Aula na Harlem Children Zone Promise Academy, em Nova York: 97% dos alunos dali são aceitos em faculdades. Em escolas públicas do entorno, só seis em cada dez estudantes concluem o ensino médio (Harlem Children Zone Promise Academy/Divulgação)
Leo Branco
Publicado em 13 de setembro de 2018 às 05h31.
Última atualização em 13 de setembro de 2018 às 05h31.
Bem no coração do Harlem, bairro de Nova York colado a Manhattan, a escola Children Zone Promise Academy é exemplo de uma revolução educacional causada pela iniciativa privada na rede pública de ensino. Num prédio de quatro andares envidraçados que lembra uma torre comercial moderna, a escola atende 1.000 alunos do berçário até ao ensino médio. A maioria vive no bairro, um dos mais carentes de Nova York. Tudo por ali é gratuito, desde o lanche de granola com frutas da estação servido antes das aulas até o uniforme e as aulas de artes marciais e de reforço em matemática acompanhadas pela reportagem de EXAME numa manhã calorenta de julho, em pleno período de férias escolares.
O desejo dos jovens dali é entrar numa faculdade. No ano passado, 97% deles foram aprovados em universidades, uma taxa altíssima numa área em que só seis em cada dez terminam o ensino médio. “Nossa função é garantir que os alunos estejam prontos para um mundo diversificado”, diz o educador Achil Petit, superintendente da escola.
Criada em 1990, a Children Zone é uma charter school, escola de ensino gratuito mantida pela iniciativa privada com pouca ingerência do Estado. Em geral, são unidades abertas por professores descontentes com a má qualidade do ensino público e pais desesperados por uma educação que tire seus filhos do ciclo de pobreza. É o caso da Children Zone, que começou como um projeto para oferecer reforço escolar e conselhos de vida a crianças em extrema pobreza e logo ganhou permissão da prefeitura para gerir uma escola pública em frangalhos — na época, só um em cada três jovens do Harlem concluía os estudos por causa da violência em sala de aula, motivada pelo tráfico de drogas e pela má qualidade do ensino.
Fora de amarras típicas da burocracia estatal, as charters têm liberdades incomuns a uma escola pública, como definir o método de ensino e demitir professores ruins, um tabu nas escolas americanas, ambientes com forte presença sindical. Em compensação, recebem em média 25% menos dinheiro público do que as tradicionais. A conta normalmente fecha com recursos angariados no mercado, como acontece na Children Zone, que almejou fama mundial em 2010 ao servir de exemplo no documentário premiado Esperando pelo Superman, sobre a falência do ensino americano e o sucesso de modelos como as charters.
Atualmente, só 15% do orçamento anual de 46 milhões de dólares da escola vem da prefeitura de Nova York. O restante são doações de filantropos, como o banqueiro húngaro George Soros e o brasileiro Armínio Fraga, que ajudaram a Children Zone na construção da sede própria em 2013. A abundância de recursos resulta em estruturas invejáveis: na Children Zone, os alunos têm academia de ginástica e nutricionistas para manter o peso.
A infraestrutura melhora o aprendizado? Uma série de indicadores sobre a experiência de Nova York mostra que sim. Por lá, as charters costumam estar em -áreas periféricas, onde é difícil reter os alunos em sala de aula. Em média, 67% dos estudantes dessas escolas vêm de famílias em situação de pobreza — 7 pontos percentuais acima da média das escolas públicas. Apesar disso, os estudantes sob gestão privada têm tirado notas melhores.
Um estudo da Universidade Stanford comparando os resultados de exames de 74.000 alunos nova-iorquinos mostrou que os de escolas privatizadas têm desempenho 43% superior ao das escolas públicas em leitura e 48% acima em matemática. Ao fim de um ano letivo, é como se os estudantes tivessem tido 23 aulas de línguas e 68 de matemática a mais que os alunos das escolas da prefeitura. Além de tirar notas mais altas, os estudantes das charters correm menos risco de evasão escolar. Seis em cada dez alunos dessas instituições estudam mais de três anos numa mesma escola. Após o mesmo período, a evasão nas públicas convencionais beira os 50%.
Por trás dos bons resultados, que dão um respaldo crescente às escolas sob gestão privada, está uma obsessão por garantir que todos os alunos aprendam juntos. Nessas escolas, os professores costumam lidar com deficiências graves de aprendizado de alunos com famílias problemáticas. Por isso, esses profissionais têm metas agressivas de proficiência dos alunos, cobradas pela direção das escolas e também pela Secretaria de Ensino.
Para chegar lá, recebem instruções detalhadas do que fazer em sala de aula. Desde a escolha do material didático até a dinâmica com os alunos, tudo é definido previamente. É uma quebra de paradigma. “A formação do professor nos Estados Unidos pressupõe autonomia em sala de aula, o que praticamente não existe nas charters”, diz Aaron Pallas, diretor do Departamento de Políticas Educacionais da Universidade Colúmbia, em Nova York. Mesmo num ambiente de pressão, essas escolas ganham popularidade entre pais e professores.
As primeiras unidades nesse formato foram abertas no início dos anos 2000, época em que o bilionário de mídia Michael Bloomberg, então prefeito de Nova York, ganhou poderes do governo estadual para definir políticas de ensino na metrópole e, com a visão de quem vem da iniciativa privada, ampliou os recursos públicos dedicados às charters. Hoje, do 1,1 milhão de estudantes nova-iorquinos, 10% estudam numa das 227 charter schools da cidade. É quatro vezes mais do que há dez anos. Algumas dessas instituições viraram redes de ensino. Tida como uma das melhores escolas da cidade, a Success Academy, aberta em 2006, também no Harlem, hoje atende 15.500 estudantes em 46 escolas espalhadas pela região metropolitana de Nova York.
