Revista Exame

O mercado imobiliário sob suspeita

As construtoras vivem um paradoxo: as condições para o setor nunca foram tão favoráveis, mas seus resultados, de forma geral, são péssimos. E isso deixa muita gente assustada

Vista do bairro de Pinheiros, em São Paulo: 2011 foi o pior ano para o setor desde a onda de aberturas de capital na Bovespa (Germano Lüders/EXAME.com)

Vista do bairro de Pinheiros, em São Paulo: 2011 foi o pior ano para o setor desde a onda de aberturas de capital na Bovespa (Germano Lüders/EXAME.com)

DR

Da Redação

Publicado em 19 de março de 2012 às 10h37.

São Paulo - Pelo que se vê na superfície, este tinha tudo para ser um momento estupendo para as empresas de construção brasileiras. Nunca, nunca mesmo, foi tão caro comprar um imóvel no Brasil. Qualquer pessoa que pensa em adquirir um apartamento nas grandes cidades do país se assusta com o que vê.

Os preços sobem, sobem e, depois, sobem mais um pouco — no Rio de Janeiro, o valor do metro quadrado aumentou 155% em míseros três anos. Outras capitais, como São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Recife, experimentam euforia semelhante.

Há casos em que o nível dos preços atingiu o limiar da insanidade, como o já mítico prédio em construção em Ipanema, que custará 50 000 reais o metro quadrado.

Canteiros de obra e espigões pontilham o tecido urbano, das metrópoles ao interior, numa oferta que, como os preços mostram, não dá conta da demanda. Pois mesmo com essa exuberância toda, as construtoras brasileiras estão passando por um aperto como há muito não se via.

Endividadas, menos rentáveis e atrasando obras como nunca, essas empresas estão deixando seus clientes ensandecidos — e, sobretudo, preocupados com a possibilidade de um fiasco nos moldes da falência da Encol, que deixou 42 000 clientes na mão em 1999. Eis o paradoxo: é o melhor dos tempos, e é o pior dos tempos. 

As dificuldades enfrentadas pelas grandes construtoras brasileiras ficaram evidentes em 2011, naquele que pode ser considerado o pior ano da história recente do setor. Para qualquer lado que se olhasse, lá estava uma má notícia. As ações de construção civil foram o destaque (negativo) absoluto da Bovespa — o valor de mercado das 17 empresas do setor caiu 39%.

Essa queda se deve a um solavanco inédito no desempenho operacional das construtoras, que têm, hoje, as piores margens de lucro desde 2007 (como, até 2007, essas empresas não tinham ações em bolsa e divulgavam poucas informações financeiras, é impossível saber como eram seus números antes disso).

Além de lucrar menos, as construtoras viram seu nível de endividamento passar de 29%, em 2008, para 68%, em 2011. O que era uma preocupação contida com a saúde das construtoras virou um corre-corre no fim do ano, quando as ações da Gafisa, quarta maior construtora do país, entraram numa espiral negativa em razão dos maus resultados. 


Só em dezembro os papéis caíram 23%, enquanto o Ibovespa ficou praticamente estável. Em determinado momento, os investidores aparentaram ter dúvidas sobre sua capacidade de sobrevivência, algo que logo colocou um mercado que emprega 3 milhões de pessoas sob uma pesada nuvem de incerteza.

Se para seus acionistas a vida não está fácil, é a clientela das construtoras que tem mais motivos para lamentar a atual fase das empresas.

As construtoras brasileiras estão tendo problemas naquilo que deveria ser sua especialidade — construir. Calcula-se que mais de 800 000 famílias estejam vivendo aquele que é o maior drama para quem compra um imóvel na planta: o atraso na entrega das chaves. Nada é mais raro, hoje, que uma obra que siga mais ou menos o cronograma inicial.

A média de atraso supera os quatro meses, mas pululam casos de prédios que deveriam ter sido entregues há mais de um ano. Com as construtoras se embananando, o número de reclamações por atraso nunca foi tão grande.

Entre 2009 e 2011, as queixas no Procon de São Paulo cresceram 113%, enquanto o número de imóveis novos vendidos por ano caiu 13%. A Associação dos Mutuários da capital paulista registrou em 2011 um aumento de 59% nas queixas contra construtoras.

