Revista Exame

De Mauá ao MIT: a nova mobilidade social no Brasil

O que algumas histórias impressionantes de superação pela educação contam sobre a nova mobilidade social brasileira

Dejanir Silva, na estação de trem de Mauá: “Não sou especial. Eu estudo” (Germano Lüders/EXAME.com)

Dejanir Silva, na estação de trem de Mauá: “Não sou especial. Eu estudo” (Germano Lüders/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 10 de junho de 2011 às 06h00.

Dejanir Silva tem nome, sobrenome e origem de gente humilde. Cresceu em Mauá, cidade operária na região metropolitana de São Paulo. Durante a infância e parte da adolescência, viveu com os pais, o irmão e uma tia em uma casa com apenas um quarto.

Aos 17 anos, meses antes de se formar numa escola pública de qualidade duvidosa, tirou zero num teste de matemática voltado para vestibulandos — e caminhava assim para ser mais um na multidão de jovens de classe média baixa que, embora formalmente educados, têm pouca ou nenhuma capacitação.

No próximo mês, o mesmo Silva, hoje com 27 anos, passa a fazer parte da elite acadêmica internacional. Já com o título de mestre em economia pela Universidade de São Paulo, onde também fez a graduação, ele se muda para Boston, nos Estados Unidos, para iniciar o doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT), um dos mais emblemáticos centros de educação e pesquisa americanos.

O capítulo fascinante da trajetória entre Mauá e o MIT é o fato de ele ter sido cortejado pelas melhores universidades americanas. Silva se inscreveu em 14 instituições — e foi chamado por nove ícones de ensino, como Yale, Columbia, Chicago e Stanford. As vizinhas Harvard e MIT chegaram a disputá-lo.

Ambas ofereceram inicialmente uma bolsa anual de 30 000 dólares, mas Harvard cobriu o valor e deu 35 000 dólares — o que fez o MIT elevar sua proposta para 37 000. “Dejanir é brilhante”, diz Mauro Rodrigues, seu orientador no mestrado. “Na história de nossa faculdade, nunca tivemos um aluno aceito em tantas universidades de ponta ao mesmo tempo.”

Os dez anos que transformaram a história de vida de Silva foram marcados, acima de tudo, por muito esforço. Após o resultado desastroso na prova, ele aprimorou a matemática por meio do Kumon, um método de ensino japonês em que o estudante faz centenas de exercícios sozinho.

Aprendeu inglês lendo livros comprados em sebos e ouvindo palestras de professores estrangeiros que baixava no computador. E estudou muito, em qualquer hora e lugar.

Nos ônibus presos em engarrafamentos, nos trens metropolitanos lotados, nos domingos e feriados, antes e depois dos almoços em família, na praça de alimentação dos shoppings, enquanto Luciene, a primeira e única namorada, com quem se casou em 2006, fazia as compras de casa. “Não sou especial. Eu estudo”, diz.


No mesmo período, uma mudança profunda também se deu na sociedade brasileira. Aos poucos, fomos retomando a capacidade de gerar mobilidade social, e em bases melhores do que no passado.

MIT, Harvard ou Yale continuarão sendo destino de um grupo extremamente restrito de brasileiros, mas o país de analfabetos está se transformando, e um contingente crescente está ascendendo. Para os economistas, as classes são agrupadas de acordo com a renda, e a ascensão social depende exclusivamente de quanto dinheiro entra no bolso.

Para os sociólogos, porém, uma pessoa só sobe um degrau na escala social quando conquista uma profissão mais sofisticada do que a dos pais, o que garante um status mais elevado, mais qualidade de vida e um leque mais amplo de oportunidades.

Entre as décadas de 60 e 70, a industrialização e a urbanização acelerada produziram uma mobilidade em escala inédita no país. “Há um ganho imediato quando alguém deixa de ser trabalhador rural para ser operário ou motorista”, diz o economista Nelson do Valle Silva, especialista em mobilidade social.

O analfabetismo em massa, porém, impunha um claro limite a essa mobilidade, que ficou restrita à renda e não se traduziu em cidadania. Com a crise econômica a partir de 1980, mesmo a mobilidade puramente econômica estancou.

Recentemente, o cenário mudou graças à ocorrência simultânea de dois fenômenos: o aumento da escolaridade, especialmente dos mais pobres, e o crescimento da oferta de empregos qualificados. A taxa de analfabetismo caiu de 17% para 10% nos últimos 20 anos.

