Revista Exame

Bill Gates: “O mundo não está acostumado a esse vácuo de liderança”

O filantropo e cofundador da Microsoft fala sobre a corrida pela vacina, as teorias da conspiração e os riscos de não atacar as mudanças climáticas

Bill Gates: “Eu sou um estudante eterno, e o pouco que eu conheço é minúsculo” (Jeff Pachoud/AFP)

Bill Gates: “Eu sou um estudante eterno, e o pouco que eu conheço é minúsculo” (Jeff Pachoud/AFP)

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Da Redação

Publicado em 8 de outubro de 2020 às 05h29.

Última atualização em 11 de fevereiro de 2021 às 15h42.

Seria bom o planeta se beneficiar de alguns grandes avanços — entre eles uma vacina para combater o novo coronavírus e inovações para atenuar o impacto das mudanças climáticas. O cofundador da Microsoft fala de sua paixão pelos dois temas, do pesadelo da desinformação e das diferenças entre Elon Musk e Steve Jobs, nesta conversa com Erik Schatzker, da Bloomberg.

O presidente Trump não esconde o desejo de ver em breve uma vacina para a covid-19, idealmente antes da eleição de novembro. Quão preocupado você está com a possibilidade de a política atrapalhar o processo de liberação de uma vacina?
Bem, seria uma tragédia. Qualquer insinuação de que um político ajudou a criar a vacina ou de que ela foi feita mais depressa por causa de um político é algo muito perigoso. Com o caso dos anúncios desmentidos sobre trata­mentos com plasma, vimos que, quando você começa a pressionar as pessoas para que digam coisas otimistas, isso pode sair totalmente do controle. A FDA [sigla em inglês de Food and Drug Administration, a vigilância sanitária americana] perdeu muita credibilidade ali.

Você ainda confia na FDA?
Historicamente, assim como o CDC (sigla em inglês do Center of Disease Control, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos) era considerado o melhor do mundo, a FDA tinha a mesma reputação de ser um órgão regulador de primeira linha. Mas estão aparecendo algumas rachaduras em algumas das coisas que eles têm dito.

E quanto ao CDC?
O CDC está em grande medida sendo deixado de lado. Há pessoas na Casa Branca que não são epidemiologistas dizendo que vêm fazendo um ótimo trabalho. Não é mais um grupo de especialistas. E o CDC na verdade cometeu alguns erros, especialmente no modo como eles conceberam os testes.

Um dos grandes riscos da politização é a confiança pública. Pesquisas mostram que um terço dos americanos vai se recusar a ser vacinado e que a maioria dos americanos crê que uma vacina esteja sendo feita às pressas. O estrago já foi feito?
Espero que não. Essas empresas são muito profissionais, e os benefícios de uma vacina são muito drásticos, não só na linha de frente do setor de saúde como também na linha de frente da economia e da educação. Precisamos pôr um fim a esta pandemia. Felizmente temos essa especialização do setor privado que podemos transformar em um bem público que chegue a todo o planeta. Algumas pessoas talvez tenham uma atitude de esperar para ver, mas acredito que, com o tempo, conseguiremos alcançar a maioria da população e chegar a um nível em que a transmissão desacelere drasticamente.

Dada a linha do tempo acelerada com que essas vacinas vêm sendo desenvolvidas, quão confiante você está de que elas não só serão eficazes como também seguras?
Não existe muita vantagem em termos de lucro para a maioria das empresas envolvidas, inclusive aquelas que terão as vacinas mais escaláveis e de menor custo. Estaremos todos de olho nos dados. Mas é bem provável, creio eu, que uma vacina segura saia desse trabalho de pesquisa e desenvolvimento.

Países ricos estão gastando bilhões de dólares para colocar seus cidadãos nos primeiros lugares na fila da vacina. Onde isso deixa o restante do mundo?
Essa questão é muito importante porque, seja do ponto de vista humanitário, seja de liderança estratégica, ou mesmo para prevenir que a epidemia continue voltando, precisamos de um plano para enviar a vacina ao mundo inteiro. Os Estados Unidos têm investido bastante no financiamento de pesquisa e desenvolvimento para os testes. O que os Estados Unidos não têm feito é participar da criação de fábricas e liberar recursos para aquisições para o resto do mundo. Algo entre 8 bilhões e 10 bilhões de dólares financiaria essas atividades internacionais.