O que está acontecendo com as incorporadoras brasileiras? Após duas décadas renegadas a coadjuvantes na economia, essas empresas passaram, nos últimos cinco anos, por um movimento de ascensão e queda de tirar o fôlego.

O aumento do crédito imobiliário, impulsionado pela baixa nos juros e por mudanças regulatórias que tornaram mais seguro para os bancos emprestar, fez o setor renascer. Líderes como Cyrela e Gafisa abriram o capital na bolsa para financiar sua expansão e, em seguida, qualquer concorrente com condições mínimas estava fazendo o mesmo.

Essa foi a fase do oba-oba, quando empreendedores como Elie Horn, da Cyrela, e Rubens Menin, da MRV, entraram para a lista de homens mais ricos do país no momento em que suas empresas dobraram de tamanho.


Levaria alguns anos para que se constatasse que, para agradar aos investidores, as construtoras haviam entrado num período de crescimento descontrolado — que, logo, cobraria sua fatura. “Esquecemos os fundamentos do negócio para fazer a vontade dos acionistas”, diz Jorge Cury Neto, um dos fundadores da Trisul — cujo valor de mercado é 70% inferior ao da data do IPO, em 2007.

Erros de estratégia 

As dores causadas pelo crescimento podem ser separadas em dois grupos. O primeiro diz respeito a erros na estratégia das empresas. A construção de imóveis para a baixa renda, que parecia um mercado promissor, provou ser um terreno pantanoso. Trisul e Gafisa, as duas empresas do setor com piores resultados, foram justamente aquelas que investiram na baixa renda com maior agressividade.

Além disso, as grandes do setor fizeram parcerias que se mostraram desastrosas com construtoras locais para crescer fora da Região Sudeste. A Cyrela chegou a terceirizar 80% de suas obras, executadas por 11 parceiros regionais. Deu tudo errado. O caso mais emblemático é o empreendimento Le Parc, em Salvador.

O terreno, de 100 000 metros quadrados, que abrigará 18 torres com 1 138 unidades, ganhou publicidade por ser o maior canteiro de obras da América Latina. O gigantismo do projeto, aliado a uma execução problemática, fez o Le Parc atrasar dez meses — até agora.

A lambança de Salvador ajuda a demonstrar como é falso o mito segundo o qual as obras que atrasam são apenas aquelas voltadas para a baixa renda. O Le Parc nada tem de Minha Casa, Minha Vida: os imóveis são avaliados, hoje, em cerca de 800 000 reais.

“A vida da minha família está parada há quase um ano. Não consigo fazer planos sem saber quando terei meu imóvel”, diz o empresário Eliezer Vasconcelos, de 50 anos, que já quitou o apartamento, mas não recebeu as chaves. 

É bem verdade que o Brasil não ajudou muito. Como estava em franca expansão, o setor de construção civil experimentou, sem anestesia, os dolorosos efeitos dos gargalos de nossa economia. O maior deles, a mão de obra. A construção civil emprega diretamente 3 milhões de pessoas no Brasil — só no ano passado 222 000 vagas foram abertas. 


O problema é que está faltando gente para atender a essa demanda toda. Os salários mais que dobraram nos últimos quatro anos — e o aumento no número de empreendimentos faz com que as empresas tenham de apelar para operários cada vez menos qualificados.

A falta de gente, aliada ao aumento nos preços do material de construção, fez o índice de preços da construção aumentar 34% nos últimos quatro anos, quase 30% mais que a inflação ao consumidor. No último ano, todas as construtoras foram obrigadas pela rea­lidade a rever para cima as projeções de custos.

Mesmo o aumento nos preços tem sido insuficiente para compensar a alta nas despesas: a rentabilidade das construtoras listadas na Bovespa caiu 44% no ano passado. “O setor estava vivendo num mundo de fantasias e, agora, está sendo trazido à realidade”, diz João da Rocha Lima, professor do núcleo imobiliário da Escola Politécnica da USP.

Para alívio de quem comprou ou pretende comprar um imóvel, a mentalidade dos empresários do setor mudou após o baque recente. No último ano, as grandes incorporadoras se reor­ganizaram: passaram a lançar menos empreendimentos, a encerrar parcerias regionais pouco lucrativas e a concentrar esforços para entregar o que já está em obras.

