A Terra é redonda", argumentou Levitt, "mas, para muitos propósitos, é mais sensato tratá-la como plana."

Mas será que é assim? Poucos produtos destinados a mercados sofisticados - a revista The Economist é um deles - habitam alegremente o "mundo plano" de Levitt, muitos deles vendidos à classe dos cosmocratas.

Mas a maioria das pessoas começou a perceber que em marketing, como na navegação, tratar o mundo como se fosse plano pode ter suas desvantagens. No mercado consumidor mais amplo, apenas um punhado de marcas verdadeiramente globais é vendido em qualquer lugar, a qualquer pessoa, e até mesmo esses nomes portentosos não significam o mesmo em Pequim (onde são símbolos de status) e em Boston (onde estão longe de ser prestigiosos).

Quando lhe perguntaram quais eram as marcas verdadeiramente globais, um dos executivos de alto escalão da Coca-Cola mencionou McDonald s, Mercedes-Benz, BMW e Sony, "e isso é tudo".


Até mesmo a Coca-Cola tem dificuldade em fazer jus a seu slogan "Sempre Coca-Cola". A empresa é muito mais sensível às preferências locais do que indicam as aparências. O produto que mais vende na Índia, por exemplo, não é a Coca-Cola em si, mas Thums Up, que supera as vendas da bebida tradicional pela margem de quatro a um em alguns mercados.

E a Coca-Cola não está sozinha. O McDonald s vende sanduíches bulgogi na Coréia do Sul e oferece molho de teriyaki no Japão. "Não sei como uma empresa global não seria descentralizada", diz Jack Greenberg, presidente do McDonald s. Ao lhe pedirem para definir o elemento consistente na experiência da empresa, respondeu: "Excelente carne fresca, em restaurantes limpos".

Na verdade, nos últimos anos, o marketing se tornou obcecado pela segmentação dos clientes, em vez de enfardá-los no mesmo saco. As empresas erram se tratarem todo um país como um único mercado, quanto mais a totalidade do planeta.

Na Europa, as empresas que consolidaram suas operações de marketing antecipando-se ao advento do euro estão descobrindo a importância das diferenças nacionais. Nos Estados Unidos, onde os negros, os latinos e os asiáticos têm um poder de compra total de mais ou menos 900 bilhões de dólares por ano, o marketing para os chamados "americanos hifenizados" (afro-americanos, ítalo-americanos etc.) é um negócio em expansão.

O próprio setor de Charlie Woo parece sintomático. Até mesmo os brinquedos "globais" são cuidadosamente adaptados às características locais pelos fabricantes. No Japão, a Barbie tem seios menores do que na América. Apesar dos custos adicionais, Woo já está mexendo na embalagem e no design para que seus brinquedos latinos sejam diferentes dos americanos.

Mito 3

A economia precisa ser reinventada

Exponha a Charlie Woo a idéia de que ele é parte de uma Nova Economia, e a reação dele se limitará a um sorriso amarelo. Longe de presumir que os ciclos econômicos estejam mortos, ele se estenderá sobre as perspectivas de uma próxima queda no ritmo da atividade econômica, como a do início da década de 90.


Quanto à inflação, ela está de fato baixa. Na realidade, parece que a deflação já atingiu algumas áreas da indústria de brinquedos. Mas os principais temores de Woo ainda são sobre os custos crescentes, sobretudo o da mão-de-obra. Freqüentemente ele discute com os empregados sobre aumentos de salários.

Sem dúvida, seu ambiente de negócios está mudando um pouco mais rapidamente do que antes: globalização significa que os concorrentes surgem em qualquer lugar. Mas as regras básicas de como ganhar dinheiro ainda são as mesmas de sempre.

A idéia de que estamos no limiar de uma Nova Economia, cujas regras são fundamentalmente diferentes das da velha economia, se tornou extremamente popular.

Para o Vale do Silício, é como um evangelho. Kevin Kelly, editor executivo da Wired, escreveu um livro intitulado New Rules for the New Economy (Novas Regras para a Nova Economia). A Business Week está entre os primeiros fiéis. Alan Greenspan também namorou o termo.

