Cédulas para votação pelo correio: no centro da polêmica das eleições americanas deste ano (Jason Redmond/AFP)
No final do ano passado, cerca de 70 políticos, acadêmicos, especialistas em pesquisas de opinião e jornalistas americanos formaram o Transition Integrity Project (TIP), ou projeto para a integridade da transição. O nome se refere a um evento que acontece a cada quatro anos, sempre no dia 20 de janeiro, e simboliza a democracia: a posse do presidente da República. O grupo foi criado porque seus integrantes temem que “o governo Trump possa tentar manipular, ignorar, minar ou desestabilizar a eleição presidencial de 2020 e o processo de transição”. Em agosto, o TIP publicou quatro cenários hipotéticos para o período pós-eleitoral. Segundo o documento, todos são “alarmantes”. “Avaliamos que existe uma grande probabilidade que a eleição seja marcada por um panorama de caos jurídico e político.”
O Transition Integrity Project inclui representantes de ambos os partidos e não se posiciona a favor do republicano Donald Trump, que tenta a reeleição, ou do democrata Joe Biden. As possibilidades descritas são apenas conjecturas, algumas delas extremas, como intervenção das Forças Armadas na apuração e uma recusa de Trump de deixar a Casa Branca. Trata-se de “jogos de guerra”, exercícios intelectuais como os conduzidos por militares para se preparar para as circunstâncias mais improváveis. Mas é cada vez mais difícil evitar a sensação de que, em pouco mais de um mês, os Estados Unidos estarão envolvidos numa guerra intestina — nas urnas, nos tribunais e possivelmente nas ruas — para determinar o vencedor da eleição que acontece em 3 de novembro.
Atrás nas pesquisas e em meio a uma crise sanitária e econômica sem precedentes, Trump há meses vem colocando em dúvida a legitimidade da eleição. “Só perderemos se houver fraude”, disse o presidente americano num comício em agosto. O motivo, segundo Trump, seria a votação pelo correio. O voto à distância é uma modalidade há anos adotada por vários estados americanos. Normalmente, ela é uma alternativa utilizada por quem está fora do domicílio eleitoral no dia da votação. Mas, por causa da pandemia do coronavírus, as regras foram flexibilizadas em vários estados. Estima-se que cerca de 80 milhões de americanos enviem seus votos pelo correio neste ano.
VOTO DUPLO
Foi o que fez o próprio Donald Trump em agosto, nas primárias da Flórida, o estado onde vota. O presidente americano diz que o voto do eleitor ausente — o seu caso — é diferente daquele de quem recebe a cédula pelo correio automaticamente. Mas, segundo os especialistas, não existe diferença prática. Os procedimentos de conferência, segurança e contagem são idênticos, e não há evidências de que possa haver fraude em larga escala nos votos enviados pelo correio. Trump sugeriu até mesmo que seus apoiadores votem duas vezes, à distância e presencialmente, para expor as falhas do sistema (votar duas vezes é ilegal).
Não se trata somente de estabelecer uma narrativa para justificar uma eventual derrota nas urnas. As declarações de Trump são o prenúncio de um cenário de caos que parece cada vez mais realista. “A combinação entre o recorde de votos pelo correio, a margem apertada nos estados-chave e a polarização que alimenta o desejo de batalhas jurídicas tem tudo para fomentar uma disputa que irá muito além do dia 3 de novembro”, diz Maurício Moura, professor de gestão política da George Washington University e fundador do instituto de pesquisas IDEIA, que vem realizando pesquisas exclusivas sobre a corrida presidencial para a EXAME.
Considere a seguinte possibilidade. As pesquisas indicam que os eleitores republicanos tendem a comparecer em maior número às urnas, enquanto a maioria dos democratas deve optar pelo voto à distância. Como a verificação e apuração dos votos enviados pelo correio é mais demorada (leia quadro na pág. 71), Trump pode sair na frente na apuração e declarar vitória num estado-chave do colégio eleitoral mesmo antes de contados todos os votos. Eventuais viradas seriam a prova da fraude de que ele tanto fala.
“Cantar vitória antes da hora e ser o vencedor são coisas diferentes, é claro”, afirma à EXAME Richard Pildes, professor na Universidade de Nova York e uma das principais autoridades americanas em direito constitucional e na intersecção entre Justiça e democracia. “Mas, se não tivermos um ganhador claro um ou dois dias depois da eleição, é fácil imaginar uma disputa jurídica em relação à legalidade e à contagem dos votos pelo correio.” O temor é uma repetição da incerteza de 20 anos atrás, quando o vencedor só foi conhecido 35 dias depois da eleição. A diferença ínfima entre o democrata Al Gore e o republicano George W. Bush na Flórida, estado que decidiria o vencedor no colégio eleitoral — e, portanto, o novo presidente —, forçou uma recontagem dos votos do estado. A disputa jurídica só acabou com o envolvimento da Suprema Corte, um cenário que neste ano pode acontecer em vários estados ao mesmo tempo.
