Revista Exame

Produção local de armas pode mudar rumo da Guerra da Ucrânia, diz biógrafo de Zelensky

Em livro, jornalista relata o começo da guerra na Ucrânia de dentro do gabinete do presidente Volodymyr Zelensky e comenta o que pode acontecer nos próximos meses do conflito

Simon Shuster, autor de "O Showman" (Debora Mittelstaedt/Divulgação)

Simon Shuster, autor de "O Showman" (Debora Mittelstaedt/Divulgação)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 23 de fevereiro de 2024 às 06h00.

O jornalista Simon Shuster acompanhou o começo da guerra na Ucrânia de um lugar privilegiado: perto do presidente Volodymyr Zelensky. Shuster teve autorização para seguir o começo da guerra ao lado do presidente e de seus assessores, com acesso ao escritório presidencial, ao comando militar e a viagens até a linha de frente. Ele estava em Kiev enquanto o governo tentava, em poucos dias, sair da rotina e se mobilizar para conter a invasão russa, em um momento em que cada funcionário teve de decidir entre ficar e organizar a luta e simplesmente fugir.

Desse ponto de vista, a que poucos tiveram acesso, Shuster, de 41 anos, fez um relato detalhado do primeiro ano do conflito, e da transformação de Zelensky, um comediante que chegou à Presidência sem experiência política, em 2019, e teve de se converter em um líder nacional em tempos de guerra. Essa história é contada no livro O Showman (Editora Record), que chega ao Brasil no fim de fevereiro. Em conversa com a EXAME, o autor fez uma ampla análise sobre a situação atual da Ucrânia e os rumos da guerra, que completa dois anos neste mês. 

Quais aspectos da guerra têm chamado sua atenção ultimamente? O senhor continua em Kiev?

Estou em Nova York agora, mas faço reportagens sobre o tema para a Time. Há duas coisas que estou olhando de perto. Uma é o processo de paz que Zelensky e sua equipe têm trabalhado desde novembro de 2022, apresentado como um plano de dez pontos. Eles estão tentando criar a arquitetura de um processo de paz, e depois convidar a Rússia para a mesa. Estão tentando garantir que, se um processo de paz começar, a Ucrânia estará no banco do motorista. Outra é a produção doméstica de armas. Os ucranianos estão tentando se tornar mais autossuficientes e independentes conforme a ajuda militar do Ocidente declina. Há uma preparação para o risco de que Donald Trump volte à Casa Branca. Os ucranianos estão investindo muito e tentando reviver sua indústria militar. Eles tiveram muito sucesso com mísseis para drones e, em grau menor, com munições para artilharia. Os ucranianos não querem ser empurrados para uma negociação antes de estarem prontos e querem ser capazes de decidir por quanto tempo continuarão lutando. A produção doméstica de armas é realmente importante para isso.

Vê alguma possibilidade de a guerra acabar em breve?

Em uma entrevista com o general Zaluzhnyi, o principal comandante militar da Ucrânia, que cito no fim do livro, ele diz que “esta guerra nunca vai terminar de verdade. Qualquer paz ou trégua será apenas uma oportunidade para descansar, nos rearmarmos e nos prepararmos para a próxima guerra”. Não acho que Zelensky é pessimista assim. Ele está comprometido a terminar essa guerra mais rapidamente. Ele prometeu a vitória a seu povo, e está buscando isso de muitas formas. Ele não prevê nenhum tipo de guerra sem fim. Ele busca caminhos para vencer e terminar isso de um jeito que não seja humilhante para os ucranianos.

Acha que Zelensky aceitaria terminar a guerra sem retomar os territórios dominados pela Rússia?

É um cenário possível. Nas primeiras semanas e nos primeiros meses da invasão, era uma questão em aberto: quanto território a Ucrânia seria forçada a ceder em troca da paz? De lá para cá, a questão se tornou tabu. Na retórica de Zelensky, há uma recusa em considerar qualquer tipo de terra em troca da paz. E a principal razão é que as pessoas na Ucrânia não querem isso. As pesquisas de opinião têm mostrado que é uma ideia muito impopular. Se a opinião pública mudar, Zelensky se ajustaria à vontade popular. Ele não é dogmático nessa questão, de forma alguma. Ele faz o que as pessoas querem, e elas não querem trocar terra por paz.