Em Wall Street, os corretores recorrem à Nova Economia em suas explicações sobre os motivos pelos quais as velhas expectativas sobre a taxa de crescimento dos lucros perderam a validade - e inflaram a bolha do mercado de ações.

Mito 4

A globalização como um jogo de soma zero

Relate a história de Charlie Woo à maioria dos sindicalistas americanos, e a reação será de desaprovação. Longe de criar empregos, argumentam, Woo os está roubando. Ao utilizar mão-de-obra imigrante barata e importar mercadorias chinesas, ele está solapando aqueles bons empregos de classe média que eram oferecidos pela Mattel e pela Hasbro.

Sem dúvida, a acusação é em parte verdadeira. Tanto a Mattel como a Hasbro eliminaram empregos ao terceirizar a fabricação. Mais de dois terços dos brinquedos do mundo são fabricados na China e em Hong Kong. A indústria de brinquedos também foi surpreendida algumas vezes fabricando seus produtos em condições deploráveis no Terceiro Mundo.

No entanto, mesmo que os adversários de Woo consigam reunir alguns argumentos honestos, suas acusações ainda se baseiam sobretudo num mito muito maior e mais desonesto: para que alguns lucrem com a globalização, outros perderão em igual intensidade.


A idéia de que a integração econômica é um jogo de soma zero respalda todos os aspectos do pensamento anti-globalista, como "comércio justo", empregos, salários e relacionamentos entre países ricos e países pobres.

Para esse pessoal, admitir que trabalhadores mal remunerados concorram em igualdade de condições com trabalhadores bem remunerados é condenar estes últimos ao desemprego. Permitir que os consumidores alemães comprem lâmpadas importadas acarreta a produção de menos lâmpadas pelos trabalhadores de seu país.

Deixar que empresas alemãs transfiram suas fábricas para o exterior significa mais empregos para os estrangeiros e menos para os alemães. Eis por que mesmo os supostos defensores do livre comércio, como o governo dos Estados Unidos, anunciam cada redução das tarifas americanas como concessão.

É como se os níveis de emprego e de comércio fossem limitados e a principal função do governo consistisse em defender sua fatia da torta.

Em alguns casos, a fragilidade do mito se expõe de maneira patética. Por exemplo, o Nafta parece ter exercido efeitos desprezíveis sobre o nível de emprego nos Estados Unidos.

Os investimentos diretos americanos no México aumentaram desde o acordo, mas apenas de 2 bilhões para 3 bilhões de dólares por ano, cifra ainda pequena em comparação com os 700 bilhões investidos anualmente pelas empresas americanas nos Estados Unidos. No entanto, na maioria dos casos, o mito da soma zero se enquadra na categoria pequena verdade/grande mito.

Evidentemente, alguns trabalhadores do Primeiro Mundo saem perdendo em conseqüência do comércio exterior e dos investimentos estrangeiros diretos. Basta perguntar aos metalúrgicos e aos mineiros, se for possível encontrar algum. Mas a globalização também cria empregos.


Se os críticos da globalização estivessem certos, os Estados Unidos, com uma das mais liberais políticas comerciais do mundo, estaria perdendo empregos aos milhões. No entanto, ao contrário, o país gerou 14 milhões de novos empregos apenas na década passada.

Na maioria dos lugares fora do eixo Paris Havana, o mito da soma zero tem sido completamente desmentido. Isso explica por que seus partidários recentemente transferiram a ênfase da quantidade para a qualidade dos empregos. O livre comércio, observam, força os trabalhadores dos países ricos à competição aberta com os trabalhadores dos países pobres.

Nessas condições, as empresas podem transferir empregos para os países de salários baixos, a fim de reduzir o custo da mão-de-obra - ou pelo menos acenar com a ameaça de transferência, caso os trabalhadores do país de origem se recusem a aceitar níveis salariais realistas.

A situação pressiona os trabalhadores do Primeiro Mundo a aceitar salários mais reduzidos ou a seguir o exemplo dos metalúrgicos strip-teasers do filme Ou Tudo ou Nada, deslocando-se para empregos precários no setor de serviços. O argumento está repleto de problemas estatísticos e envolve duas grandes dificuldades conceituais.