Nas recentes primárias, mais de meio milhão de votos enviados pelo correio foram rejeitados. Os motivos foram vários: chegaram após o prazo, continham erros no preenchimento, problemas na assinatura, entre outros. Há quatro anos, Donald Trump derrotou Hillary Clinton na Pensilvânia, um dos fiéis da balança do colégio eleitoral, por somente 44.292 votos, de um total de 27,5 milhões. No Michigan, outro estado essencial para uma vitória de Trump, a diferença foi de 10.700 votos, entre 4,7 milhões. Segundo um levantamento realizado pelo The Washington Post, nesses dois estados mais o também crucial Wisconsin, pelo menos 60.000 votos foram descartados nas primárias, que tradicionalmente têm índices de participação menores do que as eleições gerais. Decidir a validade — ou não — de cada um deles será o estopim de uma disputa feroz a partir de novembro.
Outro elemento de tensão é um fenômeno descrito como blue shift, algo como “virada azul”, termo cunhado pelo professor de direito Edward Foley, da Universidade Ohio State. Nas últimas eleições, o Partido Democrata (tradicionalmente identificado com a cor azul; e os republicanos com o vermelho) tem crescido nos dias seguintes à votação, conforme os votos à distância são contabilizados. Na eleição parlamentar de 2018, vitórias de candidatos democratas foram se confirmando ao longo de dez dias. O sucesso das horas imediatamente após o fechamento das urnas viria a se traduzir no maior ganho do partido na Câmara em décadas quando a apuração foi concluída.
Antes da contagem dos votos e de eventuais disputas jurídicas envolvendo os votos à distância, entretanto, vem a questão da entrega a tempo das cédulas. Cortes realizados no orçamento dos Correios americanos vêm causando atrasos em todo o país. Indicado por Trump, o diretor dos Correios, Louis DeJoy, disse que as medidas de saneamento financeiro da estatal foram suspensas até depois da eleição. Mas isso não foi suficiente para dissipar as suspeitas de que o presidente esteja usando a máquina federal para interferir no resultado das urnas — ou, neste caso, das caixas de correio.
Na opinião da cientista política Nancy Bermeo, pesquisadora sênior na Universidade de Oxford e autora do conceito do “recuo democrático”, Trump está manipulando a eleição de forma estratégica. “Ele não está falsificando votos, mas vem minando a credibilidade do voto. Se perder, pode dizer que foi roubado”, afirmou Bermeo à EXAME. O presidente americano é um caso clássico de “glorificação do executivo”, uma das características do recuo da democracia, segundo a acadêmica. “Minha definição é bastante simples: um presidente que deliberadamente enfraquece ou desmonta as instituições que servem de contrapeso ao seu poder.” Bermeo menciona o cancelamento de milhões de registros de eleitores como um sinal preocupante de retrocesso democrático.
Uma acusação perene dos democratas contra o Partido Republicano é a tentativa de suprimir o voto. A crença segundo a qual mais eleitores significam mais votos para os democratas é persistente no país, apesar de estudos indicarem que essa relação não existe. O próprio Trump afirmou no início do ano que, com a expansão do voto pelo correio, “com esses níveis de votos, você nunca mais teria um republicano eleito neste país”. Um levantamento recente realizado pela Aclu, uma organização não governamental que defende os direitos civis, indicou que mais de 200.000 registros eleitorais foram cancelados erroneamente na Geórgia. Em estados que contam com grande contingente de minorias, como Texas, Arizona e a própria Geórgia, cerca de 1.700 locais de votação foram fechados entre 2012 e 2018, segundo a organização The Leadership Conference on Civil and Human Rights — a maioria em bairros com grande porcentagem de negros e latinos.
Na Flórida — estado governado por um aliado de Trump e essencial para a reeleição do presidente —, cidadãos condenados por crimes (com exceção daqueles que cometeram homicídio ou crimes sexuais) que cumpriram suas penas não poderão votar neste ano a menos que paguem multas e outras dívidas financeiras com a Justiça. Apesar de dois terços dos eleitores do estado terem votado a favor da restituição dos direitos eleitorais para esses cidadãos, a assembleia estadual e o governo impuseram essa restrição, o que significa que cerca de 800.000 habitantes do estado não poderão se manifestar em novembro caso não tenham dinheiro para pagar o que devem. A Suprema Corte decidiu não interferir, o que na prática ratificou a decisão. Sonia Sottomayor, juíza que escreveu a opinião contraditória, disse que a decisão é um “paywall eleitoral” que impede “milhares de eleitores de votar simplesmente porque são pobres”.
