Revista Exame

A universidade (nada tradicional) que nasceu na garagem

Fundada há menos de uma década por empreendedores do Vale do Silício, a Singularity University atrai todos os anos milhares de empresários e executivos

Diamandis: “A tecnologia vai resolver todos os problemas da humanidade” (Michael Buckner/Getty Images)

Diamandis: “A tecnologia vai resolver todos os problemas da humanidade” (Michael Buckner/Getty Images)

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Cristiane Mano

Publicado em 8 de setembro de 2017 às 11h49.

Última atualização em 11 de setembro de 2017 às 18h14.

Vale do Silício — Uma miríade de novos negócios orbita ao redor de Larry Page, um dos criadores da Holding Alphabet, dona do Google. Um dos mais mirabolantes é a Planetary Resources, para explorar minérios em asteroides. Ele e seu sócio, o físico Peter Diamandis, preveem que a façanha será possível em 2025. Não é o único negócio que os dois criaram juntos. Outro exemplo, certamente menos dispendioso, embora mais conhecido, é a Singularity University.

Apesar do nome, a escola não lembra em nada uma universidade tradicional. Aliás, não é. Não há cursos de graduação ou pós-graduação nem diplomas com validade acadêmica. Ainda assim atrai todo ano cerca de 1.000 alunos do mundo inteiro: empresários e executivos de empresas de todos os portes interessados em saber como novas tecnologias deverão impactar o futuro. O curso mais popular dura uma semana, custa 15.000 dólares e já teve estudantes célebres, como Reid Hoffman, cofundador da rede social profissional LinkedIn; o empresário brasileiro Jorge Paulo Lemann; e o ator Ashton Kuchter, quando se preparava para encarnar Steve Jobs, criador da Apple, no cinema.

A turma acompanhada pela reportagem de EXAME, em março, não tinha celebridades. Num time diverso havia a herdeira e presidente do conselho de administração de um dos maiores grupos familiares da Europa, a qual pediu anonimato; um brasileiro que trabalha na divisão de projetos especiais do Google, como o Loon, cuja meta é levar, por meio de balões, acesso à internet a locais remotos do planeta; e um alemão que criou um sistema menos agressivo para a aplicação de quimioterapia em pacientes com câncer. Todos se encontram democraticamente nos intervalos para o almoço no restaurante, com comida servida em bufê — este, sim, mais parecido com o de um ambiente escolar.

À primeira vista, as instalações da Singularity, encravada num centro de pesquisas da Nasa em Muffett Field, no Vale do Silício, assemelha-se mais às garagens onde nascem diariamente dezenas de startups naquela região do que a uma universidade. Menos ainda à quase vizinha  e centenária Stanford, com seus suntuosos prédios em estilo art déco. Com apenas um andar, aspecto de contêiner e um letreiro discreto na fachada, a construção foi improvisada dentro de uma das áreas de pesquisa mais antigas da agência espacial americana, criada em 1939.

Trata-se de um amplo terreno com mais de 20 hectares às margens da Rodovia 101, que liga São Francisco ao Vale do Silício. É preciso percorrer 5 minutos entre os diversos prédios erguidos nos anos 30 para chegar à escola. Parece uma viagem no tempo. Ao contrário do que seria intuitivo imaginar, uma viagem ao passado. A poucos metros da escola, avista-se uma enorme estrutura metálica, hangar de testes dos primeiros dirigíveis da história. Hoje serve, sobretudo,  para testar drones. Há apenas uma sala de aula, com capacidade para até 80 alunos.

As turmas lotam — e é proposital que não sejam maiores. “A ideia é manter um clima intimista”, afirma Pascal Finnette, um dos vice-presidentes da Singularity. Os alunos são acomodados em mesas de até seis participantes, para que possam interagir. Em cada uma delas há pequenos brinquedos coloridos. Num laboratório anexo à sala principal, há alguns óculos de realidade virtual, impressoras 3D e um robô simpático com cerca de 1 metro de altura, capaz de “olhar” para quem se detém à frente dele e desviar dos alunos que transitam por ali entre as aulas.

