Revista Exame

Como a revolução do streaming mudou as TVs e Hollywood

Com a popularização das transmissões pela internet, os hábitos mudaram totalmente. Agora é tudo sob demanda, das séries de sucesso aos filmes blockbusters

Reed Hastings, fundador e presidente da Netflix: “Ao longo de nossa trajetória, já fizemos previsões que pareciam ser impossíveis” (Germano Luders/Exame)

Reed Hastings, fundador e presidente da Netflix: “Ao longo de nossa trajetória, já fizemos previsões que pareciam ser impossíveis” (Germano Luders/Exame)

ES

Eduardo Salgado

Publicado em 7 de setembro de 2017 às 05h55.

Última atualização em 12 de março de 2019 às 16h43.

São Paulo — A história do streaming, a transmissão de vídeos e músicas pela internet, começou em fevereiro de 2011, quando dois produtores da empresa Media Rights Capital tentavam vender a ideia de uma nova série a vários canais de televisão americanos. Inspirada numa minissérie feita pela BBC no Reino Unido, a proposta de fazer House of Cards estava recebendo uma recepção morna por uma boa razão. Desde The West Wing: Nos Bastidores do Poder, de 2006, nenhum drama político tinha tido sucesso nos Estados Unidos. Mas a falta de entusiasmo dos executivos dos canais de TV não desmotivou os dois produtores. Eles continuaram acreditando que a série seria feita mais cedo ou mais tarde e decidiram dar atenção ao passo seguinte do plano de negócios. Começaram as visitas para vender os direitos de exibição para o período posterior ao da veiculação na TV.

Foi então que bateram na porta da Netflix. Lá a história foi completamente outra. A oferta da Netflix era ainda melhor do que bancar os cerca de 6 milhões de dólares para fazer um piloto, o que era praxe no mercado dominado pelos canais de TV. A Netflix ofereceu investir, de cara, 100 milhões de dólares por duas temporadas, num total de 26 capítulos. Nada de passar nos canais de TV. Tudo pela internet. Nessa época, o site do YouTube já era popular, a própria Netflix tinha uma promissora plataforma digital, mas o streaming não colocava medo em ninguém. Foi necessário o sucesso estrondoso de House of Cards para causar o maior tremor na indústria do entretenimento em cerca de 100 anos. Estava claro que a briga esquentaria na produção e na distribuição de conteúdo.

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Seguindo a máxima de que a análise de dados é na economia digital o que o aço foi na era industrial, os executivos da Netflix decidiram colocar um caminhão de dinheiro no projeto porque tinham informações das quais os canais de TV não dispunham. Sabiam que o ator Kevin Spacey e o diretor David Fincher, ambos já parte do projeto, eram muito admirados. Os assinantes da Netflix não costumavam fazer buscas por filmes com Spacey, mas, quando viam um, acabavam assistindo a vários. O mesmo acontecia com Fincher, diretor de O Curioso Caso de Benjamin Button e A Rede Social. Um dos maiores efeitos de House of Cards, cuja quinta temporada estreou em maio, foi consolidar a Netflix como um catalisador da revolução digital na indústria do entretenimento. Até muito pouco tempo atrás, as pessoas só podiam assistir a vídeos ao ligar a televisão. Hoje, vídeos estão disponíveis em TVs, computadores de mesa, laptops, tablets e smartphones; ou seja, em qualquer lugar e a qualquer hora. Os vídeos são oferecidos sob demanda, como nos acostumamos a dizer. Com o streaming, tudo ganhou agilidade sem a necessidade de fazer demorados downloads. “Em muitas ocasiões ao longo de nossa trajetória, fizemos previsões que pareciam ser impossíveis. Dou um exemplo. Dizíamos que nos tornaríamos uma rede de televisão global e, em seguida, ríamos da gente mesmo. Mas aconteceu. Se fizéssemos uma série sobre nossa história, um bom título seria ‘os revolucionários silenciosos’ ”, disse a EXAME Reed Hastings, presidente da Netflix (leia entrevista na página 48). Na metade de 2017, a empresa, presente em mais de 190 países e líder mundial em seu segmento, bateu a marca de 100 milhões de usuários. “Com uma estratégia de marketing bem pensada, a Netflix desbravou o mercado mundial de streaming e merece o crédito por isso”, diz Richard Broughton, diretor de pesquisas da Ampere Analysis, consultoria focada na indústria da TV com sede em Londres.