Apesar da expansão da rede, 47.000 crianças hoje aguardam uma vaga em charter schools — o acesso é por uma loteria concorridíssima. Numa evidência da popularidade do sistema, um dos primeiros desgastes do prefeito democrata Bill de Blasio, que chegou ao poder em 2014 com apoio de sindicatos de professores, foi a decisão de cortar verbas e reverter a autorização para algumas charters funcionarem em espaços vagos de escolas públicas. As medidas foram parcialmente revertidas diante da gritaria de famílias de baixa renda, ávidas para colocar os filhos nessas escolas.
A experiência das escolas charter são uma referência no debate sobre alternativas à gestão estatal na educação pública brasileira. Por aqui, um desafio é vencer a resistência a mudanças de pais, alunos e professores. Vide o exemplo de Pernambuco, onde uma experiência de escolas públicas geridas pela iniciativa privada foi encerrada em 2007, após dois anos, por causa da grita de professores. Mais recentemente, em 2016, o governo de Marconi Perillo, em Goiás, demonstrou interesse em abrir escolas charter e contratar organizações sociais para gerir os serviços administrativos, como limpeza e merenda. O projeto nem chegou a sair do papel após uma onda de invasões de escolas por alunos e uma liminar do Ministério Público contrária às medidas.
Uma notável exceção à falta de competição na oferta de educação pública é o ProUni, programa federal que já concedeu mais de 1,5 milhão de bolsas em faculdades privadas desde o início, em 2005, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República. Inspirado no modelo de vouchers de ensino, em que o Estado dá o dinheiro e o aluno decide onde vai estudar, aplicado com sucesso há pelo menos duas décadas em regiões como o estado americano de Wisconsin e os paí-ses escandinavos, o ProUni é tido como um programa bem-sucedido do ponto de vista acadêmico.
Um estudo da Abraes, associação de faculdades privadas brasileiras, em 2014, mostrou que os bolsistas do ProUni em média tiram até dois pontos a mais que alunos do ensino superior público no Enade, avaliação da qualidade de universidades feita pelo Ministério da Educação. “Não há melhor controle de qualidade no ensino do que a liberdade de escolha de pais e alunos, e a concorrência entre quem oferece o melhor resultado”, diz o cientista político Fernando Schüler, pesquisador da escola de negócios Insper, sobre políticas públicas em educação.
Tudo indica que daqui para a frente o Brasil terá mais experiências privadas no ensino público. A começar por uma lei da ex-presidente Dilma Rousseff de 2014 que garantiu ao Estado a assinatura de contratos com entes privados em serviços essenciais, como saúde e educação. No ano passado, o texto embasou a decisão do prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior, de ampliar os contratos com entidades assistencialistas, boa parte delas associações de moradores, que recebem dinheiro público para cuidar de 19.000 crianças em 227 creches.
Antes, o esquema era informal: os recursos saíam do orçamento participativo, decidido em assembleias de moradores muitas vezes à revelia de decisões políticas ou da legislação vigente. Agora, a prefeitura motivou as entidades a tornarem-se prestadoras de serviço privadas de uma rede de ensino gratuito paralela à municipal, chamada de comunitária. Neste ano, a rede ganhou duas escolas de 1o ao 9o ano. A ideia agora é comparar indicadores das duas redes, a pública e a comunitária. “É a melhor maneira de encontrar gargalos de gestão”, diz Adriano Naves de Brito, secretário de Educação da capital gaúcha.
Um nó já foi avistado: o alto volume de licenças médicas entre professores da rede pública, a maioria contratada por concurso sob regime de estabilidade. Em 12 meses, 20% dos docentes usaram atestados médicos para faltar à aula. Nas escolas comunitárias, que contratam sob regras da iniciativa privada, menos de 1% dos professores faltou. Em outros lugares país afora, até mesmo o espaço de escolas públicas vem ganhando o reforço privado.
Desde junho, o Instituto ProA, ONG mantida com recursos de grandes empresas, como o banco JP Morgan, tem oferecido aulas no contraturno de duas escolas de nível médio da capital paulista. No currículo, lições vocacionais e de como se portar no mercado de trabalho, além de reforço escolar, numa coexistência similar à de charter schools e escolas públicas em Nova York. “Até 2020, queremos levar o projeto a pelo menos dez escolas públicas”, diz Rodrigo Dib, presidente do Instituto ProA.
Como quase tudo no universo da gestão escolar, a presença da iniciativa privada no ensino público está longe de ser uma panaceia. Mesmo nos Estados Unidos é possível ver falhas na gestão privada das escolas públicas. É notório o exemplo de Michigan: quebrado, o governo estadual passou boa parte das escolas públicas à iniciativa privada em 2012, na gestão da então secretária estadual Betsy DeVos, que hoje chefia as políticas educacionais do governo Trump.
Sob a nova direção, a penúria continuou. Além disso, o governo não fixou metas de desempenho para os gestores privados, como fez a prefeitura de Nova York. Resultado: atualmente, boa parte das piores escolas do Michigan são do tipo charter. Mas uma coisa é certa: prestar atenção nos acertos da gestão privada do ensino público, e também às falhas, seria um bom começo para melhorar a qualidade do ensino também aqui no Brasil.