Revista Exame

Gillette se rende ao estilo desajeitado dos millennials e cresce além das lâminas

Óleos e ceras para quem quer manter os fios ganham destaque na linha da marca, que faz parte de uma indústria global de 56 bilhóes de dólares

Gillette: marca expande linha de produtos para achar um espaço na masculinidade moderna (Breakfast for Dinner/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

Gillette: marca expande linha de produtos para achar um espaço na masculinidade moderna (Breakfast for Dinner/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

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Da Redação

Publicado em 24 de junho de 2022 às 06h00.

Às 7 da manhã, cinco dias por semana, cerca de 70 homens batem ponto em um complexo industrial de Rea­ding, no extremo oeste de Londres. Um técnico os leva por um corredor até os cubículos, onde eles se barbeiam diante de espelhos equipados com câmeras de alta definição. Do outro lado dos espelhos, a equipe de sommeliers de lâminas da Gillette — treinada para descrever a suavidade do deslize, a teimosia do pelo encravado, o ritmo com que o sabão é lavado, e o som que o aço faz ao guilhotinar os pelos — debate a eficácia de navalhas desenvolvidas ali.

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Caso eles queiram um olhar mais atento para a espessura do pelo que passa por um barbea­dor ou para o ângulo exato em que ele se desprende do folículo, um microscópio pode produzir uma renderização 3D de cada fio de bigode, com precisão de até 5 micrômetros. É o único instrumento do tipo, e demorou cinco anos para ser desenvolvido pela empresa e por um prestador de serviços militar que também desenha simuladores para pilotos de caças.

“Você está de fato decifrando o aspecto mecânico de simplesmente remover o pelo, mas também está observando onde folículo, pelo, pele e sebo se misturam”, diz Joia Spooner-Fleming, vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento da Procter & Gamble, proprietária da Gillette. “É meio como que em Jerusalém.”

O complexo de Reading é onde a Gillette traça o futuro do autopaisagismo masculino. Suas lâminas são usadas em cerca de 1 bilhão de barbeares todas as manhãs, o que faz da Gillette de longe a maior marca da indústria global de 56 bilhões de dólares voltada para os cuidados masculinos. Mas o lugar é também um lembrete de tempos melhores.

O slogan da Gillette costumava dizer que seus produtos de barbear eram “o melhor que um homem pode ter”. Isso supunha que a marca estaria vendendo algo que um homem queria. E esse tem sido cada vez menos o caso para uma nova geração que não considera estar de barba feita um ideal masculino, além de encontrar alternativas mais baratas quando quer cuidar de pelos encravados.

No mundo todo, mais da metade dos homens hoje tem barba, incluindo dois terços dos homens millennials, afirma Gary Coombe, executivo-chefe do braço de cuidados da P&G. “A verdade é que meu pai tem barba e meu filho tem barba, e aqui estou eu dirigindo a maior empresa de barbear do mundo”, diz. “É uma vergonha.”

Ao longo de grande parte da última década, a abordagem da Gillette a esse fenômeno foi esperar. Apesar do tamanho da empresa, o que traz bons insights sobre o comportamento do consumidor, a aposta dos marqueteiros da divisão de cuidados com a pele era de vida curta para os pelos faciais.

O estoicismo se mostrou catastrófico. A Gillette vinha vendendo uma linha envelhecida de produtos para um público cada vez menor, em vez de inovar em sintonia com o visual lenhador chique prevalente entre atores, atletas, músicos, modelos de revista, influencers digitais, baristas, barmen e praticamente qualquer homem de bairros chiques de Londres a Los Angeles.

Produtos mais vendidos da Gillette ao longo das décadas: ênfase em itens para barba 100% feita ficou para trás (Breakfast for Dinner/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

Para compensar a queda nas vendas de barbeadores e lâminas, a Gillette aumentou preços, o que forrou o balanço da empresa, mas afastou consumidores. Os homens migraram para alternativas mais baratas e sintonizadas com os millennials, como o Dollar Shave Club e a Harry’s, negócios emergentes graças ao modelo de assinatura.

Em 2019, com a receita da Gillette naufragando, a P&G rebaixou o valor da marca em 8 bilhões de dólares. Uma pandemia em que adultos questionaram até a serventia de usar calças numa reunião pelo Zoom não melhorou muito a situação.

Hoje, a Gillette está tentando atrair os consumidores mais jovens com uma abordagem de mão dupla. Em 2020, a empresa lançou uma linha de limpeza facial, géis de barbear, pentes, ceras, óleos e lâminas próprias para barba com o nome do fundador da companhia, King C. Gillette.