Na classe C, os mais jovens têm cerca de dez anos de estudo — uma indicação de que quase 100% dos alunos concluem o fundamental. Mesmo nas classes D e E, os pobres entre os pobres, os filhos já têm quase quatro anos a mais de estudo do que os pais.

“O aumento da escolaridade no momento em que o mercado de trabalho se aqueceu abriu espaço para a mobilidade social”, diz o demógrafo Haroldo Torres, diretor da Plano CDE, consultoria especializada na base da pirâmide. Atualmente, quase 70% da população está mudando de classe social, o maior percentual da série histórica do indicador, que mede a mobilidade desde os anos 70.

Um estudo recente do economista Marcelo Neri, da FGV-Rio, creditou à educação o principal fator da ascensão da chamada Nova Classe C. Quanto mais perto da base da pirâmide, maiores foram esses ganhos.


Entre 2001 e 2009, a renda dos 50% mais pobres aumentou 53%, enquanto a dos 10% mais ricos cresceu 13%. Também saíram ganhando os estratos que tradicionalmente recebem salários menores, como mulheres, negros e moradores do Nordeste.

Jovens como o cearense Ícaro Martins, de 21 anos, que teve acesso à educação ao longo desse período, são um exemplo vivo da mudança. Martins cresceu com a mãe em uma casa partilhada com três famílias de parentes, no Bom Jardim, um dos bairros mais marginais da periferia de Fortaleza.

Fez escola pública e, em 2002, aos 13 anos, começou a frequentar aulas de teatro na Edisca, ONG voltada para jovens carentes. Por intermédio da instituição, Martins conseguiu uma bolsa de estudos no Instituto Brasil-Estados Unidos, onde aprendeu inglês e tornou-se professor.

Com outra bolsa, preparou-se para o vestibular numa escola particular e passou no curso de história da Universidade Estadual do Ceará. Vai se formar no ano que vem. Hoje, ele e a mulher, Daniele, operadora de telemarketing que estuda para prestar pedagogia, criam o filho de 1 ano com uma renda mensal de 1 600 reais.

“Vou ser professor e fazer doutorado”, diz Martins. Sua mãe não concluiu o fundamental e vive do repasse mensal de 102 reais do Bolsa Família.

Numa perspectiva internacional, a mobilidade social brasileira perde boa parte de seu brilho. Ok, melhoramos bastante, mas ainda estamos muito aquém de países como Chile, Estados Unidos ou Alemanha quando o assunto é geração de oportunidades. O principal motivo é a constatação de que a ampliação da cobertura educacional não foi acompanhada de uma renovação de qualidade.

Dois ou três anos a mais na escola ajudam uma pessoa a transpor os primeiros estratos sociais, mas é preciso aprimorar o ensino a cada novo degrau se o desejo é ir pirâmide acima.

Hoje, de cada 100 crianças, 98 estão matriculadas no ensino fundamental. Mas metade delas não vai concluir o ensino médio e apenas 10% conseguirão um diploma universitário.


“No Brasil, as oportunidades de uma pessoa são influenciadas por muitos fatores, como a renda, o patrimônio, o nível cultural da família, bem como pelas redes de relacionamentos”, diz o sociólogo Costa Ribeiro, um dos coordenadores do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor da pesquisa Dimensão Social da Desigualdade.

Ser mantido pela família para poder estudar mais tempo e construir uma rede de amigos mais ampla e influente pesam a favor. “Um sistema educacional eficiente pode reforçar as habilidades pessoais e reduzir os efeitos da origem.”

Marivaldo Pereira, de 31 anos, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em Brasília, sabe bem como o ambiente pode conspirar contra os mais pobres. Advogado e mestre em direito pela USP, foi subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil e peça-chave na reforma do Judiciário.

Negro, filho de uma diarista e de um pedreiro, Pereira viveu a infância num barraco feito de madeirite em um terreno invadido na periferia da capital paulista. “A única professora que incentivava os alunos a fazer vestibular era chamada de maluca”, diz ele. “Um professor chegou a me aconselhar a usar o dinheiro que gastaria com o vestibular na compra de uma calça jeans.”

Pereira e os quatro irmãos têm curso superior — e também sua mãe, que fez supletivo depois. Uma única voz de estímulo na escola fez toda a diferença — uma boa mostra do potencial transformador da educação que mais gente começa a experimentar.

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