O setor de entretenimento, que sempre conviveu com um ambiente de mudanças incrementais, agora está diante de uma ruptura. Pelos cálculos da consultoria Boston Consulting Group, 50% do tempo dedicado ao entretenimento nos Estados Unidos em 2020 será sob demanda. Os vídeos já respondem por mais de 70% do tráfego global de dados na internet. Nessa expansão em curso em várias partes do mundo, as empresas de streaming contam com pelo menos uma grande vantagem. A tecnologia permite que elas adotem uma eficaz política de preços. Na era digital, o custo marginal de produzir e distribuir uma cópia de um bem de informação, como um filme ou uma música, é perto de zero. Não é preciso fabricar um DVD ou CD nem pensar na logística para que as caixas com os produtos cheguem às lojas. É tudo diretamente pela internet. Isso faz com que empresas como a Net-flix e o Spotify — líder no segmento de música por streaming, hoje a maior fonte de receita do setor fonográfico — consigam colocar à disposição dos clientes grandes acervos. Os assinantes do Spotify têm 30 milhões de músicas à disposição.

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Mas não é só isso. O lucro é maior com a venda de um conjunto de produtos do que com a venda de apenas um item. Quando uma empresa determina o valor de um produto, invariavelmente acontece uma de duas coisas: ou ela cobra um preço alto, deixando parte dos consumidores de fora, ou estabelece um valor inferior para atingir um número maior de pessoas e perde o dinheiro a mais que muitos interessados estavam dispostos a pagar. Em ambos os casos, a empresa deixa dinheiro sobre a mesa. De acordo com o conceito conhecido como economia de bundling (ou de pacotes), a venda de conjuntos de produtos resolve esse problema porque faz com que cada um dos consumidores encontre algo de que goste muito. Um assinante da Netflix que aprecie comédias, por exemplo, tem várias opções. O mesmo vale para os fãs de outros tipos de filme e série. Isso permite à Netflix cobrar o maior preço possível da maioria de seus clientes. Trata-se de uma aplicação da lei dos grandes números, segundo a qual, quanto mais elementos tem um conjunto, mais ele se aproxima da média total. “Dada a velocidade com que as coisas mudam no mundo da tecnologia, é impossível prever quais empresas serão líderes na área do entretenimento num prazo de dez anos. O que dá para afirmar é que as assinaturas para ter acesso a grandes acervos vão continuar existindo. E quem inovou nesse sentido foi a Netflix”, diz Michael D. Smith, professor de sistemas de informações na Universidade Carnegie Mellon e um dos autores de Streaming, Sharing, Stealing (“Streaming, compartilhamento, roubo”, numa tradução livre), livro lançado nos Estados Unidos no ano passado.

Quem ganha e quem perde?

A pergunta de vários bilhões de dólares hoje é sobre o tamanho do impacto do streaming na indústria do entretenimento tradicional — tanto o streaming pago da Netflix, que não tem comercial, mas cobra assinatura, quanto o do YouTube, dependente basicamente dos anúncios. Uma das poucas coisas que podem ser ditas com segurança até agora é que os produtores independentes de séries e documentários estão entre os que se deram muito bem. Nunca tiveram um ambiente tão favorável com a ampliação do mercado. O número anual de produções de séries nos Estados Unidos passou de 182, em 2002, para 455, no ano passado. Já os estúdios de cinema nunca se sentiram tão ameaçados. A rede de supermercados Walmart já chegou a ser responsável por 30% das vendas de DVDs nos Estados Unidos nos anos 90. Essa dependência dos estúdios para com um distribuidor, no entanto, não chegava a afetar negativamente as margens de lucro. Agora tudo é diferente. Nunca um distribuidor teve tanto poder como a Netflix. “A Netflix estuda com muita atenção algo que os estúdios não dispõem: os dados sobre os hábitos de milhões de consumidores. Com isso, consegue indicar aos clientes programas de TV, séries e filmes que têm alta chance de cair no gosto deles”, diz Pedro Ferreira, professor do curso de gerenciamento de tecnologias disruptivas na Universidade Carnegie Mellon. A resposta de parte dos estúdios (Walt Disney, 21st Century Fox, Comcast e Time Warner) foi criar uma plataforma digital para programas de TV, o Hulu, a terceira entre os agregadores no mercado americano.  Agora, eles pretendem ir além. O grupo Disney planeja lançar no ano que vem dois serviços de streaming próprios, um voltado para programas de esportes e outro para filmes e séries de seus canais de TV.