Esses argumentos podem ser utilizados por apoiadores de Biden para contestar o resultado da eleição. Um dos cenários desenhados pelo Transition Integrity Project descreve manifestações nas ruas e o risco de que elas descambem para a violência. A equipe que assumiu o papel da campanha de Trump sugeriu, por exemplo, convocar os apoiadores do presidente a ir para as ruas, “em parte disseminando desinformação sobre o perigo representado pelos manifestantes pró-Biden (por exemplo, sugerindo a provável violência de antifascistas)”. Nas últimas semanas, confrontos armados entre grupos pró-Trump e defensores de justiça racial deixaram pelo menos três mortos. Um dos pontos centrais da campanha do presidente é o suposto clima de anarquia nas ruas, o que resultou em imagens de seus seguidores tomando as ruas com metralhadoras e outras armas de uso militar para “garantir a ordem”.
As narrativas que lançam suspeitas sobre a lisura da eleição — de ambos os lados — são um sinal perigoso para a democracia americana, segundo Pildes, da NYU. “A situação foi tolerável em 2000 porque as pessoas tinham mais confiança nas instituições, a cultura não estava tão polarizada, os candidatos pediam paciência com o processo e as redes sociais não tinham a importância de hoje”, afirma Pildes. “Hoje, se a resposta não for conhecida em alguns poucos dias, acho que facilmente poderemos ter uma situação em que a metade do país que for derrotada acreditará que a eleição não foi legítima. No curto prazo, pode haver protestos massivos. No longo prazo, o lado derrotado pode tentar paralisar o governo pelos quatro anos seguintes.”
Os Estados Unidos estão divididos como nunca antes em tempos de paz. Os dois lados estão entrincheirados nas redes sociais, vivendo em bolhas que os convencem de que o outro lado está fazendo de tudo para roubar a eleição. As sugestões diárias de Donald Trump sobre uma grande conspiração só jogam gasolina no fogo. O ano de 2020 ainda deve guardar muitas surpresas para os americanos.
DOIS PAÍSES, DOIS SISTEMAS
No Brasil, o resultado da eleição presidencial sai em poucas horas graças ao uso de urnas eletrônicas, o voto é direto e obrigatório e há outras peculiaridades. Entenda as diferenças | Ligia Tuon
Diferentemente dos Estados Unidos, onde o resultado da eleição presidencial pode demorar dias — ou até mesmo semanas —, no Brasil o sistema funciona melhor nesse aspecto. Na última disputa presidencial, em 2018, as urnas foram fechadas às 17 horas. Cerca de 3 horas depois, a ministra Rosa Weber, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), anunciou a vitória de Jair Bolsonaro. O modelo direto de votação e a urna eletrônica, usada em todos os estados brasileiros desde 2000, explicam essa diferença. O Brasil tem a maior eleição informatizada do mundo.
O sistema eleitoral brasileiro é bem diferente do americano. Por aqui, a responsabilidade por organizar, regulamentar e fiscalizar o processo de escolha do presidente é do TSE. Já nos Estados Unidos, onde o voto é indireto e não obrigatório, cada um dos 50 estados mais o distrito federal (Washington) têm autonomia para definir suas próprias regras. É como se houvesse 51 eleições diferentes no país.
No Brasil, é o voto popular que define o vencedor da eleição presidencial. Em contraste, no sistema americano, a escolha final cabe ao colégio eleitoral, composto de representantes dos estados, em número proporcional ao tamanho da população. A Califórnia, o estado mais populoso do
país, por exemplo, tem 55 eleitores no colegiado. O candidato que recebe mais votos populares em cada estado fica com todos os votos desse estado — uma regra que acaba favorecendo uma ordem bipartidária no país, onde os partidos Republicano e Democrata são os que têm mais chance de ganhar.
No Brasil, o voto majoritário é adotado nos pleitos para presidentes, governadores, senadores e prefeitos. Já a escolha de deputados e vereadores é feita por voto proporcional, usando o quociente eleitoral (o número de votos válidos é dividido pelo de cadeiras) e o quociente partidário (o número de votos válidos é dividido pelo quociente eleitoral). Esse sistema acaba facilitando a eleição de candidatos amplamente conhecidos pelos eleitores, mas que nem sempre têm propostas políticas relevantes. São os "puxadores de votos", que facilitam a eleição de outros candidatos menos votados do mesmo partido.
Os defensores do sistema distrital, adotado nos Estados Unidos, dizem que a população seria mais bem representada se pudesse votar apenas nos políticos de seu distrito. Desse modo, os cidadãos teriam também mais facilidade de fiscalizar e cobrar os políticos. Uma crítica comum ao sistema distrital, porém, é que ele levaria os políticos a se preocupar somente com questões pontuais de seu distrito, afastando-se do debate de problemas mais amplos da cidade ou do estado.