Como avalia a moral e a disposição dos ucranianos em relação à guerra após dois anos de conflito?

É o que você esperaria após dois anos de uma guerra devastadora. As pessoas cansaram. Você sente isso claramente na dificuldade em recrutar soldados. As pessoas não querem lutar. É muito diferente dos primeiros meses de invasão, em que havia centenas de milhares de voluntários. Inspirar as pessoas a servir no Exército é um dos principais desafios. Essa é uma das razões pelas quais Zelensky tem se exposto a riscos incríveis e viajado a lugares de combate, na linha de frente. Ele tenta mostrar às pessoas que “eu também estou arriscando minha pele para lutar nesta guerra. Estou trabalhando todo dia. Então, por favor, me siga”.

Volodymyr Zelensky: presidente ucraniano usou sua habilidade de comunicação para pedir ajuda ao mundo todo (Mads Claus Rasmussen/Ritzau Scanpix/AFP/Getty Images)

Como está a economia ucraniana no dia a dia?

Com muitas dificuldades. Eles estão realmente dependendo de ajuda internacional e empréstimos. É realmente muito difícil ter um negócio funcionando sob as circunstâncias atuais. Há também milhões de cidadãos ucranianos vivendo como refugiados em outros países, o que afeta a economia. Não há aviões civis voando, apenas militares e drones. Isso afeta qualquer economia quando tudo tem de ser feito por trilhos ou caminhões. Isso tudo é parte do plano de Putin de sufocar e destruir a economia ucraniana, de modo que a mente [dos ucranianos] seja mais fácil de conquistar. Sem ajuda externa, a economia não sobreviveria por muito tempo.

Como vê a decisão de Zelensky de trocar o comando das Forças Armadas? Isso pode trazer mudanças significativas para o andamento da guerra?

Os problemas que o levaram a querer mudar a liderança militar existem há meses. Tenho ouvido da equipe de Zelensky e da liderança militar sobre essas tensões, confrontos e desacordos por mais de um ano. Zelensky é o líder do país, o supremo comandante-em-chefe e tem o direito de ter a liderança militar que ele quiser. Mas uma mudança será desestabilizadora porque o general Zaluzhny [dispensado no começo de fevereiro] é muito popular.

Sobre mudanças de estratégia, o general Zaluzhny é conhecido por ser um planejador metódico. Ele é muito focado em quebrar a coluna da invasão russa ao empurrá-los para o sul, usando todos os seus recursos. Empurrar em direção à Crimeia tem sido a sua abordagem. Zelensky tem uma abordagem diferente: é mais a favor de ataques com mísseis contra alvos russos na Crimeia, contra navios russos no Mar Negro e em alvos industriais dentro do território russo. Parece que ele planeja colocar no posto um general mais focado nesse tipo de estratégia.

A Ucrânia teria eleições presidenciais neste ano, que foram adiadas por causa da guerra e da lei marcial. Há chances de que elas sejam realizadas antes do fim do conflito? 

Falei com Zelensky sobre essas duas questões e, alguns meses atrás, ele ainda estava considerando se deveria haver ou não eleições. Mas estava muito claro para mim que ele não planeja promover eleições. Sob lei marcial é ilegal ter eleições, e ele teria de mudar a lei. Você tem cerca de 20% do território sob ocupação e não pode fazer eleições ali. Tem algo como 5 milhões a 7 milhões de pessoas vivendo no exterior, e as embaixadas e os consulados da Ucrânia não estão equipados para lidar com esse tipo de votação. E há milhões de pessoas deslocadas dentro da Ucrânia, que não podem votar nas regiões e cidades onde estão registradas. Há também a questão de que uma eleição é desestabilizadora. Os partidos políticos vão começar a lutar entre si de novo, então o tipo de união entre as elites e as lideranças políticas vai se quebrar se você declarar o começo de uma temporada eleitoral. Ele quer manter a unidade o máximo possível. Há assessores de Zelensky que querem que ele realize eleições o mais rápido que puder, porque veem sua popularidade declinando com o tempo, então faria sentido politicamente para Zelensky realizar uma eleição, mesmo que difícil e com lacunas, mas conquistar mais um mandato de cinco anos. Mas Zelensky decidiu não fazer isso. 