Mas essa relação é mais complexa: os estúdios tentam copiar a Netflix, e a Netflix tenta copiar os estúdios. A Amazon Prime Video, braço de streaming da varejista online que entrou no mercado brasileiro em dezembro de 2016, vai na mesma onda do concorrente. Tanto a Netflix quanto a Amazon Prime Video investem pesadamente em contéudo original. O montante aplicado pela Netflix em produção própria saiu de 2,5 bilhões de dólares, em 2013, para 6 bilhões, neste ano. O da Amazon pulou de 1,2 bilhão de dólares para 4,5 bilhões no mesmo período. Na última edição do prêmio Globo de Ouro, Netflix e Amazon ficaram com quase metade das indicações e cada um conquistou duas estatuetas. A Netflix levou Melhor Série (The Crown) e Melhor Atriz (Claire Foy, da mesma série). A Amazon ficou com Melhor Ator de Série (Billy Bob Thornton em Goliath) e Melhor Ator de Filme (Casey Affleck em Manchester à Beira-Mar). Pela primeira vez em mais de dez anos, o canal de TV a cabo HBO, conhecido pela qualidade das produções, não ganhou em nenhuma categoria. A estratégia da Netflix e da Amazon tem como meta a independência dos tradicionais produtores de conteúdo.

Olho na tela

O “efeito Netflix” é, por razões óbvias, mais evidente nas TVs. As emissoras, tanto abertas como por assinatura, ora veem o streaming como ameaça (leia-se medo de perder audiência), ora como oportunidade (chance de continuar ganhando dinheiro com a distribuição da produção por um novo canal). O certo é que a expansão da tecnologia tirou as emissoras da zona de conforto, todas agora preocupadas com o futuro de seu modelo de negócios. A história do setor começou com canais abertos baseados na receita dos anunciantes. A segunda fase foi a dos canais a cabo e por satélite. A origem foi nos Estados Unidos nos anos 80, mas, de lá para cá, ganhou espaço em outros mercados. A fonte de receita nessa segunda fase eram assinantes e também anunciantes. O tempo acabou mostrando que os dois tipos de TV podiam conviver sem que um canibalizasse o mercado do outro. Quando o streaming  surgiu, era dado como certo que ele tinha chegado para acabar com essa harmonia. Nos chamados mercados maduros, o dos países ricos, expressões como cord cutters, uma referência aos consumidores de TV a cabo que cancelaram o serviço, tornaram-se populares.

A penetração da TV paga nos Estados Unidos caiu de 90% dos lares, em 2010, para 80%, em 2016. Mais assustadores ainda eram os nevers, jovens que cresceram assistindo a vídeos sob demanda por streaming e que nunca contrataram um serviço a cabo ou por satélite. Recentemente, porém, uma visão mais benevolente começou a ganhar força. Num alentado relatório de 92 páginas sobre o setor publicado no começo do ano, a empresa de informações financeiras Morningstar resume o novo mood. Quem produz conteúdo de qualidade vai continuar sendo valorizado. Até a perda de audiência de algumas emissoras teve novas interpretações. “Com as redes sociais e os aplicativos de comunicação, o tempo das pessoas é cada vez mais escasso. A competição pela atenção é cada vez maior. E ela não vem apenas dos canais por streaming”, diz Tristan Veale, analista de mercado da consultoria Futuresource, com sede no Reino Unido.

Podem ser discutidas as causas e se as mudanças serão positivas para as emissoras, mas o que não está em questão é a necessidade de mudança. A HBO, tradicionalmente disponível apenas a cabo ou por satélite, montou há dois anos uma estratégia para chegar diretamente a seus clientes via streaming (leia entrevista na pág. 54). No Brasil, atualmente, o movimento em direção ao streaming também é claro. O curioso é que cada uma das grandes emissoras brasileiras está agindo de uma maneira diferente.