Os produtos são uma mudança estratégica para uma empresa conhecida por, no passado, repreender funcionários com barba por fazer e por criticar os barbudos que visitavam seu quartel-general em Boston.

Ao mesmo tempo, a empresa quer que o ato de se barbear volte a ser cool. Ela está bolando barbeadores futuristas na unidade de Readings com foco em homens ricos, sob uma nova linha chamada ­GilletteLabs.

Isso inclui uma navalha à la sabre de luz de 170 dólares, com uma lâmina aquecida que imita a sensação de uma toalha quente. Outra invenção da GilletteLabs, apresentada no início deste ano, esfolia o rosto enquanto raspa.

Reimaginar a Gillette para o homem moderno é um dos desafios mais difíceis da indústria de bens de consumo. No passado, empresas do tamanho da P&G simplesmente teriam engolido negócios menores e inovadores. Só que a predileção millennial por marcas de lotes pequenos em vez de produtos feitos para consumo em massa da era boomer tem forçado a velha guarda a competir com a nova.

“Para sobreviver, as grandes marcas têm hoje de construir esse nicho dentro de casa, cultivar uma base fiel de clientes e oferecer valor de um jeito que nunca fizeram”, diz ­Gaurav Kalwani, analista da consultoria Euromonitor International. “O sucesso da King C. ­Gillette e da GilletteLabs será uma prova para sabermos se isso é possível.”

Em 2005, a P&G comprou a Gillette por 57 bilhões de dólares. Logo depois do anúncio da aquisição, o site de sátira The Onion tirou sarro da Gillette com um artigo cujo título era F-da-se, Vamos Lançar um de Cinco Lâminas. Aproveitando a deixa, em 2006 a Gillette mais uma vez vestiu a carapuça da piada e lançou um barbeador de cinco lâminas, o Fusion.

Em 2008, a empresa atingiu a marca de 1 bilhão de dólares em vendas, mais depressa do que qualquer produto da P&G. Em 2010, o Fusion virou o barbeador mais vendido do mundo. Naquele ano, Bob McDonald, então CEO da P&G, se vangloriou a investidores de que não conseguia fabricar os barbeadores Fusion ProGlide (um upgrade mais fino do original) num ritmo mais rápido do que o da demanda.

Só que o gosto do consumidor estava mudando. Ben Affleck, George Clooney, Jason Derulo, James Harden, Kit Harington, LeBron James, Jared Leto, Dev Patel, Joaquin Phoenix, Keanu­ Reeves, Paul Rudd e muitos outros homens famosos usavam barba com orgulho. Lloyd Blankfein, então CEO do Goldman Sachs, até trouxe a barba para Wall Street.

Os executivos da Gillette não conseguiam acreditar. A marca, um dos maiores patrocinadores de esportes profissionais, viu jogadores que ela financiava começarem a cultivar barbas — entre eles David Beckham, Roger Federer e Alex Ovechkin, nenhum dos quais a Gillette tinha pensado em obrigar legalmente a manter a cara limpa.

Para administrar o baque, a empresa convidou a imprensa para uma cerimônia de cortes pós-temporada, com atletas como o quarterback Tom Brady. (Alguns atletas profissionais não se barbeiam durante os playoffs para evitar que tenham azar no campeonato.)

A ideia por trás do factoide era mudar a “psique da população”. Não ajudou. As vendas do Fusion ProGlide deterioraram, e com elas a estratégia de colocar mais lâminas nos barbeadores e aumentar o preço. No início da década de 2010, o progresso do negócio de barbear veio das empresas novatas. O Dollar Shave Club diminuiu preços e construiu a fidelidade do cliente com um modelo de assinatura de 1 dólar por mês.

Num anúncio, o cofundador Michael Dubin questionava por que os homens gastariam 20 dólares por mês em lâminas para 19 dólares irem para o tenista Roger Federer e perguntou se os barbeadores precisavam de “uma alça vibratória, uma lanterna, um coçador de costas e dez lâminas”.

Paul Polman, que passou 27 anos na P&G antes de virar CEO da Unilever, comprou o Dollar Shave Club por 1 bilhão de dólares em 2016, em uma afronta ao sufocamento da indústria por parte de seu ex-empregador. A resposta da Gillette a tudo isso foi judicial.

Primeiro a empresa processou a Harry’s, alegando violação de patente. (O caso foi indeferido em uma semana.) Depois entrou com uma ação contra a Shavelogic, empresa cofundada por antigos executivos da Gillette, alegando roubo de segredos comerciais. (Nesse caso, fecharam um acordo com valor não revelado.)

