Revista Exame

Ambev, Bayer, Movile e Magalu apostam em antirracismo institucional

Empresas brasileiras investem em programas para ampliar a diversidade no quadro de funcionários

Gustavo Bernardo Francisco, Aléxia Borges Silva, Marcos Madeira e Débora Reis, estagiários da Ambev: as empresas abraçaram a luta por igualdade étnico-racial ao abrir oportunidades para os jovens (Germano Lüders/Exame)

Gustavo Bernardo Francisco, Aléxia Borges Silva, Marcos Madeira e Débora Reis, estagiários da Ambev: as empresas abraçaram a luta por igualdade étnico-racial ao abrir oportunidades para os jovens (Germano Lüders/Exame)

Marina Filippe

Marina Filippe

Publicado em 8 de outubro de 2020 às 05h40.

Última atualização em 11 de fevereiro de 2021 às 15h59.

Quando um movimento social eclode na forma de um protesto, de um novo estilo musical ou de uma tendência de moda, a análise superficial muitas vezes aponta que tal evento deu início a uma transformação profunda no mundo em que vivemos. Na verdade, esse fenômeno geralmente é a face visível de uma confluência de tensões, reflexões e ideias que nasceram em pequenos grupos e que por um tempo circularam abaixo do radar até ter força para se tornar uma corrente. Como as manifestações contra o preconceito racial nos Estados Unidos.

Desde 2017, pesquisas mostram que os negros americanos têm 2,5 vezes mais risco de morrer vítimas de violência policial do que os brancos, mas o problema recebeu atenção há cerca de quatro meses, com o assassinato do segurança George Floyd na cidade de Minneapolis.

No universo corporativo brasileiro, onde o impacto social dos negócios aos poucos vem ganhando protagonismo, a inclusão de profissionais negros nunca gerou tanto debate quanto no momento em que o Magazine Luiza, maior varejista do país, com valor de mercado de 143 bilhões de reais, decidiu abrir um programa de trainee para atrair apenas jovens pretos e pardos, em setembro.

Entretanto, o projeto é fruto de anos de estudo e elaboração de políticas de diversidade em um ambiente de construção coletiva de conhecimento. Surgiu na medida em que, a exemplo da fabricante de bebidas Ambev, da farmacêutica Bayer e da holding de empresas de tecnologia Movile, o Magalu percebeu que não adiantava simplesmente dizer que estava recebendo de braços abertos os negros interessados em fazer parte do quadro de funcionários. Esse é o engano que grande parte das companhias que desejam promover a inclusão racial comete.

Maurício Rodrigues, vice-presidente de Finanças da Bayer Crop Science: O acesso a educação de qualidade e a referência dos pais, que chegaram ao ensino superior, ajudaram-no a entrar em um programa de trainee há 23 anos. Com um MBA e cursos no exterior, subiu na carreira. “Mas sempre faltava me ver representado nos lugares. Tive de me provar mais e dar um pouco mais para competir”, diz (Germano Lüders/Exame)

Em 15 anos, o programa de trainee do Magalu contratou 250 jovens. Desses, somente dez eram pretos e pardos. “Muitos negros são os primeiros na família a fazer faculdade. O estudante não tem referência de qual curso, estágio ou trainee seguir, e nem se candidata”, diz Eduardo Migliano, cofundador da 99jobs, empresa de tecnologia de recursos humanos responsável pelo programa do varejista.

A consultoria pesquisou 300 programas de trainee de 2019 e constatou que 99,2% dos contratados eram brancos. A porcentagem baixíssima — considerando que 56% da população do Brasil se declara preta ou parda — mostra como, cerca de 130 anos após a abolição da escravatura, o país ainda falha em efetivamente inserir os afrodescendentes na sociedade.

“Quando você é uma pessoa negra, não é acostumado a sonhar e pensar na carreira. Queria encontrar uma empresa onde pudesse ser eu mesma e dar minhas opiniões”, afirma Ane Zanardo, que cursa engenharia de manufatura na Universidade Estadual de Campinas, entrou em 2019 no programa Mobile Dream, da Movile, e agora trabalha como analista na Movile Pay, uma das empresas da holding, que também controla o aplicativo de entregas de comida iFood. Se às companhias não bastar o motivo moral, o econômico não deixa dúvidas sobre a importância de ouvir o que o negro tem a falar.

A diversidade de ideias faz com que um negócio atenda melhor  uma variedade de clientes. A população preta e parda brasileira movimenta 1,7 trilhão de reais ao ano e aceita pagar até 20% mais em produtos que valorizem elementos da cultura afro, segundo pesquisas do Instituto Locomotiva e Feira Preta. Além disso, levantamentos da consultoria McKinsey revelam que, no mundo, empresas com maior diversidade étnico-racial entre os executivos conseguem um desempenho financeiro em média 33% melhor em comparação com o de suas concorrentes. Na América Latina, esse percentual é de 24%.