E como vê o cenário político do país em um pós-guerra?

Eu termino o livro com uma nota de preocupação, na qual digo que não sabemos que tipo de Ucrânia teremos ao fim da guerra, nem que tipo de líder Zelensky será. Historicamente, é muito difícil para presidentes deixarem poderes extraordinários. Sob lei marcial, Zelensky tem poderes para governar por decreto. A democracia na Ucrânia está em pausa durante a lei marcial. Temos de esperar e ver como Zelensky lidará com a transição. Ele foi muito claro quando conversamos. Disse: “Veja, Simon. É muito simples. Nós vencemos a guerra, terminamos a lei marcial e voltamos à democracia normal”. Eu acredito nele. Só que vai ser uma transição perigosa e difícil. Vamos ter de olhar de perto pelo risco de perder alguma das instituições democráticas e progressos feitos desde a independência da Ucrânia, em 1991. 

Tanque da Ucrânia em Bakhmut: região de Donbass é uma das principais áreas de combate com os russos (Aris Messinis/AFP/Getty Images)

Qual é o peso da América Latina para Zelensky? Em dezembro, ele veio à Argentina para a posse presidencial de Javier Milei, e buscou um encontro com Lula.

A aproximação com a América Latina é superimportante. Tem sido interessante observar, dentro do escritório do presidente, como eles lidaram com essa questão. Muito no começo da invasão, eles perceberam a importância de ter um apoio majoritário muito forte na ONU e em sua Assembleia Geral. O escritório do presidente estava analisando sua força diplomática no chamado Sul Global, que inclui América Latina, África, partes da Ásia e do Oriente Médio, e em muitos desses países a Ucrânia não tinha embaixadas, não tinha realmente presença diplomática. A Rússia era diplomaticamente muito mais forte. Isso era muito frustrante para o gabinete do presidente, e eles começaram a tentar construir algum tipo de presença e poder diplomático nesses países. É um grande desafio. Eles não tinham equipes nem recursos para fazer isso, mas Zelensky fez disso uma de suas metas pessoais como presidente: alcançar o máximo que pudesse os líderes da América Latina.

A viagem para a Argentina foi histórica e mostra quão seriamente Zelensky considera as relações com a América Latina. Ele está mais focado em manter o apoio dos Estados Unidos e da Europa, mas entende que para vencer a guerra ele precisa desafiar a Rússia de modo mais amplo na arena internacional.

No livro, o senhor relata as mudanças de Zelensky no primeiro ano de guerra. Notou alterações nele no segundo ano de conflito?

No fim de 2022, ele já estava completamente formado como um líder militar e um presidente em tempo de guerra. Já estava extremamente resistente e motivado. O que mudou em 2023 foram as circunstâncias. A guerra se tornou muito mais difícil em 2023. A contraofensiva no verão e no outono falhou em produzir algum avanço significativo. Se houve mudanças nele em 2023, estão mais relacionadas ao fato de que ele está ficando cansado. Seus assessores dizem “chefe, você precisa de uma pausa”, e ele se recusa. Continua se cobrando muito duramente. Com o tempo, isso cobra algum preço. Ele é humano. Vemos alguns sinais de que ele está ficando mais cansado fisicamente. Mas suas prioridades continuam consistentes.

Zelensky ou seus assessores comentaram algo sobre o que acharam do livro? Especialmente do título, O Showman.

É, ele não gostou do título, mas não me pediu para mudar. Quando falei do título com sua equipe, eles ainda não tinham lido o livro. Não ficaram muito felizes, mas também não ficaram irritados. Falaram “se é a sua decisão, vá em frente”. O presidente Zelensky e sua equipe nunca pediram para ler o livro antes da publicação nem pediram para checar nenhuma fala. Eles me deram liberdade e acesso para fazer um relato honesto. Ainda não tive muito feedback deles sobre o conteúdo do livro. Eles dizem que estão lendo e precisam de tempo. São pessoas ocupadas e têm coisas mais importantes na agenda do que ler livros.

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