Você vem falando em criar uma coalizão de governos, empresas e bancos de fomento para organizar e financiar vacinas para os países pobres. Quão realista é isso?
O único país que não tem comparecido a essas discussões são os Estados Unidos. O Congresso sempre fez dos Estados Unidos uma liderança em saúde global. Nós erradicamos a varíola, enfrentamos o HIV. As pessoas ainda esperam que preenchamos esse vácuo. Os outros países, inclusive os líderes europeus, têm dado passos à frente com contribuições generosas. Mas não é o suficiente sem os Estados Unidos. Precisamos de tudo isso junto, e quanto antes melhor. O mundo não está acostumado a esse vácuo de liderança.

Estou presumindo que você se aproximou do governo Trump em busca de apoio para esse plano de produção e distribuição mundial. Quão receptivo o governo americano tem sido até o momento?
Tenho falado com republicanos e democratas, com o Congresso e o Executivo. Quando parecia que sairia uma lei complementar, a impressão era que pelo menos 4 bilhões de dólares para a vacina entrariam nessa proposta. Agora não está mais claro se vai mesmo haver uma lei complementar, o que é uma pena. Quando falamos em acabar com a epidemia americana, essa peça global tem de ser parte ­integrante do quadro geral. Você precisa literalmente gastar bilhões para salvar trilhões. Vai ser a parte de maior impacto de qualquer alocação [de recursos] que seja feita.

A Fundação Gates vem documentando a catástrofe econômica que a covid-19 está produzindo. E se estivermos diante de uma recuperação em K, com algumas pessoas emergindo da pandemia no topo e outras ainda mais enfraquecidas e ficando mais ainda para trás?
Enquanto a doença estiver à solta, várias pequenas empresas vão ser impactadas de modo desproporcional. E há a desigualdade disso — seja entre cidadãos deste país, trabalhadores do setor produtivo ou administrativo, seja negros tendo uma taxa de contaminação muito mais alta do que o resto da população —, os países pobres não conseguem fazer empréstimos e gastar dinheiro como os Estados Unidos e outros países ricos têm feito. Quase todas as dimensões da desigualdade estão sendo acentuadas aqui. Temos de dar um basta a essa doença e voltar para onde estávamos.

Seria fácil ignorar os teóricos da conspiração que acreditam que você ajudou a criar e propagar o coronavírus se não houvesse tantos deles. Essa fama está se tornando um impedimento para seus esforços ou para o trabalho da fundação?
É tão maluco sugerir o contrário. Nós fazemos vacinas, e isso está salvando milhões de vidas. Dizer que uma vacina é de algum modo maligna ou que as mortes não estão acontecendo de verdade... para mim, é surpreendente quanto isso é interessante e como se espalha mais depressa do que a verdade. Como essas plataformas de mídias sociais deviam tentar evitar se tornar a fonte dessas invenções estranhamente interessantes? Esse é um debate ou discussão que teremos de continuar a promover.

Uma vítima da pane na relação da América com a China é a colaboração na pesquisa do vírus e na contenção da epidemia. Você compartilha da desconfiança em relação às intenções da China?
Para mim, há casos em que podemos ter uma situação ganha-ganha, em termos de resolver problemas médicos, ou trabalhar juntos em inovação contra mudanças climáticas. Eu odiaria ver o que algumas pessoas propõem, de levar adiante essa separação completa. Isso seria um cenário perde-perde.

Há sobreposições entre o desafio de combater a pandemia e lutar contra o aquecimento global. Que passos o governo pode tomar para abordar os dois problemas ao mesmo tempo?
A pandemia ilustra que o governo não cuidou de nós, apesar dos alertas terem sido feitos. O mesmo paradigma vale para o clima. Infelizmente, o problema só piora, e não há uma solução como uma vacina, em que você pode gastar dezenas de bilhões de dólares e botar um fim ao problema. O caso das mudanças climáticas é ainda pior. O dano feito a cada ano será muito maior do que temos visto durante esta pandemia.