O objetivo é gerar caixa pela primeira vez desde 2006. Também é a primeira vez desde então que as empresas fazem planos de diminuir de tamanho ou ficar onde estão — e essa é, em princípio, uma boa notícia porque indica que o crescimento poderá ser sustentado daqui para a frente.

A PDG, maior incorporadora do país, pretende lançar um volume semelhante ao do ano passado, uma frea­da impressionante ao se considerar que a empresa crescia 50% ao ano, em média. A Gafisa já anunciou que vai se concentrar em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na Trisul, a previsão é que o volume de lançamentos continue sendo menos da metade do que era em 2010.

"Olhos de São Tomé" 

Para a imensa maioria das pessoas, nenhuma decisão econômica é tão importante quanto a compra de um imóvel. Confiança na capacidade de entrega de uma construtora é algo tão crucial quanto a certeza de que seu banco não vai quebrar ou que o governo honrará o pagamento de sua dívida pública. 

Essa é uma das razões que fazem de um soluço na construção civil algo muito mais preocupante para as pessoas do que, digamos, problemas financeiros na indústria têxtil. No caso brasileiro, há um motivo extra para cautela. Em 1999, a Encol, então maior construtora da América Latina, faliu, deixando 710 obras inacabadas e 42 000 clientes na mão.


A falência foi causada pela criatividade dos diretores da empresa, que usavam o dinheiro de um prédio para financiar a construção do seguinte, até que o castelo de cartas ruiu. O fantasma de uma nova Encol ainda frequenta os pesadelos de quem compra um imóvel na planta. Corre-se o risco de algo parecido hoje? Felizmente, o risco é baixíssimo.

A saúde das construtoras também diz muito sobre o estado da economia. A cadeia da construção civil imobiliária representa 6% do produto interno bruto brasileiro, mas emprega 10% da população economicamente ativa. Sua cadeia de fornecedores é imensa e se espalha por diversos setores.

Para construir um prédio de 20 andares, são necessários 1 500 toneladas de cimento, 14 000 metros quadrados de pisos e azulejos, 1 200 torneiras, 150 toneladas de argamassa, 40 quilômetros de fios elétricos, 6 000 litros de tinta, além de serras, furadeiras, betoneiras, elevadores e gruas.

A cadeia produtiva da construção civil emprega mais de 11 milhões de pessoas. De uma Votorantim a pequenas fabricantes de portas, da Gerdau à indústria de tintas, passando por bancos e corretores de imóveis, todos orbitam em torno das empresas de construção imobiliária e dependem, em boa medida, de seu desempenho. 

Quem espera a entrega de um imóvel sabe que os problemas do setor estão longe de ser resolvidos. Mas há sinais de que a onda de pessimismo do ano passado tenha sido um pouco exagerada. Nem todas as incorporadoras estão com problemas. A Eztec, por exemplo, decidiu manter sua operação concentrada na cidade de São Paulo, e seu lucro aumentou quase cinco vezes desde 2007.

Com apenas 250 funcionários, a Helbor resistiu à tentação de crescer exageradamente e, com projetos voltados para a clientela de alta renda, garantiu margens de lucro na casa dos 20% — o dobro da média do setor. “Está todo mundo olhando para as empresas imobiliárias com olhos de São Tomé, querendo ver para acreditar que vamos entregar resultados”, diz José Gra­bowsky, presidente da PDG, maior incorporadora do país.

Em janeiro, o magnata americano Sam Zell, um dos investidores imobiliários mais bem-sucedidos de todos os tempos, fez uma proposta por ativos da Gafisa em conjunto com o fundo brasileiro GP Investimentos — Zell e GP já haviam sido sócios da companhia no passado. Depois do anúncio de Zell, as ações da Gafisa subiram mais de 10%. Outros investidores avançaram sobre as ações do setor em busca de pechinchas.

Os papéis da PDG e da MRV estavam, até o fechamento desta edição, entre as maiores altas do ano na Bovespa. Ações, como bem se sabe, sobem e descem, mas o otimismo dos investidores é, sem dúvida, uma boa notícia. Sinal de que o pedacinho de céu azul na foto que ilustra a abertura desta reportagem tende a aumentar, em vez de diminuir de vez.

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