Nenhuma dessas disputas tratava das reclamações de que os produtos da Gillette simplesmente eram caros demais, e que o serviço Clube de Barbear Gillette não conseguira atrair muitos assinantes. Em uma postagem em seu blog em 2017, em meio a vendas que definhavam, a Gillette se desculpou com os clientes pelo alto custo dos barbea­dores e, no fim, cortou preços.

O ator Jared Leto: para virar o jogo na Gillette, a P&G fez pesquisas sobre a cara da masculinidade moderna (Gilbert Carrasquillo/GC Images/Getty Images)

Quando Gary Coombe assumiu, em 2018, os estrategistas da Gillette­ ainda estavam bolando ideias para convencer homens a cortar a barba. A P&G reduziu o valor da Gillette, e Coombe começou a planejar um novo rumo: a empresa acolheria os pelos faciais pela primeira vez.

“Veja, quem poderia defender a posição de dizer que temos de continuar fazendo o que estávamos fazendo?”, diz Coombe. “Porque não estava funcionando.” Em 100 dias da gestão de Coombe, ele teve uma conversa com os principais gestores. Alguns diziam ser absurdo a Gillette alienar homens afluentes, urbanos e millennials. Os pelos labiais de King Camp teriam de ser penteados, depilados e estilizados.

Quem melhor para dar uma mão com isso do que a própria Gillette? Muitos marqueteiros de Coombe duvidaram da estratégia. “Não é preciso voltar muitos anos na história da Gillette para um tempo em que, se alguém visitasse o QG de barbear em Boston, fosse fornecedor, fosse agência de publicidade, fosse quem quer que fosse, até mesmo repórter, e tivesse barba não era bem-vindo”, afirma Coombe.

Depois de estudar o público-alvo, a Gillette percebeu que a imagem puritana do homem sem barba era uma construção interna. Muitos dos jovens entrevistados nem sequer tinham ouvido falar da marca.

E, assim, a empresa começou a desenvolver uma linha de produtos destinada a cuidados pessoais. O primeiro passo foi a P&G tentar definir a masculinidade moderna. A empresa notou em pesquisas que “os homens têm ostentado barbas — longas e cheias — por muito mais tempo do que não têm. Homens famosos e poderosos, e mesmo deuses, raramente eram retratados sem elas”. Também analisou que as mudanças nos papéis de homens e mulheres no lar e no local de trabalho têm bagunçado a divisão entre os sexos.

Para capturar a evolução social num óleo para barba seria preciso entrevistas em grupo. Uma das principais descobertas da Gillette foi que homens com pelos faciais ainda se barbeiam. A equipe trabalhou em um barbeador feito para cobrir a linha do pescoço com duas lâminas divididas por uma ponte macia que, segundo a Gillette, reduz os pelos encravados.

Os produtos chegaram ao mercado em 2020 na cor azul-marinho com o logo da marca em cobre, lembrando as cores que a empresa usava em sua fundação. E têm feito um sucesso enorme: mesmo com a pandemia subvertendo os hábitos de cuidados pessoais, as vendas totais chegaram a 200 milhões de dólares.

Cerca de um terço de todos os produtos de cuidados com pelos faciais vendidos na Europa é hoje da linha King C. Gillette, e as vendas vão bem também na Ásia e no Oriente Médio. A King C. Gillette ajudou a divisão de cuidados pessoais da P&G a aumentar a receita em 6% em 2021 em comparação a 2020, para 6,4 bilhões de dólares. Isso pôs fim a quase uma década de quedas anuais.

Ainda assim, mesmo com todo o sucesso dos novos pentes, óleos, emolientes e ceras, nada beneficiaria mais a Gillette do que a volta da barba feita. Vender barbeadores e lâminas de reposição dá um impulso mais sólido aos resultados de longo prazo do que vender uma lata de cera para o millennial.

Por isso, o objetivo da GilletteLabs é ressuscitar a rotina de se barbear associando-a a inovações. Em fevereiro, a empresa soltou um anúncio no Super Bowl pela primeira vez em 16 anos, para introduzir um barbeador de cinco lâminas da GilletteLabs.

O produto tem uma barra esfoliante para remover sujeira e detritos. A ideia é que os homens não precisem lavar o rosto antes de se barbear. Um executivo da P&G prometeu a uma publicação britânica do segmento que “é o último barbeador de que você vai precisar”.

 

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