(Arte/Exame)

Na turma de estudantes e recém-formados contratados com Ane Zanardo, apareceram os resultados de um programa que foi totalmente reformulado para buscar intencionalmente por diversidade. Entre mais de 25.000 inscritos, a Movile selecionou 60 pessoas, sendo 46% mulheres, 42% negros e 25% LGBTQI+. Segundo Matheus Fonseca, coordenador de marca empregadora, a partir de 2018 a Movile formou um grupo de trabalho com foco em executar o projeto de inclusão com agilidade, metas e ações concretas para suas empresas. Assim surgiu um programa de recrutamento com games, seleção às cegas e uma trilha de desenvolvimento para os jovens aprenderem sobre carreira durante o processo. “Preparar-se para uma ação afirmativa de contratação é entender o valor da diversidade e fornecer ferramentas técnicas”, diz Daniel Teixeira, diretor de projetos do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. A Ambev considera um sucesso seu programa de estágio para estudantes pretos e pardos, que começou em 2019 com dez vagas e neste ano abriu mais 80, para as quais 25.000 jovens se inscreveram.

“Vamos aumentar a representatividade de profissionais negros, conscientizar todos os funcionários e seguidamente impactar fornecedores e a sociedade em geral”, diz Carla Crippa, vice-presidente de relações com a sociedade na fabricante de bebidas. Um dos contratados na primeira edição foi Marcos Madeira, estudante de engenharia de produção.

Participante do grupo Afromack, da Universidade Mackenzie, onde é bolsista, o estagiário levanta a bandeira da igualdade de oportunidades na Ambev. “Eu precisava falar ativamente do racismo estrutural.

Em poucos meses de trabalho, sou ouvido pela liderança e realizei um papo sobre o tema para mais de 400 pes­soas da companhia”, diz. Assim, os colaboradores podem pensar em respostas concretas para as notícias sobre a luta antirracista com que têm sido bombardeados nos últimos meses.

Indianara Dias de Oliveira, gerente de gente e gestão no marketing da Ambev: Entrou como trainee em 2018 e agora lidera as discussões no grupo interno de diversidade Bock, que tem mais de 700 funcionários (Germano Lüders/Exame)

Uma pesquisa da consultoria Russell Reynolds Associates revelou que, nas três semanas seguintes ao assassinato de Floyd, cerca de 75% das grandes empresas americanas fizeram algum esforço para responder aos apelos por justiça racial.

O movimento teve eco no Brasil todo. A partir do final de maio, a jornalista Beatriz Sanz, fundadora do Banco de Talentos Negros, viu um aumento expressivo na procura por profissionais. Se antes ela recebia apenas um contato de empresas contratantes por mês, agora são até três abordagens por semana atrás de currículos, parcerias e consultorias. Já no Instituto Identidades do Brasil, fundado por Luana Génot, foram realizados 44 treinamentos para empresas interessadas na retenção de profissionais negros neste ano, sendo 30 desde junho.

Mas a situação do negro no Brasil é diferente da observada nos Estados Unidos, que criaram ações afirmativas após o fim da segregação racial em 1964. “Lá, a segregação foi estabelecida de forma muito clara. Então, quando eles começaram a trabalhar ações para reverter o processo, foi muito mais intencional.

Eles sabiam o que precisavam combater. No Brasil, tivemos uma falsa democracia racial, o que nos impediu por anos de olhar para o racismo como um problema estrutural e institucional”, diz Ana Bavon, consultora de diversidade e fundadora do Business for People. Maurício Rodrigues, vice-presidente de finanças da Bayer Crop Science — a unidade de insumos agrícolas da empresa — e patrocinador do grupo de afinidade BayAfro, diz acreditar que a polêmica causada pelos programas de seleção só para negros, assim como movimentos como o Black Lives Matter, são importantes para dar visibilidade à causa, mas reforça que a mobilização não pode significar que o assunto seja tratado como moda ou mera reação da empresa a eventos atuais.

“Faz parte de uma jornada nossa. Se tentássemos, anos atrás, um programa assim, não seria nada fácil. Temos um momento interno que coincide com a discussão da sociedade, mas o trabalho é mais profundo, temos as lideranças engajadas e uma estratégia ampla”, diz.

Na mesma época que o Magazine Luiza, a Bayer abriu inscrições para sua seleção de trainees com o objetivo de acelerar a formação de lideranças negras no negócio.

(Arte/Exame)

Para a procuradora do Ministério Público do Trabalho em São Paulo Valdirene Assis, o ponto de virada para a inclusão da população negra será o recrutamento pensando não apenas em cargos iniciais mas em toda a jornada dentro da empresa, para que o profissional possa ser efetivado e progredir. “Do mesmo jeito que o processo seletivo se torna orientado para a diversidade, o mesmo compromisso deve existir na progressão de carreira e no investimento para a estratégia”, diz.

A Movile dará mais esse passo em outubro com um programa só para negros em cargos efetivos e de liderança. No Magalu, embora 53% dos funcionários sejam pretos e pardos, só 16% dos líderes são negros. “Estamos cientes de que precisamos alçar mais colaboradores negros que já estão na empresa a postos de liderança”, diz Patricia Pugas, diretora executiva de gestão de pessoas da companhia.

“O programa de trainee para negros é apenas uma das iniciativas. Hoje, preenchemos mais de 80% de nossas vagas de liderança com profissionais da própria companhia.” A lição que as empresas brasileiras estão aprendendo agora é a da famosa frase da professora e filósofa americana contemporânea Angela Davis: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Se o esforço é institucional, a mudança vem mais rápido.  

(Arte/Exame)

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