Joe Biden tem um plano ambicioso e caro para combater as mudanças climáticas e mudar o fornecimento de energia americano para fontes renováveis. O que você acha dessa abordagem?
Ignorar as mudanças climáticas é um erro gigantesco. É um problema muito difícil de resolver, e algo cujo trabalho precisa ter início várias décadas antes de quando se quer aplicar determinada solução, porque estamos falando em mudar a maior parte da economia mais física do mundo. Transportes, indústrias, edifícios, eletricidade, todas essas coisas ­— e a agricultura — colaboram para as emissões. Para muitas dessas fontes de emissões, nós não temos soluções.

Quão realista é a meta de Biden de 100% de energia limpa até 2035?
Acho que vai ser muito difícil de atingir, mas é uma meta excelente. Sem inovação, e muita inovação, não vamos conseguir chegar lá.

O plano Biden tem um custo de 2 trilhões de dólares. É um bocado de dinheiro para gastar em quatro anos. Você tem confiança de que o governo americano consiga fazer isso de modo responsável e eficiente?
A parte que eu entendo melhor é a de pesquisa e desenvolvimento, que utilizaria parte desse dinheiro. Se nós gastarmos o mesmo volume que destinamos à pesquisa na área da saúde por meio dos NIH [National Institutes of Health, os Institutos Nacionais de Saúde], um custo de cerca de 35 bilhões de dólares por ano, se tivéssemos um instituto nacional de energia e do clima, consigo imaginar esse dinheiro fazendo uma diferença enorme e criando todo tipo de empresas que poderiam exportar suas inovações.

O dinheiro do contribuinte é mais bem gasto implementando tecnologias limpas existentes, ou seria melhor investir em novas tecnologias?
Só a inovação focada nos problemas mais complexos nos dá chance real de chegar a zero [emissões]. Nós temos focado nos problemas que ainda são complexos mas não supercomplexos, como veículos de passeio.

Está claro que o clima estará nas urnas em novembro. O que mais está em jogo para você nesta eleição?
É um contraste e tanto. Eu não revelo em quem vou votar por causa de meu trabalho com a Fundação Gates. Adotamos o compromisso de trabalhar com qualquer governo. Tivemos ótimas relações com os dois partidos. Penso que, em termos de clima, você teria mais foco e mais conhecimento especializado com Biden do que com o governo atual.

Ou seja, você não vai apoiar nenhum candidato?
Acho que minhas convicções são bastante óbvias. No entanto, quero poupar minha voz em termos de influenciar as pessoas.

Um dos pontos em comum tanto da pandemia quanto do aquecimento global é uma desconfiança crescente na ciência. Onde este país vai parar se os eleitores não acreditarem no que os dados científicos mostram e no que os modelos científicos indicam?
Ninguém conhece toda a ciência. Eu sou um estudante eterno, e o pouco que eu conheço é minúsculo. Nós deveríamos escolher alguém que acredite em especialistas, que possa admitir erros e esteja disposto a apresentar um plano de longo prazo. Dizer apenas “nós somos um país egoísta” talvez funcione para algumas coisas; para outras que exigem cooperação global, porém, é um enorme problema.

Bill Gates, fundador da Microsoft: primeira geração de devs | Doug Wilson/Getty Images

Bill Gates, fundador da Microsoft: primeira geração de devs | Doug Wilson/Getty Images (Doug Wilson/Getty Images)

Você é um célebre investidor em tecnologia energética. Onde considera que está a maior promessa hoje em termos de avanços genuínos?
Todos os avanços serão de alto risco. Eu perdi muito dinheiro em empresas de baterias. Creio que não devíamos descartar a fissão nuclear porque os projetos das próximas gerações podem ser bastante seguros e econômicos. Isso se encaixaria perfeitamente em nossa situação. Mesmo coisas consideradas fora da curva, como fusão, [são áreas em que] deveríamos continuar a investir porque têm um potencial enorme. Estamos para trás em aproximadamente duas dúzias de grandes inovações. Como podemos melhorar o modo de produzir aço? Ou cimento? Não são problemas simples. Porém, se você apoiar 20 ou 30 abordagens para cada um desses problemas, sua chance de sucesso é bastante grande, na verdade, particularmente se você criar um mercado inicial e tiver um produto com preço totalmente competitivo, como baterias para carros ou painéis solares.