A Globo começou a experimentar formatos de vídeo na internet em 1998, durante a Copa da França, quando disponibilizava os melhores momentos das partidas. Isso foi antes mesmo do Globo.com, criado no ano 2000. Três anos mais tarde a empresa lançaria o Globo Media Center, responsável pelo primeiro produto de vídeo regular da emissora na internet. Outras iniciativas viriam nos anos seguintes, até que, em 2015, quatro anos depois da chegada da Netflix ao Brasil, a empresa lançou o Globo Play, uma plataforma robusta que tem concentrado os esforços na área de vídeos sob demanda. “Queremos estar com o público quando, onde e do jeito que ele quiser. É isso que tem norteado nossa estratégia de produção e distribuição de conteú-do em todas as plataformas”, diz Carlos Henrique Schröder, diretor-geral da Globo (leia entrevista na pág. 52). O modelo de negócios do Globo Play é o conhecido como freemium, uma junção das palavras free e premium — parte de graça, parte pago. Sem pagar, o usuário consegue assistir a telejornais, programas de variedades, trechos de novelas, programas esportivos e a programação ao vivo. Se quiser ver a íntegra dos capítulos das novelas, dos programas humorísticos e das séries, precisa desembolsar  15,90 reais por mês.

Na estratégia da Globo, a plataforma de streaming não precisa espelhar exatamente a grade da TV aberta. A aposta é que o público disposto a pagar para ver uma série antes de ela ir ao ar é bastante relevante. Foi isso o que aconteceu com a premiada Carcereiros, série protagonizada por Rodrigo Lombardi que está disponível aos assinantes do Globo Play desde junho e irá ao ar na TV aberta somente no ano que vem. Analistas do mercado de TV que acompanham a Globo de perto apostam que a emissora vai usar suas séries para brigar com a Netflix. Quem compartilha dessa visão argumenta que a Globo não quer que a parte mais jovem e descolada de sua audiência passe a associar séries de qualidade com a marca da concorrência. Por enquanto, o público do Globo Play é majoritariamente das classes A e B e com a predominância de mulheres. O objetivo é ampliar a base de assinantes e tentar replicar um fenômeno já visto nos Estados Unidos. Pesquisas recentes mostram que a possibilidade de ver programas que já foram veiculados não diminui a audiência da TV tradicional. Para parte do público, o recurso de poder assistir ao capítulo do dia anterior funciona como um incentivo para voltar à grade normal. Nesses casos, o streaming não é um substituto. É um complemento.

Na hipótese de as previsões positivas para as emissoras acabarem se provando fantasiosas, ainda assim a Globo deverá estar numa posição confortável. Sua situação é quase única no mundo. Primeiro por causa de sua audiência gigante. Na TV aberta, atinge 98% dos domicílios. Cerca de 100 milhões de pessoas assistem ao canal todos os dias. No ano passado, as 30 maiores audiências foram da Globo. Quem quiser crescer no mercado brasileiro vai precisar investir em programação já existente em português ou fazer programas novos. Para isso, terá de contratar talentos, muitos deles com contratos exclusivos com a Globo. “Não há a menor dúvida de que a Globo está muito bem posicionada”, afirma John Rose, chefe do escritório da consultoria Boston Consulting Group em Nova York e especialista no setor.

Até em razão de seu tamanho, a estratégia da Record é totalmente diferente. No lançamento da plataforma digital R7 Play em 2015, a empresa decidiu trabalhar em parceria com companhias globais. Quem entra no site do R7 Play é remetido a um canal do YouTube. É lá que se paga pelo acesso. Alguns programas da emissora, como a novela Os Dez Mandamentos, estão disponíveis no acervo da Netflix. “Há cerca de um ano começamos a conversar mais frequentemente com a Netflix sobre a possibilidade de fazermos parcerias. Ainda falta decidir se vamos passar primeiro na Netflix ou na Record”, diz Antonio Guerreiro, superintendente de estratégias multiplataforma da emissora. Os executivos da empresa também têm conversado sobre parcerias com a Amazon Prime Video. “Estamos atingindo um público que não veria nossos conteúdos em nenhum dos canais que temos. Além de receita, ganhamos com o engajamento de novos públicos.”

O SBT, outra força entre os três maiores canais de TV do Brasil, seguiu um terceiro caminho. Disponibilizou gratuitamente toda a programação em 40 canais do YouTube, nos perfis dos programas nas redes sociais, no site da empresa e também num aplicativo. “Nossa estratégia é ganhar com  a venda de anúncios”, diz Rodrigo Navarro Marti, diretor de multiplataforma do SBT. Está em estudo agora o lançamento de uma plataforma paga. Quais ou qual modelo vai prevalecer? Ninguém sabe. Como numa boa novela brasileira ou numa boa série da Netflix, é preciso esperar pelos próximos capítulos para saber a resposta.

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