A programação dura sete dias, com palestras que começam pela manhã e terminam à noite, mas nunca é fixa. A grade final, inclusive com o nome de palestrantes, é definida poucas semanas antes, conforme a disponibilidade dos especialistas, sem vínculo fixo com a instituição. Um dos colaboradores eventuais é Craig Venter, da Universidade de San Diego, conhecido por ter sequenciado o genoma humano. Diamandis é atração garantida. Quando subiu ao pequeno palco que os palestrantes usam, ele vestia moletom com as mangas arregaçadas, calças jeans e tênis. “As tecnologias exponenciais vão nos permitir saltos maiores em duas décadas do que tivemos nos últimos 200 anos.”

A inspiração por trás da criação da universidade ganha um ar quase místico na versão de Diamandis. Após sua palestra, ele contou a EXAME que, em 2005, embarcou numa travessia a cavalo pela Patagônia chilena, durante três semanas, e levou a tiracolo o livro do futurólogo e também empreendedor em série americano Ray Kurzweil, The Singularity Is Near (“A singularidade está perto”, numa tradução livre, sem versão para o português). “No livro, Ray defende a lei dos retornos acelerados, em que uma tecnologia avançada leva a outra melhor, que leva a outra melhor. Num determinado momento, não seremos mais capazes de prever o que será possível”, afirma Diamandis. “Não havia um único lugar do mundo que concentrasse informações de maneira horizontal sobre o que há de mais novo nos mais diversos campos da ciência.”

Quando voltou, começou a articular a fundação da escola, criada em 2008. Kurzweil, com uma longa carreira de empreendedor em série, integrou a sociedade. Larry Page deu o aporte inicial, de 250 000 dólares. “Com o avanço exponencial de novas tecnologias, não há problema que não possa ser resolvido. É uma questão de colocar as mentes certas e a quantidade- de dinheiro necessária”, diz Diamandis. Com essa premissa otimista como pano de fundo, o repertório do curso é vasto. Os temas passam pela neurociência e pelas tendências no setor de energia e na medicina.

Todo esse avanço, segundo seus professores, vai mudar radicalmente diversos setores — até mesmo os mais enfadonhos. Problemas como a escassez de água potável vão acabar à medida que o custo da tecnologia de dessalinização cair vertiginosamente. Energia? O avanço da tecnologia para captação de energia solar traz uma alternativa viável mesmo nas regiões mais remotas do mundo, o que colocará em xeque a importância das grandes geradoras e distribuidoras como as conhecemos hoje. Comida para uma população global cada vez mais numerosa? Já existe o hambúrguer de laboratório, feito de células bovinas.

Se nada disso der certo, eles também já têm a resposta: sair do planeta. “Daqui a alguns anos, a espécie humana terá uma existência interplanetária“, diz Diamandis. Loucura? É perturbador constatar que a mesma tese encontra adeptos como o célebre físico inglês Stephen Hawking, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Em junho, ele defendeu a importância de estabelecer colônias em Marte e na Lua para fugir de ameaças de asteroides, temperaturas elevadas ou excesso de população. “Não se trata de uma ficção científica. Isso é garantido pelas leis da física e da probabilidade”, afirmou Hawking numa conferência. A própria Nasa já tem um cronograma para enviar tripulantes a asteroides até 2025 e a Marte entre 2030 e 2040.

Para os negócios, Diamandis tem uma boa e uma má notícia. Há enormes oportunidades de investimento. Mas todos os setores serão abalados pela nova realidade de maneira implacável. Quem não estiver pronto vai desaparecer. “Muitas das novas tecnologias são desconsideradas porque parecem caras, pouco eficientes e irrelevantes quando surgem”, afirma Diamandis (veja quadro na pág. 70).

Além dos cursos, a Singularity promove diversos eventos temáticos — e também o trabalho de incubar startups. Em dezembro, uma competição que envolveu 500 candidatas levou à escolha de apenas sete. Uma delas é a brasileira Braincare, dona de um sistema não invasivo para detectar alterações na pressão cerebral. Dois de seus sócios passaram dois meses num prédio vizinho à escola recebendo mentoria de especialistas e contatos com pesquisadores e investidores da região. “Estamos estudando parcerias para testar novas aplicações do equipamento com médicos da Universidade Stanford”, afirma Plínio Targa, presidente da Braincare.

Se Diamandis estiver mesmo certo, quem duvida das projeções propagadas pela Singularity terá um tempo extra para ver para crer. Segundo ele, daqui a 20 anos será possível aumentar a expectativa de vida saudável das pessoas em até 40 anos. Essa é a meta, aliás, de outra startup que ele fundou em 2013, a Human Longevity. Vida longa aos otimistas do Vale do Silício.

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