O primeiro é que relativamente poucos trabalhadores americanos competem diretamente com trabalhadores dos países pobres. A maioria atua na produção de bens e serviços para setores em que é pouca a competição além-fronteiras, como assistência médica e construção civil.

Segundo, boa parte dos empregos em empresas industriais americanas se concentra em setores onde a concorrência mais direta é com outros países ricos, e não com países pobres. Terceiro, os trabalhadores de baixa qualificação parecem sair-se ainda pior em setores pouco afetados pelo comércio do que naqueles onde o impacto direto é maior. O fato sugere que algo mais contribui para esse destino, e a maioria dos economistas suspeita que esse fator é a mudança tecnológica.

O primeiro problema conceitual é o fato de os custos de mão-de-obra serem calculados não apenas pelos salários, mas também pela produtividade.


Faz muito sentido em termos econômicos pagar maiores salários para a mão-de-obra mais produtiva - e como os trabalhadores do Primeiro Mundo são mais produtivos que seus colegas do Terceiro Mundo, graças às diferenças de educação, gestão, equipamentos e infra-estrutura, eles são capazes de competir no mercado aberto, sem ficar mais pobres.

Se é assim, por que o aumento dos salários nos Estados Unidos foi mais lento a partir de 1973? Novamente, a produtividade é a resposta. O ritmo de crescimento dos salários desacelerou-se na última década porque, como já observamos, a taxa de crescimento da produtividade também foi menor.

Sugestivamente, muitos antiglobalistas do Terceiro Mundo exploram o tema da produtividade para pregar uma versão mais ou menos oposta do mesmo mito: a globalização está ajudando os países ricos em capital a auferir lucros ainda maiores a expensas dos pobres.

Os sindicatos mexicanos se queixam de que os Estados Unidos são mais produtivos, da mesma maneira que os sindicatos americanos choramingam que os trabalhadores mexicanos são mais baratos. De fato, as provas são no sentido de que o sistema vigente ajudou os trabalhadores do Terceiro Mundo a diminuir a distância.

Em 1960, o salário médio nos países em desenvolvimento correspondia a apenas 10% do salário médio do setor industrial nos Estados Unidos. Em 1992, a despeito de toda a fatídica globalização, a proporção subira para 30%. A explicação se situa no segundo conceito tão rejeitado pelos antiglobalistas: a globalização ajuda a aumentar o tamanho de toda a torta.

Toda a argumentação em favor do livre comércio resume-se na tese de que os recursos devem ser alocados nos países capazes de utilizá-los melhor. Esse processo nunca é indolor. Alguns trabalhadores são forçados a transferir-se para novas atividades, é certo. Outros são obrigados a aceitar reduções de salário.


Mas, no longo prazo, o processo cria muito mais vencedores do que perdedores. Evidentemente, os consumidores se beneficiam de preços mais baixos e de mais opções, mas os produtores também lucram ao se concentrar no que fazem melhor, e não naquilo em que outros são mais eficientes.

O mito do jogo de soma zero é mais pernicioso em termos de política comercial. Nos Estados Unidos, sempre que aumenta o déficit comercial o mesmo ocorre com o uso da expressão "comércio justo" e, em conseqüência, com os apelos à aplicação da Seção 301, a parte da lei sobre comércio exterior dos Estados Unidos que permite ao país a adoção de medidas retaliatórias contra as chamadas políticas comerciais não razoáveis.

Na década de 80, os comerciantes desleais eram os japoneses, que, absurdamente, exportavam produtos mais baratos e melhores para os Estados Unidos. Em fins da década de 90, a acusação pareceu deslocar-se para a China e para a Europa, que aparentemente não estavam fazendo o suficiente para reavivar suas economias, forçando, em conseqüência, o povo americano a comprar mercadorias baratas.