O armazenamento claramente seria um divisor de águas na questão da mudança para energias renováveis, como eólica e solar. Nós estamos atualmente mais próximos do que você chamou de milagre do armazenamento?
Não. É só pegar Tóquio durante um período de duas semanas quando acontece um tufão. Nenhuma das fontes renováveis está disponível. É mais energia do que todas as baterias que o mundo já construiu, multiplicada por um número enorme. No caso das baterias automotivas, sim, nós temos feito um ótimo trabalho e o tipo de avanço incremental que claramente virá acompanhado disso permitirá aos carros elétricos de passeio ir dos poucos por cento atualmente existentes para algo muito mais popular na próxima década ou duas décadas. Isso é a notícia superboa. Mas esse é só um pedaço do problema dos transportes. Os aviões são muito, muito mais difíceis [de resolver] do que os carros de passeio. Olhando para armazenamento, temos de admitir que, quando se fala em armazenamento em termos de painéis, há uma grande possibilidade de nunca chegarmos a ter um avanço desses. Temos de buscar caminhos alternativos para fornecer energia de modo totalmente limpo, confiá­vel e drasticamente ampliado.

Você acabou de descrever carros elétricos como a “parte fácil” da economia sustentável. Isso quer dizer que talvez não haja tanto valor em empresas como a Tesla e a Nikola, como sugere o mercado de ações?
O fato de Elon Musk e outros terem criado um excelente carro elétrico é uma contribuição enorme aos esforços de combate ao aquecimento global. Ele fez isso com qualidade. Ainda é um pouco caro, mas ele pegou aquele mercado inicial, e esse mercado vai crescer, e outras empresas automobilísticas, vendo o sucesso dele, entrarão no segmento. A pergunta sobre qual o lucro por veículo e qual a participação de mercado da Tesla eu deixo para quem mexe com ações. Não é um problema relacionado ao aquecimento global de modo algum. A dificuldade em outras áreas é muito maior, e não estou de jeito nenhum menosprezando a necessidade de aumentar a participação de mercado dos veículos elétricos, mas, em termos relativos, esse é um setor muito mais simples do que o da economia industrial, em que nosso progresso é minúsculo. Ainda temos bastante subinvestimento nessas áreas­ mais complexas.

Elon Musk construiu uma empresa de carros elétricos. Ele fabricou foguetes reutilizáveis. Ele é um inovador até mesmo em tecnologia de túneis. Algumas pessoas o descreveram como o novo Steve Jobs. Você conheceu Jobs. Elon Musk é o novo Steve Jobs?
Quando você conhece alguém pessoalmente, esse tipo de simplificação grosseira parece esquisito. Elon é mais um engenheiro que põe a mão na massa. Steve era um gênio em design, seleção de pessoas e marketing. Ninguém entraria em uma sala e confundiria os dois.

Hoje, você ainda se impressiona tanto com as coisas de ponta que as pessoas criam em tecnologia industrial quanto teria ficado há 20 anos?
A inovação hoje é mais rápida. As ferramentas da tecnologia digital, que gente como eu e Steve Jobs teve sorte o suficiente para estar envolvida na criação, na prática permitiram compartilhar informação e cooperação global em problemas difíceis para melhorá-los. Temos visto isso na velocidade com que estamos desenvolvendo estas vacinas. Não poderíamos ter feito isso 10 anos atrás. Com o clima, precisamos de toda essa velocidade extra e mais. Precisamos de políticas econômicas, precisamos de mais dinheiro para pesquisa e desenvolvimento, precisamos de mais capital de risco em função de todas essas áreas complexas. Mas sim, a inovação está acelerando, e esse é o único motivo pelo qual dá para ser otimista quanto ao aquecimento global.


Esta entrevista foi realizada durante o Festival Verde Bloomberg

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