Conforme observaram numerosos economistas, notadamente Jagdish Bhagwati, isso é disparate de primeira grandeza. Em geral, os povos ganham com o comércio, independentemente das atitudes dos parceiros comerciais. Talvez o uso mais perverso do "comércio justo" seja quando o termo se relaciona com temas como condições de trabalho e normas ambientais.

Por exemplo, a meta de erradicar o trabalho infantil é nobre, mas, quando diz respeito ao comércio, quase sempre dissimula razões protecionistas (que dê um passo à frente o setor têxtil americano) e muitas vezes tem conseqüências desastrosas para os supostos beneficiários.

Seria melhor que as crianças miseráveis do Paquistão não passassem os dias costurando cestas em vez de freqüentar a escola, mas o fechamento das fábricas apenas as empurrará para atividades ainda mais aviltantes.


Mito 5

O desaparecimento da geografia

A idéia de que na economia global "a geografia não importa" - ou seja, que os negócios inevitavelmente migrarão para os lugares com a mão-de-obra mais barata - é uma idéia tão arraigada nos debates sobre a globalização que parece estranho observar que nem sempre esse é o caso.

Los Angeles, sem dúvida, ostenta um poderoso aparato de indústrias e serviços de alta tecnologia. Seu maior negócio, de longe, é o entretenimento. Mas, como observa o economista Joel Kotkin, três das principais atividades econômicas da cidade são a fabricação de móveis, o processamento de alimentos e a indústria do vestuário.

Esta última, graças a uma nova geração de empreendedores oriundos da Ásia, do Oriente Médio e da América Latina, é hoje provavelmente maior que o setor de defesa.

Não se trata de algo inusitado. Longe de se transferir para o exterior, a fim de se beneficiar de mão-de-obra mais barata e normas menos rigorosas, boa parte dos setores de baixa tecnologia dos Estados Unidos parece continuar no mesmo lugar.

Para cada um dos badalados fabricantes de alta tecnologia, como a Intel, ou para cada uma das elegantes empresas "virtuais" da moda, como a Nike (cujos tênis são montados em toda a Ásia), uma multidão de empresas industriais produz coisas mundanas, mas essenciais, como cadeiras de plástico, artigos de cutelaria, brinquedos, fitas métricas e camisetas.

Muitos dos "novos milionários" celebrados em livros de grande sucesso não passam de empresas familiares. Em alguns casos, sobretudo no setor têxtil e em praticamente qualquer área relacionada com a agricultura, esses heróis locais são protegidos pelas barreiras comerciais. Mas a grande maioria está fazendo fortuna em mercados abertos, exercendo atividades básicas.

Os salários e benefícios adicionais por trabalhador do setor manufatureiro nos Estados Unidos situam-se na média de 18 dólares por hora. Muitos fabricantes de baixa tecnologia sem dúvida pagam muito menos (dentro e fora da lei) ao pessoal.


No entanto, as taxas horárias nos Estados Unidos correspondem à remuneração de mais de um dia de trabalho em muitos países em desenvolvimento. Por que, então, essas empresas permanecem nos Estados Unidos?

Um dos motivos pelos quais a geografia continua sendo relevante na era da globalização decorre da importância dos clusters ou pólos na economia global - algo que Woo sempre levou em conta. Em vez de tentar desestimular os concorrentes, como a maioria dos empresários, ele difundiu sua história de sucesso em Hong Kong e ainda ajudou os empreendedores locais.

Woo tinha a forte intuição de que os negócios cercados por outros negócios semelhantes tinham muito mais chances de progredir do que outros refestelados em esplêndido isolamento.

Em conseqüência, Toytown concentra um conjunto de habilidades que dificilmente seria encontrado em outro lugar. Evidentemente, o reino de Woo não se compara com o pólo de entretenimento em Hollywood ou com o de tecnologia no Vale do Silício. Mas Toytown ajudou a consolidar o domínio do sul da Califórnia no setor de brinquedos: cerca de 60% dos brinquedos americanos passam pela região.

John Micklethwait e Adrian Wooldridge são editores da revista The Economist. Este texto foi extraído do livro A Future Perfect (O Futuro Perfeito), de autoria deles, que será lançado no Brasil pela Editora Campus


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